A representação da infantaria no quadro do Marquês de Leganés sobre o combate de Alcaraviça (2 de Novembro de 1645)

Saídos de Estremoz, os 400 infantes do terço da Ordenança da comarca de Évora, comandados pelo sargento-mor João da Fonseca Barreto, são surpreendidos e completamente desbaratados por uma força de cavalaria inimiga com cerca de 600 efectivos. Apesar da legenda no quadro referir uma igual composição numérica (1.000 para cada lado), as fontes documentais são bem claras.

Quanto à força de infantaria portuguesa, não restam dúvidas que seriam 4 companhias da Ordenança, a 100 homens cada. O quadro, curiosamente, parece comprovar este efectivo. Mostra dois esquadrões (formações tácticas) compostos exclusivamente por piqueiros (juntando, cada esquadrão, os piqueiros de 2 companhias). Os atiradores armados de arcabuz encontram-se abrigados atrás de uma tapada ou distribuídos pelos edifícios, estando uma parte deles já representada em fuga – curiosamente, carregando as armas, o que seria pouco praticável e contraria o que era profusamente descrito nas fontes a respeito de casos semelhantes.

Segundo as fontes coevas, reportadas num artigo de Outubro de 2008, da autoria do Sr. Santos Manoel, a inépcia do sargento-mor ao dispor as forças teria sido a causa de uma derrota que, ainda que menor no contexto dos inúmeros combates semelhantes ao longo da guerra, chocou os portugueses pela dimensão da derrocada: um terço inteiro destroçado, morta a quase totalidade dos seus soldados. Os erros que o Conde da Ericeira aponta a João da Fonseca Barreto (não ocupar e guarnecer uma tapada de parapeito alto, ou de ter dado ordem de ataque ou receber a carga de cavalaria em campo aberto) são, no entanto, contrariados em parte pela representação da força portuguesa no quadro do Marquês de Leganés.

Aí é visível que os atiradores portugueses se encontram abrigados atrás de muros – o que pode, no entanto, ser uma liberdade artística, para valorizar mais a vitória espanhola. No entanto, os esquadrões de piqueiros estão totalmente desguarnecidos de atiradores e posicionados em campo aberto. Dada a falta de preparação militar e consequente coesão, isso seria um factor facilitador da derrocada.

Um pormenor interessante é a representação de 4 bandeiras, uma por cada companhia: duas carregadas pelos respectivos alferes em fuga, outras duas em cada esquadrão de piqueiros. Aparentam ter representada uma cruz aspada – semelhante à Cruz de Borgonha dos exércitos espanhóis. No entanto, enquanto duas são verdes (verde e branco foram as cores heráldicas da casa de Bragança até 1707), uma terceira parece ter a cruz em vermelho, tal como a Cruz de Borgonha aparecia representada nas bandeiras das unidades espanholas. Uma outra bandeira, carregada em fuga, mais ao longe, é branca, mas não se distingue nela qualquer símbolo.

Outro pormenor que desperta curiosidade é a representação de 3 cavalos entre as forças portuguesas: um montado, outro que acabou de derrubar o próprio cavaleiro, e outro, mais ao longe, desmontado e em fuga. A representação dos cavaleiros com faixas brancas atadas à cintura identifica-os como portugueses. O facto, no entanto, é que apenas o sargento-mor teria direito a cavalo para se fazer transportar, o que pode significar que estamos perante outra hipóteses de liberdade artística.

A representação da cavalaria no quadro do Marquês de Leganés sobre o combate de Alcaraviça (2 de Novembro de 1645)

Inicio aqui uma pequena exploração do quadro que o Senhor José Maria Villanova-Rattazi Guillén, descendente do Marquês de Leganés, gentilmente me deu a conhecer. Em artigos publicados em Março, Abril e Setembro de 2019 já o mesmo tinha sido referido, a propósito do combate de Alcaraviça, refrega essa que motivou a execução do quadro, numa evocação da vitória do Marquês sobre uma força de infantaria da ordenança portuguesa.

A temática bélica é muito comum na pintura do século XVII, marcado na sua fase inicial pela Guerra dos 30 Anos. No entanto, são escassas as pinturas que têm como pano de fundo a Guerra da Restauração. À parte as convenções observadas na pintura de temas de guerra (onde se realça uma tendência para a distorção da perspectiva, em benefício de uma visão panorâmica e esquemática de um combate ou batalha), o naturalismo e o realismo na representação das forças em contenda constituem preciosos elementos para o conhecimento do seu equipamento e armamento na vida real. De um modo geral, confirmam ou complementam informações presentes em fontes escritas.

É neste pressuposto que irão ser aqui abordados alguns pormenores constantes no quadro do combate de Alcaraviça, começando pela cavalaria. As fotos são da autoria do Sr. José Maria Villanova-Rattazi Guillén.

A força de cavalaria, na totalidade espanhola, está representada no quadro em 10 batalhões (formações tácticas), a seis fileiras de frente por 4 filas de profundidade. Nos batalhões mais próximos é visível uma mistura de equipamentos defensivos: as duas fileiras da frente com cavaleiros equipados com couraça de peito e espaldar, e as restantes, com um ou outro pelo meio, maioritariamente com couras, ou seja, a protecção de couro. Nada de novo, dado que corrobora a prática também seguida entre a cavalaria portuguesa e que as fontes documentais – com particular relevo para os róis de equipamento das companhias que chegaram até nós – comprovam. Alguns cavaleiros apresentam faixas de cor vermelha, atadas sobre o tronco na diagonal ou usadas à cintura, o que os identifica como elementos do exército espanhol (o branco ou o verde eram usados entre os portugueses, dado serem essas, à época, as cores da Casa de Bragança). Todas as bandeiras das companhias espanholas são representadas numa só cor, o vermelho, cor que também predomina nas plumas que enfeitam os capacetes dos oficiais (alguns deles têm plumas vermelhas e brancas). De resto, todo o equipamento defensivo é usado sobre vestuário de cores diversas, tal como as capas que alguns cavaleiros apresentam não têm cor uniforme.

Apenas uma dissonância em relação ao vermelho identificativo da força militar da Coroa de Espanha: o trombeta em primeiro plano traz pendente do instrumento musical uma peça de tecido verde. Tratar-se-ia da cor pessoal do comandante da companhia ou do próprio Marquês de Leganés? No entanto, já um outro trombeta, representando num plano mais distante, exibe o vermelho usual.

No próximo artigo iremos ver como se encontram representadas as forças de infantaria portuguesa.

O quadro do Marquês de Leganés sobre o combate de Alcaraviça (2 de Novembro de 1645)

Entre Março e Abril de 2019 foi aqui de novo tratado o combate de Alcaraviça, a propósito de um quadro que o Sr. José Maria Villanova-Rattazi Guillén, descendente do Marquês de Leganés, tem em sua posse e do qual gentilmente me havia cedido várias fotos para aqui publicar. O tempo tem sido escasso para manter actualizado o blog, devido a compromissos profissionais e particulares, mas não quis deixar terminar o mês de Setembro sem publicar uma foto do referido quadro já restaurado.

A ele voltaremos em breve, para abordarmos os pormenores do armamento e equipamento das forças em contenda. Desde já, renovo os meus agradecimentos ao Sr. José Maria Villanova-Rattazi Guillén.

O combate de Alcaraviça (2 de Novembro de 1645) e o quadro do Marquês de Leganés – 2.ª parte: a narrativa de Mateus Rodrigues (Matheus Roiz)

Do sucesso do Marquês de Leganés também faz eco o memorialista Mateus Rodrigues. A sua unidade, comandada por D. João de Azevedo e Ataíde, esteve envolvida nas operações de intercepção da força espanhola – aliás, sem sucesso.

O episódio das Vendas de Alcaraviça é referido pelo memorialista, neste caso não por tê-lo testemunhado, mas provavelmente por dele ter ouvido contar a terceiros. Segue-se uma transcrição vertida para a grafia actual:

Estando o inimigo nestas competências, […] lhe veio um aviso de uma espia dobre [ou seja, um espião que fazia jogo duplo, dando informações para ambos os lados], […] que as ordenanças de Évora estavam em Estremoz, e que vinham para Elvas tal dia. […] Pois o aviso era tão certo […], porque a mesma noite que o inimigo saiu, essa mesma veio a gente [da ordenança] a dormir às Vendas d’Alcaraviça, que são duas léguas de Estremoz. E ao outro dia se haviam de vir para Elvas, que são 4 léguas, de maneira que o inimigo entrou com a cavalaria por entre Elvas e Juromenha, e logo foi sentido na entrada. Mas não que se soubesse o poder que levava, senão pela manhã, que ele ia em grande marcha pela estrada abaixo de Estremoz. A gente de Évora já se queria vir, que estava já fora das estalagens para marchar. Vinha com eles por cabo [ou seja, comandante] um sargento-mor mesmo de Évora. E como o inimigo foi logo sentido por aqueles campos, iam muitos lavradores fugindo em éguas, dando avisos do inimigo. E tanto que o sargento mor da gente ouviu dizer que vinha o inimigo, meteu toda a gente, que eram 600 homens, todos em uma grande tapada, que estava ao pé das estalagens, com parede à roda, que dava pelos peitos a um homem, que se fora gente paga não houvera de investir com eles o poder do mundo. Mas aquela canalha, não servem mais que de beber, que são uns bêbedos, e o sargento-mor que vinha com eles outro tal, e pior ainda.

Assim como o inimigo chegou a um cabecinho que está à vista das mesmas estalagens e já muito perto, logo viu toda a gente metida na tapada. E assim como a viu formou-se mui bem e manda tocar as trombetas a degolar, e vai investindo com eles por duas ou três partes. E assim como averbou com eles, não puderam logo saltar os cavalos a parede, mas apearam-se uns poucos de castelhanos e fizeram logo uns por todos, que passaram os batalhões formados, e a tudo isto os bêbedos ia[m] fugindo cada um por onde podia, mas que lhe importava isso, que dos 600 homens que eram não escaparam 100, que deu o inimigo neles e foi degolando todos os que iam encontrando, até que se enfadou de matar e os mais trouxe prisioneiros, que matou mais de 200 homens e trouxe prisioneiros perto de 300. (MMR, pgs. 134-136)

Embora os pormenores não sejam muito nítidos nas fotos disponibilizadas pelo Sr. José Maria Villanova-Rattazi Guillén (veja-se a 1.ª parte deste artigo), o quadro corrobora a descrição feita por Mateus Rodrigues. A infantaria portuguesa encontra-se formada em dois pequenos esquadrões (designação coeva para as formações tácticas de infantaria),  cujos blocos são exclusivamente constituídos por piqueiros. Os atiradores (quase certamente munidos de arcabuzes, como era frequente entre a ordenança) estão dispostos ao longo do muro que delimita a tapada, disparando sobre o inimigo. Uma parte da força portuguesa já está em fuga, após o dispositivo ter sido penetrado pela cavalaria espanhola. Como cada companhia tinha uma bandeira e no quadro se podem ver quatro (duas delas levadas pelos alferes em fuga, as outras nos respectivos esquadrões ainda formados), é possível que o terço da ordenança fosse composto por quatro companhias de 150 homens cada, o que mais uma vez confirma o efectivo de 600 homens referido nas fontes – e desmente o número exagerado (1.000) apresentado na legenda do quadro.

Imagem: pormenor da legenda do quadro mandado pintar pelo vitorioso Marquês de Leganés, onde o número dos portugueses derrotados é superior ao que as fontes escritas referem. Mas este exagero de propósito laudatório era comum no período.

 

 

 

O combate de Alcaraviça (2 de Novembro de 1645) e o quadro do Marquês de Leganés – 1.ª parte

Um dos primeiros artigos publicados neste blog, no já distante ano de 2008, foi acerca da destruição da ponte de Nossa Senhora da Ajuda, ou ponte de Olivença, pelas forças espanholas comandadas pelo Marquês de Leganés, numa operação decorrida em Setembro de 1645. Mais tarde, a 2 de Novembro desse mesmo ano, uma incursão sob o comando do mesmo Marquês desbaratou um terço da Ordenança de Évora – um verdadeiro desastre para as forças portuguesas – no que ficou conhecido como o combate das Vendas de Alcaraviça (na actual localidade de Orada, próximo de Borba, e não na moderna Alcaraviça). Em 2009, um muito interessante artigo amavelmente enviado pelo Sr. Santos Manoel foi aqui publicado em duas partes, tendo eu feito um breve acrescentoposteriormente. E em 2010, o estimado amigo Julián García Blanco voltou ao assunto, num artigo também aqui publicado.

Recentemente, tive a grata surpresa de ser contactado pelo Sr. José Maria Villanova-Rattazi Guillén, descendente do Marquês de Leganés, que tem em sua posse um quadro a óleo mandado pintar por aquele seu distinto antepassado, de forma a perpetuar o combate de 2 de Novembro de 1645, no qual as suas forças obtiveram uma retumbante vitória.

Com a devida autorização do Sr. José Maria Villanova-Rattazi Guillén, aqui publico uma das fotos que gentilmente me enviou. Num próximo artigo, dando continuidade ao que aqui se apresenta, voltaremos ao quadro – uma raridade no que toca à iconografia bélica da Guerra da Restauração –  e aos interessantes pormenores que retrata.

 

 

Pequenas escaramuças no Alentejo, Maio e Junho de 1646 – uma adenda de Juan Antonio Caro del Corral

O estimado amigo Juan Antonio Caro del Corral fez o obséquio de acrescentar ao anterior artigo mais alguns dados, enviados sob a forma de comentário, mas que devido ao interesse inerente passo a colocar aqui sob a forma de artigo. Ao Juan Antonio renovo os agradecimentos pela sua sempre pronta colaboração.

Cierto. 1646 fue año que no sólo estuvo protagonizado por el suceso de Telena y el intento sobre Salvaterra do Extremo (el primero en la provincia alentejana, y el segundo en la de Beira)

Estoy de acuerdo contigo cuando hablas sobre los incidentes cotidianos, la denominada guerra a pequeña escala que fue, realmente, la que mayor daño y fatiga causo a los habitantes de uno y otro lado de la Raya fronteriza.

Ericeira, y otros autores, algunas veces nos refieren estos hechos, aunque normalmente se fijan más en los de mayor envergadura. Por fortuna, para enmendar ese silencio informativo, nos queda el relato de testigos anónimos que, incluso, participaron en esos encuentros y escaramuzas de segundo nivel, gracias a lo cual podemos conocer de primera mano la letra menuda de la historia.

Al efecto de la entrada que los castellanos hicieron en términos de Olivenza la mañana del 28 de mayo del año citado, y para situar mejor el escenario de lo acontecido, quiero aportar algunos datos tomados de una carta que el marqués de Molinghen, autoridad que por entonces comandaba el ejército, dirigió a los ministros de la corte madrileña.

Esta misiva, aparte de informar de lo que pasaba en la frontera pacense, quería responder a las constantes críticas que sobre el mal uso de la caballería se vertían cada día. Así el mlitar valón explicó abundantemente cómo trabajaban los montados y el premio que obtenían en sus correrías y que, por lo tanto, no todo eran sinsabores, tal como señalaban los enemigos políticos del marqués.

Pues bien, la escaramuza oliventina de aquel lunes de finales de mayo, ocurrió casi pegada a los muros de la ciudad, en la zona que actualmente se conoce como Charca de Ramapallas, a 1,5 kms del núcleo fortificado urbano, en dirección este, mirando al camino de Valverde de Leganés.

Desde aquí la partida castellana fue extendiendo su cabalgada de pillaje, dibujando un arco que, orientado hacia el sur, pasaba por los olivares llamados de Santa Catalina, bajo vigilancia de la atalaya de San Jorge, situada en las primeras estribaciones montañosas de la Sierra de Alor; y en sentido contrario, al norte, buscando el refugio de la Sierra de Doña María, a cuyos pies se encuentran algunos cortijos y casas de campo, como La Sancha. Un radio de acción campestre en torno a las 1600 hectáreas, dónde los caballistas encontraron una importante presa de ganado lanar y vacuno.

Y en relación al convento que se cita en la narrativa, posiblemente se trate de las ruinas de dos ermitas ubicadas en uno de los extremos de dicho arco; concretamente de las dedicadas a San Francisco y San Lorenzo, por debajo de los olivares de Santa Catalina, y justo enfrente de la mencionada atalaya de San Jorge.

O sea, una más de las rutinarias acciones de castigo. Desdeluego que no fue la primera, ni tampoco sería la última de aquel 1646. Mediado junio, hubo nuevos altercados. Pero ya antes de la correría de mayo, los castellanos también habían ganado, en otras acciones similares, setenta y dos monturas.

Después de estas incursiones, lo de Telena y Salvaterra estaba ya próximo a aparecer en el calendario guerrero.

Pero éstas, y algunas otras, son otras historias.

Juan Antonio Caro del Corral

Imagem: Planta de Olivença, segundo uma impressão francesa do início do século XVIII. BNL, secção de cartografia, CC29P.

A tentativa de tomada de Badajoz pelo 2º Conde de Castelo Melhor, segundo uma carta do mestre de campo João de Saldanha da Gama (1645) – 1ª parte

A fracassada tentativa de João de Vasconcelos e Sousa, 2º Conde de Castelo Melhor e governador das armas do Alentejo, de tomar Badajoz em 1645, é um episódio bem conhecido da Guerra da Restauração. Além da narrativa do Conde de Ericeira na História de Portugal Restaurado, outros documentos impressos, nomeadamente as Cartas dos Governadores da Província do Alentejo… publicadas em 1940 por P. M. Laranjo Coelho, se referem a esse empreendimento bélico frustrado (ou sabotado pelos inimigos internos do Conde) ainda na fase de aproximação ao objectivo – mais por malícia, que por descuido, segundo escreveu o Conde de Ericeira. Também o soldado Mateus Rodrigues se refere, nas suas memórias, à incompleta campanha do desafortunado Conde, na qual participou.

Uma outra descrição da operação manteve-se até agora inédita. Trata-se de uma carta do mestre de campo João de Saldanha da Gama, comandante de um terço de infantaria, escrita ao chantre da Sé de Évora, Manuel Severim de Faria – não é referido o nome do destinatário na carta, mas o contexto dos restantes manuscritos permite identificá-lo, com razoável certeza. Uma cópia (treslado, na designação comum do período) da carta encontra-se na Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, que em boa hora o prezado amigo Julián García Blanco me fez chegar às mãos. É essa carta que aqui se apresenta, modernizada na grafia, e que por ser algo extensa ocupará dois artigos.

Beijo a mão a Vossa Mercê pela mercê que me faz nesta sua carta, pois além do interesse que tenho de boas novas suas, me mostra o caminho de as procurar, o que farei sempre como tão interessado nelas, e com a certeza deste portador não se perderão as cartas, como devia suceder à que escrevi a Vossa Mercê sobre Badajoz, pois não chegou às suas mãos, e assim torno a referir a Vossa Mercê os motivos que houve para se intentar a jornada. Badajoz é uma praça de grande circuito, tinha quatrocentos soldados pagos e os moradores da cidade faziam as guardas das portas e as sentinelas da muralha, os quais ordinariamente as não fazem com o cuidado necessário. Havia mais quatrocentos cavalos. O Marquês de Leganés estava doente. As portas da cidade eram direitas, e só com uma porta singela e sem rastilho, todas eram nove, quatro grandes e cinco pequenas que caíam para a parte do rio. A muralha toda sem flancos e pela parte por onde havíamos de cometer muito baixo. Dentro nela grande quantidade de moradores portugueses, e muitas mulheres e gente inútil. Todas estas coisas, e o desunido e segurança com que estava o inimigo ajudavam a se poder conseguir a entrepresa. As notícias de tudo isto se souberam por diferentes pessoas, línguas que se tomaram, prisioneiros que vieram, um português que ali vivia há muitos anos, que se passou para nós e um capitão castelhano, que por uma morte que lá fez se veio também a esta praça. E para maior segurança de tudo, foi daqui um sargento nosso feito almocreve a reconhecer tudo muito bem, e também um criado meu entrou lá do mesmo modo, e reconheceu as portas e o corpo da guarda, e fez as plantas de tudo. Também um engenheiro francês que ficou prisioneiro na batalha de Montijo, esteve prisioneiro sete meses sem saberem que era engenheiro, nos deu notícia de tudo. Nós tínhamos seis mil homens nestas três praças de Elvas, Olivença e Campo Maior, e mil cavalos que se podiam ajuntar com grande segredo, como se fez. Havíamos de cometer por três partes, com o grosso da gente por duas partes com os petardos, e pela muralha baixa com as esquadras; e pelas outras cinco partes da muralha se haviam de tocar armas mui rijas, para que não soubessem os de dentro por que parte lhe haviam de entrar. E como eram tão poucos, não podiam guarnecer as muralhas, ainda estando todos prevenidos, e quanto mais tomando-os nós nas camas sem sermos sentidos.

(continua)

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Interpreza intentada contra Badajoz a 31 de Julho”, fls. 36-37 v.

Imagem: Porta de Palmas, em Badajoz. Foi provavelmente por esta porta que passaram os espiões disfarçados de almocreves, a fazer o reconhecimento para a intentada operação de tomada da cidade. Fotografia retirada do blog Puertas de Badajoz, de Julián García Blanco.

A”Passagem de Alcaraviça” – mais um contributo sobre este episódio da Guerra da Restauração, por Julián García Blanco

Há cerca de ano e meio, o Sr. Santos Manoel publicou aqui uma interessante narrativa sobre o combate das Vendas de Alcaraviça em 1645, em duas partes. Posteriormente, acrescentei uma pequena adenda sobre o destino de um dos militares envolvidos nesse episódio. Hoje é a vez do amigo e investigador Julián García Blanco nos trazer um documento que respeita à mesma acção. A parte introdutória foi por mim traduzida e adaptada.

Trata-se de um relato da autoria de Luis de Villarroel y Sandoval, que na altura era ajudante de cavalaria e testemunhou o combate, dirigido, em carta datada de 16 de Novembro de 1645 e escrita em Telena, a Melchor Cabrera, advogado dos Reales Consejos.

Nessa carta se diz que em 20 de Outubro tinha saído de Badajoz o Marquês de Leganés com 6.500 infantes e 1.800 cavalos. Às 4 da tarde de 20 de Outubro, um sábado, chegaram a Telena, onde fizeram alto, para depois seguirem até à ponte de Nossa Senhora da Ajuda (ponte de Olivença). O documento faz uma descrição minuciosa das operações para tomar o torreão situado no centro da ponte e o forte que defendia a entrada da ponte desde a margem esquerda do Guadiana (operações que são também apresentadas nas memórias de Mateus Rodrigues (Matheus Roiz),  aqui transcritas). Uma vez ganho o forte, o Marquês mandou destruir a ponte. Nesta operação gastaram-se 19 dias, e enquanto uma parte das forças se esforçava nas operações abrindo minas, o Marquês de Leganés enviou Sancho de Monroy para que, com 1.000 infantes escolhidos e 400 cavalos sob o comando do comissário geral Gregório de Ibarra, tentasse tomar Juromenha. A operação foi bem executada e as tropas castelhanas tomaram as trincheiras que defendiam o casario, porém vizinhos e soldados retiraram para o castelo, onde se fortificaram. Sancho de Monroy teve de retirar, pois não conseguiu que os seus homens pusessem um petardo para fazer voar a porta, nem contava com artilharia.

Cinco ou seis dias após este sucesso, um alferes de cavalaria da companhia de Alonso Cabrera informou que:

“…Al enemigo le benia de socorro vn tercio de ynfantería y que marchaba de estremoz a yelbes esto fue alarma de la noche a las dos salieron con mis (sic) caballos los dos comisarios jenerales Pedro Pardo de arguello y don gregorio de Ybarra romperlos y hallamoslos que los encontraron junto a las ventas de alcarauica vna legua y media destremoz auiendo corrido siete leguas a una parte y otra para alcanzarlos que sin ponerse en defensa biniedo todos armados dieron a huir y nuestra caualleria con todo desconçierto a seguirlos finalmte se degollaron mas de 350 trajeron prisioneros160 todos los demas se quedaron escondidos entre la espesura del terreno  y a lo que entiendo heridos los mas = entre los prisioneros binieron 4 capitanes y algunas vanderas que segun se diçe benian diez con ellos = esto ha de dar gran campanada en lisboa por ser la jente de miliçia de ebora y montemor escojido()y tan zercana a aquella ciudad = tengo por infalible que en el Ronpimiento de estos 700 hombres quiso dios  azer un milagro con nuestra caualleria siendo el ynstrumento del don gregorio de ybarra mi comisario general y fue que de las  diez y ocho tropas de caballos que llebauamos hiço haçer alto a ocho de ellas  en una cuesta y desde alli tocando llamadas apenas se podia recoger vn hombre  porque todos embebidos en el saco no tratauan codiçiosos de Retirarse estando esparçidos  por las caseri (os) del contorno en tanto estremo que el comisario general  Pedro Pardo llego casi solo Como los demas capitanes y offiçailes de las conpañias que faltauan = cosa que suçede siempre en esta caualleria por la mala disciplina deli()sados  que son sumamente ladrones = apenas se auian yncorporado  las tropas  quando al llegar al monte de la tapada del du(que) nos enbistio el enemigo por la Retaguardia con 650 caballos de Refresco pero en tierra tan estrecha que solo  con sus caballos dragones nos hacia daño y como nos vio ya incorpora(dos) nos dexo sin atreberse a esperarnos en lo llano si bien  lo pudieran haçer porquel mexor caballo nuestrono se pod(ia) mober y casi estaban todos Rendidos= y como digo ari() a benir media hora Antes nos coje esparçidos cada un(o) por su parte y se le perdiera al Rey la fuerça con que açe la gu(erra) a Portugal y el sr Marques de leganes no se y como se Ret(istio)

Escribo esto porque la mayor haçaña en las vitorias es saber vsar dellas dexando vatallones de Reparo cosa que a aqui no se a podido conseguir asta oy y asi puedo decir con verdad quel mayor serbiçio que echo ni tengo de açer al Rey el auer ayudado a don gregorio de Ybarra a juntar la jente que sin duda se vbiera perdido…”

A acção decorreu nos finais de Outubro de 1645, perto das Vendas de Alcaraviça.

Decidi publicar este documento tal como Julián García Blanco o tomou do original, devido ao interesse do seu conteúdo. No entanto, providencio seguidamente uma tradução:

…Ao inimigo vinha-lhe de socorro um  terço de infantaria, que marchava de Estremoz para Elvas, isto foi alarme da noite. Às duas saíram com os meus cavalos os dois comissários gerais, Pedro Pardo de Arguello e Dom Gregorio de Ibarra, a derrotá-los. Encontraram-nos junto às Vendas de Alcaraviça, uma légua e meia de Estremoz, havendo corrido sete léguas de uma parte e outra para os alcançar, que sem se porem em defesa, vindo todos armados, deram em fugir, e a nossa cavalaria, com todo o desconcerto, a segui-los. Por fim se degolaram mais de 350, trouxeram prisioneiros 160, todos os demais ficaram escondidos entre a espessura do terreno, ao que entendo feridos na maior parte. Entre os prisioneiros vieram 4 capitães e algumas bandeiras, que segundo se disse vinham dez com eles. Isto há-de dar grande falatório em Lisboa, por ser a gente de milícia de Évora e Montemor, escolhida e tão próxima daquela cidade. Tenho por infalível que na derrota destes 700 homens quis Deus fazer um milagre com a nossa cavalaria, sendo o instrumento dele Dom Gregorio de Ibarra, meu comissário geral, e foi que das  dezoito tropas de cavalos que levávamos fez fazer alto a oito delas  em uma encosta, e desde ali tocando chamadas apenas se pôde recolher um homem,  porque todos imersos no saque não tratavam, codiciosos, de retirar-se, estando espalhados pelo casario do local em tanto extremo que o comissário geral  Pedro Pardo chegou quase só, como os demais capitães e oficiais das companhias que faltavam, coisa que sucede sempre em esta cavalaria pela má disciplina dos soldados que são sumamente ladrões. Apenas se haviam incorporado as tropas quando, ao chegar ao monte da Tapada do Duque, nos investiu o inimigo pela retaguarda com 650 cavalos de reforço, porém em terra tão estreita que só com seus cavalos dragões nos fazia dano, e como nos viu já incorporados nos deixou sem atrever-se a esperar-nos na planície, se bem o pudesse fazer, porque o melhor cavalo nosso não se podia mover e quase estavam todos rendidos. E como digo, [tivesse o inimigo] chegado meia hora antes, nos colhia espalhados cada um por sua parte, e se perderia ao Rei a força com que faz a guerra a Portugal, e o Senhor Marquês de Leganés não sei como resistiria.

Escrevo isto porque a maior façanha nas vitórias é saber usar delas, deixando batalhões de reserva, coisa que aqui não se pôde conseguir até hoje, e assim posso dizer com verdade que o maior serviço que fiz e tenho de fazer ao Rei é o haver ajudado a Dom Gregorio de Ibarra a juntar a gente, que siem dúvida se teria perdido…

Imagem: “O saque de uma aldeia”, pintura de Philips Wouwerman.