
Regresso ao blogue com um episódio do quotidiano bélico seiscentista, respigado das memórias de Mateus Rodrigues, mas sobre o qual não localizei ainda outras fontes que possam corroborar, contradizer ou complementar o que o soldado de cavalos deixou escrito. Tratou-se de uma escaramuça que não correu bem para a companhia onde servia Mateus Rodrigues. A data do acontecimento é incerta – sabe-se que que ocorreu no mês de Março, mas o último algarismo do ano é ilegível; optei por 1646, tendo em conta o encadeamento na narrativa. No entanto, há diversas imprecisões nas memórias de Mateus Rodrigues, no que diz respeito a datas. Sigamos, com a devida reserva, o que nos conta o memorialista, aproveitando para realçar que o principal interesse deste episódio reside nos pormenores da pequena guerra, quase sempre ausentes das grandes sínteses.
Mateus Rodrigues começa por referir que a sua companhia, então comandada pelo comissário geral D. João de Azevedo e Ataíde, estava aquartelada em Olivença. O comissário geral tinha à sua responsabilidade as oito companhias de cavalaria daquela praça onde, por ser a planície circundante muito perigosa, não entrava nada que pertencesse a El-Rei que não fosse escoltado pela cavalaria desde o rio Guadiana, a cerca de duas léguas da vila. Foi assim que aconteceu com um comboio de 200 cavalgaduras, carregadas de munições, farinha e outros abastecimentos.
E logo quis a fortuna que o inimigo tivesse notícia deles, e foi a minha companhia tão mal afortunada que lhe tocou [n]aquele dia ir ao comboio [ou seja, fazer a escolta dos animais de carga] (…) logo pela manhã (…). E assim como esteve a companhia junta à porta do capitão [o termo capitão é aqui usado no sentido generalista de comandante da companhia], chamou (…) um cabo de esquadra, por nome Francisco Cabral Barreto, e lhe disse que tomasse dez cavalos da companhia e fosse diante [com] duas ou três horas [de avanço] da companhia a descobrir a campanha. E lhe advertia que vinha um comboio mui grosso; que descobrisse muito bem a campanha (…).
Logo que o cabo de esquadra recebeu a ordem, partiu com os dez cavalos para fazer o reconhecimento, cumprindo escrupulosamente o que era hábito fazer, que era uma boa légua fora da estrada para todas as partes. No último posto, situado num outeiro de onde se descortinava toda a campina, ficou postada uma sentinela, e daí até ao local onde a companhia devia aguardar pelo comboio de abastecimentos – uma ermida a meia légua do Guadiana – foram sendo colocadas sentinelas, em locais altos e todas à vista umas das outras.
O tenente que comandava a companhia nesta operação (não cumpria ao comissário geral fazer serviço de comboios ou rondas, ainda que disso a sua companhia não estivesse dispensada), chegando ao local combinado com o restante dos seus homens, mandou que estes desmontassem e dessem de comer aos cavalos. Não faltava erva e assim o fizemos todos até que o comboio veio chegando, que como ainda não havia porto em Guadiana passava tudo nas barcas, que são duas. A longa coluna de animais foi atravessando o rio nas barcas, bem devagar. Assim que chegavam à outra margem, punham-se em marcha para Olivença, pois não havia tempo para esperarem até que todos tivessem passado o rio.
A cavalaria inimiga tinha muitas vezes atacado e tomado comboios de abastecimento na estrada de Olivença, e desta vez montou uma emboscada perfeita. Como aquela campanha é meia rasa e tem muitos vales e covas onde o inimigo se pode esconder à sua vontade, como não chegam onde ele estiver, logo fica bem. A cavalaria de Badajoz, num total de 14 companhias com 700 homens, foi emboscar-se um quarto de légua mais adiante de onde tinha ficado a sentinela mais avançada do dispositivo de segurança português, montado previamente pelo cabo Francisco Cabral Barreto. Desse local não podiam ver a coluna de abastecimento aproximar-se, mas como soldados experientes que eram, calcularam bem a hora do dia em que o comboio atravessaria o Guadiana.
Assim como lhe pareceu horas, tomaram uma partida de 20 cavalos e mandaram-na avançar com [ou seja, contra] a nossa sentinela, que estava junto deles um tiro de mosquete (…). Assim como a nossa sentinela viu vir os 20 cavalos correndo, vem fugindo para onde estava a companhia, tocando arma. As demais sentinelas também abandonaram os seus postos, correndo a avisar o tenente da aproximação da força inimiga. Quando a companhia portuguesa se preparou para enfrentar os 20 cavalos inimigos, a restante cavalaria espanhola revelou a sua presença e atacou, dividida em duas partes. Uma lançou-se sobre as cavalgaduras da vanguarda que já estavam na estrada para Olivença. A outra correu sobre a parte do comboio que estava ainda junto do Guadiana.
Entre os portugueses gerou-se a confusão. O tenente tinha consigo 40 homens; os 15 que faltavam estavam espalhados pelos postos que lhes tinham sido atribuídos. Confiantes quanto a derrotarem a vintena de cavalo que inicialmente se aproximara, deram consigo cercados pelo muito mais numeroso dispositivo inimigo. Não tivemos outro remédio senão tratar cada um de seu livramento. A fugida para Olivença não podia ser, porque além de ser légua e meia, estava era muito mais perto, que não era (…) meia légua. Mas também o inimigo nos tinha tomado a dianteira o inimigo lá adiante. Foi para Juromenha que resolveram os portugueses fugir. Mas o inimigo, assim como nos viu, se veio a nós como um raio, contudo fomos-lhe fazendo nossas diligências, cada um o que podia. E quem tinha melhor cavalo, melhor livrava.
Assim como de Juromenha viram o inimigo, logo tiraram duas peças para aviso de Olivença, que saíssem as tropas; e também mandou o capitão-mor de Juromenha duas mangas de mosqueteiros muito depressa em as barcas, para defenderem o comboio que estava a maior parte dele já passado. Mas estava ainda por carregar tudo em os barrancos, e assim como os almocreves viram que vinha o inimigo, descarregaram mui depressa algumas bestas que tinham já carregadas e deixaram-se estar mui caídinhos e agachados ao pé dos barrancos.
Assim como nós chegámos a Guadiana, já não íamos muito mais 15 ou 16 soldados com o nosso alferes, que era Agostinho Ribeiro (…), e não tínhamos nenhum remédio senão passar o pego a nado ou entregar[mo]-nos aos castelhanos. E disse o nosso alferes aos que ali iam que todos o acompanhassem a passar a nado o pego (…), que nenhum se rendesse ao inimigo, que os cavalos nos haviam de botar fora mui bem. De sorte que assim o fizemos, mas com grande risco nosso, em razão que iam os cavalos mui cansados de correr meia légua à rédea solta, e metê-los a um pego connosco em cima deles (…) não havia de salvar nenhum homem (…). Apenas nós nos botámos ao pego a nado, já o inimigo chegava aos barrancos do Guadiana (…) e logo começaram aos tiros a nós, dos quais ainda nos mataram um soldado no meio do pego, que lhe deram com uma bala pelas costas (…) Mas os demais saímos fora, ainda que com trabalho, que também outro soldado nosso esteve quase afogado, andando debaixo do cavalo um pouco de tempo, até que saiu arriba e pegou-se ao rabo do cavalo e saiu fora, mas muito cheio de água, que o tomámos com as pernas para cima e a cabeça para baixo e botou muita água da barriga.
De modo que o nosso tenente foi Guadiana abaixo com tenção de passar pelo porto que já levava pouca água. (…) Fiava-se em o bom cavalo que levava, mas sempre o seguiram três castelhanos até entrarem com ele pela água dentro às pancadas, que ainda lhe deram uma cutilada na cabeça, mas livrou[-se], que assim como os castelhanos viram que os seus cavalos se iam metendo muito na água deixaram-no ir, que o seu cavalo era muito valente e tomou sempre pé (…).
Entretanto, a cavalaria inimiga regressava a Espanha com a presa que tomara, sensivelmente metade das cavalgaduras do comboio. As outras 100 não foram detectadas, porque fazem ali os barrancos uma grande altura com o rio, e estando alguém a cavalo ao pé deles não pode ver quem está em baixo, e como o inimigo fez ali pouca detença, não lhe ficou lugar de saber. Nove soldados portugueses foram também levados prisioneiros e dois morreram na escaramuça.
As restantes companhias de Olivença, ouvido o alarme dado pelas peças de Juromenha, saíram da praça sob o comando de D. João de Ataíde, mas já o inimigo ia muito afastado. O comissário geral ficou muito zangado com o cabo de esquadra a quem ordenara o reconhecimento e a quem atribuía as culpas pelo insucesso, mas não pôde descarregar a sua ira no sujeito, pois este fora um dos prisioneiros que a cavalaria inimiga levara para Badajoz. Como as trocas de prisioneiros estavam então suspensas, Francisco Cabral Barreto ficou 18 meses cativo. Mateus Rodrigues refere que o cabo não teve culpa alguma no desaire, pois não foi por erro seu que a força portuguesa sofreu a emboscada. (…) Ele é e foi sempre tão bizarro soldado, que assim como D. João se ausentou das fronteiras [em 1647], logo subiu em breves tempos [a] ajudante da cavalaria, que é o posto em que ficava quando me ausentei das fronteiras [em Fevereiro de 1654].
Fonte: MMR, pgs. 139-145.
Imagem: “Choque de cavalaria”, pintura de Pieter Meulener.