A Torre de Belém em Abril de 1657 – um levantamento do estado da fortaleza

baluarte de S. Vicente a par de Belém

Há alguns anos foi aqui publicado um artigo referente à Torre de Belém, a respeito de um levantamento efectuado em 1644 acerca da situação das fortalezas da costa portuguesa.

Treze anos mais tarde, quando se temia que uma armada espanhola atacasse Lisboa, concomitantemente à invasão que o exército comandado pelo Duque de San Germán estava prestes a encetar no Alentejo (e que culminaria na tomada de Olivença), a Torre de Belém encontrava-se no estado que uma consulta do Conselho de Guerra revela. O documento é aqui transcrito na íntegra, vertido para português corrente.

Senhor,

Ao Conde do Prado e Jorge de Melo mandou Vossa Majestade encarregar que fossem às torres da barra desta cidade, e que vendo o que necessitavam, as fizessem logo prover, ordenando a Rui Correia [tenente-general da artilharia – tratava-se do responsável supremo pela artilharia do Reino, hierarquicamente superior aos tenentes-generais da artilharia dos exércitos provinciais, apesar da designação ser idêntica] (ou por onde mais tocasse) lhes acudissem pontualmente com o que apontassem, até com efeito se repararem e proverem na melhor forma que convém. Deram princípio a esta comissão pela Torre de Belém, e conforme o que viram necessita precisamente do que se segue, e para logo.

– Há em Belém 13 peças de artilharia: 7 de 16 [libras], 1 de 24, 4 de 12 e 1 de 10. Toda esta artilharia está no chão, sem mais uso que se estivera em um armazém. Há mister [necessidade urgente de] reparos.

– Para segurar melhor a defesa são necessárias mais 6 peças de melhor calibre que for possível, e de melhor uso serão se forem de género colubrinas.

– Há um falconete de 2 [libras]. Convém haver mais 2 deste género para o ordinário serviço das salvas, porque se forra com isso grande gasto de pólvora. Pelo menos são necessárias mais 200 arrobas dela, porque se acham só 180.

– São necessárias 1.500 balas de 16 [libras], para as sete peças deste calibre que quase as não têm.

– São necessários 12 cestões para se cobrir a praça alta, que sem esta defesa impossível será laborar artilharia na ocasião.

– Há um condestável e cinco artilheiros. Pelo menos há-de haver um artilheiro para cada uma das peças, excepto o falconete.

– Não há nenhum mantimento, como costuma haver nas torres, de três anos a esta parte. Deve prover-se nesta parte como é estilo, reformando-se todos os anos, repartindo-se pelos soldados e tirando-se o novo emprego dos seus socorros.

– A casa baixa, que só é para os mantimentos, entra-lhe o mar pelas costuras da Torre. Há mister [ser] reparada.

– As covas da Torre hão mister o mesmo conserto, para se poder passar a elas a pólvora na ocasião; porque no alto está arriscadíssima, havendo-a.

– O rastilho está podre, sem serviço algum, deve-se-lhe acudir logo.

– Alguns fuzis das cadeias da ponte hão mister [ser] reformados, porque no estado em que estão não têm serviço algum.

– São necessárias 150 varas de pano para cartuchos, 12 peles para lanadas, enxárcia velha para tacos.

– Para as torneiras da praça baixa e principal são necessárias portas e argolas de bronze.

– São necessários 50 chuços, que são de grande serviço e não há nenhum na Torre.

– E porque Jorge de Melo está impedido ainda de assinar a ordem que ele e o Conde haviam de passar para este provimento, deu o Conde conta neste Conselho para que em consulta se faça a Vossa Majestade presente a necessidade de Belém, e porque se tem entendido de Rui Correia que há falta de dinheiro para este e semelhantes reparos que pedem remédio pronto. Parece ao Conselho que de qualquer efeito deve Vossa Majestade mandar acudir a tão grande falta, servindo-se Vossa Majestade de mandar nomear, no lugar de Jorge de Melo, outro conselheiro para com o Conde continuar nas mais fortalezas da barra esta diligência tão importante. E lembra o Conselho a Vossa Majestade que se se não houverem de remediar as faltas que se acharem, inútil coisa será ocuparem-se os ministros nesta comissão, perdendo o tempo que podem aproveitar em outras coisas do serviço de Vossa Majestade. Lisboa, 5 de Abril de 1657.

Acerca dos postos da artilharia portuguesa à época, nomeadamente o de condestável, veja-se este artigo.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, maço 17, consulta de 5 de Abril de 1657.

Imagem: Torre de Belém. Fotografia de JPF.

Armas e munições existentes na praça de Valência de Alcântara após a sua conquista pelos portugueses (1664)

024_ValenciaAlcantaraUma relação anexa a uma consulta do Conselho de Guerra revela a quantidade de material de guerra (e não só) que ficou a equipar a praça de Valência de Alcântara, após a sua conquista pelo exército do Alentejo em Junho de 1664.A relação foi elaborada em Estremoz, a praça principal da província do Alentejo (o equivalente a quartel-general) desde que o Conde de Schomberg resolvera retirar essa função a Elvas, por esta se encontrar mais exposta aos ataques do inimigo. O autor da relação foi o vedor do exército provincial, João Mendes Mexia. O documento é aqui vertido para português corrente.

Sete peças de artilharia, a saber: duas de cinco libras, que se acharam na mesma praça, dois meios canhões de 24 e três peças de dez, todas montadas. _7

Quatro reparos de sobresselente. _4

Duas mil e quatrocentas balas de artilharia para as ditas peças. _2.400

Oito rodas de reparos de sobresselente. _8

Quatro eixos de sobresselente. _4

Colheres, soquetes e lanadas e o mais pertencente à artilharia

Duzentos e dezoito mosquetes e arcabuzes que se acharam nos armazéns da mesma praça. _218

Oitenta partasanas que se lhe meteram. _80

Oitocentas granadas, em que entram 244 que se acharam na mesma praça. _800

Oitenta alcanzias de barro [panela de barro com matéria explosiva] que se acharam nos armazéns da mesma praça. _80

Mil e duzentas arrobas de pólvora, em que entram 476 que se acharam na dita praça. _1.200

Seiscentas e quarenta arrobas de pelouros de chumbo, em que entram 400 que se acharam na dita praça. _400

Quinhentas e cinquenta arrobas de morrão, em que entram 200 que se acharam na dita praça. _550

Mil e seiscentas ferramentas sorteadas, em que entram noventa e oito que se acharam na dita praça. _1.600

Cem marraços que se lhe meteram. _100

Vinte e quatro machados que se lhe meteram. _24

Quinze arrobas de ferro que se lhe meteram. _15

Doze arrobas de breu. _12

Dois alqueires de alquitrã. _2

Dezoito bombas aparelhadas. _18

Dois mil saquinhos de trincheira que se lhe meteram. _2.000

Mil ceitinhas de esparto que se lhe meteram. _1.000

Trinta tabuões de plataforma. _30

Tudo o que contém esta relação ficou dentro em Valença antes de levantar o exército.

Em três de Julho deste ano se lhe remeteram de Castelo de Vide cinquenta arrobas de morrão. _50

Em quatro de Julho se remeteu desta praça oitenta barris de pólvora, que pesaram cento e cinquenta arrobas. _80

Quarenta cunhetes de pelouros de chumbo, que pesaram cento e cinquenta arrobas. _40

Vinte bombas aparelhadas. _20

Duzentas granadas aparelhadas. _200

Cem rodelas. _100

Quarenta pistolas. _40

Cem panelas de fogo. _100

Quinhentos fachos. _500

Dez arrobas de breu. _10

Duas arrobas de salitre. _2

Meia arroba de enxofre. _ ½

Meia arroba de carvão de vides. _ ½

Duas arrobas de fio de carreto. _2

Doze varas de pano de linho. _12

Meio arrátel de alcanfor. _ ½

Quatro arráteis de cera. _4

Meia arroba de sebo. _ ½

Ficaram na dita praça, para se dar princípio a fortificação da dita praça, antes de levantar o exército, trezentos e cinquenta mil réis em dinheiro. _350.000

Hoje, sete do corrente, se remeteram quatrocentos mil réis para a fortificação dela. _400.000

Cento e vinte cinco arrobas de morrão. _125

Estremoz, 7 de Julho de 1664

João Mendes Mexia

Fonte: “Rellação da Artilharia Armas e muniçoenz que se tem remetido, e ficarão na Prassa de Valença”, ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1664, mç. 24, documento de 7 de Julho de 1664, anexo à consulta de 19 de Julho.

Imagem: Praça de Valência de Alcântara, in La Memoria Ausente. Cartografía de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII, de Isabel Testón Núñez, Rocío Sánchez Rubio y Carlos Sánchez Rubio (4 Gatos, 2006).

Material de guerra existente nas praças de Riba Coa em Março de 1657

Duas cartas de D. Rodrigo de Castro para o Conselho de Guerra, datadas de 4 e de 11 de Março de 1657, dão conta da situação das praças do partido de Riba Coa, que o futuro Conde de Mesquitela governava, e do material de guerra aí existente.

Havia à época 42 peças de artilharia naquele partido militar, com o seguinte detalhe:

Artilharia para sair em campanha:

– 5 meios-canhões de bronze que necessitavam de reparos, com suas guias e carros matos. Com a ferragem que havia nos velhos, podiam ferrar-se três reparos com dois pares de rodas, e podiam consertar-se, com pouco custo, as rodas para as guias e um carro. Faltavam demais sobressalentes e tabuões para as respectivas esplanadas (posições preparadas onde eram colocadas as peças) e calabreses grossos e miúdos para serem tiradas em campanha.

– 4 quartos de canhão de bronze, para os quais eram necessários 4 reparos com guias e outros tantos carros matos. Havia reparos nos velhos para três reparos com rodas, e havia dois pares delas sem ferragem. Faltavam-lhe sobresselentes, tabuões para as esplanadas e calabreses miúdos e grossos para estas peças serem tiradas em campanha.

– 4 falconetes de bronze. Havia ferragem para os reparos, rodas e guias, era necessário sobressalente, tabuões para as esplanadas e calabrês para saírem em campanha.

A artilharia que não estava prevista sair em campanha também era referida em detalhe:

– Para 2 colubrinas de bronze, faltava tudo o que não fosse ferragem para um reparo com as respectivas rodas.

– Para 1 colubrina de bronze faltavam rodas e ferragem.

– Para 1 meio-canhão de bronze, havia ferragem para o reparo e rodas.

– Para 6 sacres de bronze, havia somente ferragem para três reparos com as respectivas rodas.

– Para 2 meios-canhões de ferro havia ferragem para um reparo e rodas.

– Para 17 peças de ferro, havia ferragem para 5 reparos e rodas.

Necessitava-se, para as peças que haviam de estar na muralha, de madeira para guaritas, e de cocharas, lanadas e soquetes para todas.

Material de guerra existente nos armazéns

Nos armazéns da província havia 117 arcabuzes consertados, 770 piques, 230 forquilhas, 720 frascos, 630 bandolas de mosquete e arcabuz, e 30 de carabinas. Alguns dos frascos estavam desconsertados, e havia 144 arcabuzes e 333 mosquetes desconcertados (ou seja, avariados ou truncados). Para a infantaria havia 104 corpos de armas, mas nenhuns para a cavalaria, nem carabinas e pistolas, do que estava a cavalaria muito necessitada. Por isso, D. Rodrigo de Castro solicitava o envio de 200 carabinas, 150 pares de pistolas e 200 corpos de armas.

Outras necessidades: 1.513 quintais e 116 arráteis de pólvora, 25.200 balas, e para os 9.000 homens que haviam de guarnecer as praças, à razão de meio arrátel por dia, e a dois arráteis por todo o tempo dos dois meses que haviam de sair em campanha, eram precisos 1.210 quintais e 76 arráteis de pólvora; e de balas sorteadas de outros tantos, e o mesmo de morrão, para o que só havia nos armazéns 211 quintais de pólvora, 116 de balas sorteadas, 225 de morrão, 2.011 balas de artilharia. Destas, escrevia D. Rodrigo, havia no Fundão grande quantidade, embora ainda não soubesse ao certo o número de balas.

Na segunda carta, de 11 de Março, dá conta D. Rodrigo de Castro que se preparava para reunir os 3.000 infantes e 200 cavalos que a Coroa mandou estarem a postos para acudir ao Alentejo, dos quais infantes, no entanto, não poderiam ir só os pagos e auxiliares, porque todos juntos não perfaziam os 3.000 necessários. Seriam necessários 4.500 infantes para guarnecer as 9 praças principais, acasteladas, que havia na raia, com fortes e artilharia, e de um pé de exército de 3.000 ou 4.000 homens.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, mç. 17, cartas anexas à consulta de 28 de Março de 1657.

Imagem: “Combate de cavalaria” (pormenor), pintura de Pieter Meulener.

A defesa da costa portuguesa em 1644 (9) – Fortaleza de Peniche

Com esta nona parte encerra-se a transcrição do documento relativo ao estado das fortalezas da barra de Lisboa, de Setúbal e de Peniche em 1644. Recordo que já aqui tinha sido publicada uma entrada sobre a Fortaleza de Peniche relativa ao mesmo ano de 1644, mas acerca de outro assunto, que complementa a informação aqui deixada.

Fortaleza de Peniche

Há nesta fortaleza sete peças de bronze, a saber:

Três meios-canhões reforçados de 15 libras, com suas carretas novas, mas não estão alcatroadas por não haver alcatrão.

Uma meia-colubrina de dez libras com sua carreta.

Outra meia-colubrina bastarda de 14 libras.

Um sacre acolubrinado de 3 libras.

Um sacre de cinco libras.

Há mais nesta fortaleza quinze peças de ferro que tiram a sete, seis, cinco, e três libras. Uma só peça destas tem carreta nova, as demais velhas e de mui pouco serviço.

Necessita de mais vinte peças de bronze com suas colheres, atacadores e lanadas; e para todas as mais peças.

E de balas enramadas [ou seja, de grilhão ou cadeia] de toda a sorte.

Cada peça necessita de duas outras carretas de sobresselente.

Há nesta fortaleza cinquenta barris de pólvora, que levam 40 quintais.

Balas de até seis libras, cento e sessenta.

De sete libras, 35.

De dez libras, 133.

De doze libras, 200.

De catorze libras, 50.

Há mais mil balas de seis e cinco libras que estão misturadas.

Quinze cagetas de pelouros de mosquete e arcabuz.

Trinta e um quintais de morrão.

E enxadas 150, mas muitas delas rotas.

Picaretas 100, mas muitas que se não pode trabalhar trabalhar com elas.

Camartelos, 4.

Alavancas, 6.

Necessita também de mais pólvora.

E de pelouros e de morrão em grande quantidade, para que havendo alguma ocasião não faltem.

E de grande quantidade de serrinhas pequenas, que não há nenhuma.

E de capas e paus, para que se possam entrincheirar no posto que se lhe mandar ocupar.

Há nesta fortaleza trinta quintais de arroz em três pipas.

Um quarto de duas arrobas de açúcar.

Meia pipa de azeite.

Seis alqueires de ameixas e seis de lentilhas.

Necessita de pão, vinho e legumes, e que disto se lhe meta a quantidade a respeito da gente que houver de assistir naquela praça.

Que será conveniente haver nela seis companhias de guarnição, que se poderão tirar das duas comarcas de Leiria e Torres Vedras.

Fonte: “Relação da gente paga, artelharia armas munições carretas mantimentos e mais cousas que ha nas fortalezas da barra desta cidade e nas de Setuual, e do que necessita cada huã dellas”, anexa à consulta do Conselho de Guerra de 12 de Agosto de 1644 (ANTT, CG, Consultas, 1644, maço 4-B).

Imagem: Vista parcial da Fortaleza de Peniche na actualidade. Fotos de Jorge P. de Freitas.

A defesa da costa portuguesa em 1644 (8) – Fortaleza de São Sebastião da Caparica

O historial da Fortaleza de São Sebastião da Caparica (também conhecida por Torre de São Sebastião ou Torre Velha) pode ser encontrado num artigo bastante interessante e fiável da Wikipédia, pelo que dispenso acrescentar mais pormenores. O relatório de 1644 referia o seguinte:

Fortaleza de São Sebastião de Caparica

Há nesta fortaleza seis peças de artilharia, a saber: dois canhões de 44 libras; um pedreiro acamarado de 30 libras de pedra; uma colubrina de 14 libras; um meio-canhão de 24 e um falconete de duas, em que se ensinam os artilheiros. Necessita de duas colubrinas de 16 até 18 libras.

Estas peças estão todas encarretadas. Necessitam de uma carreta cada uma de sobresselente.

Balas de artilharia

Tem a colubrina 163 balas. Necessita de 200 mais.

O pedreiro, 120. Necessita de outras 200 mais.

Os dois canhões, 400. Necessitam de 200 mais.

O meio-canhão, 200. Necessita de outras 200.

O meio-falconete [sic], 100. Necessita de 200 mais.

Há mais nesta fortaleza 100 balas de cadeia, cinquenta de 24 libras e cinquenta de 14.

Armas

Há nesta fortaleza cinquenta mosquetes. Necessita de outros 50 mosquetes.

20 arcabuzes, 16 piques e 9 chuços.

Para os mosquetes há três quintais e meio de balas, para os arcabuzes 4 quintais. Necessita de outra tanta quantidade.

Pólvora

Há 20 quintais de pólvora em 18 barris. Necessita de outros 20 quintais dela.

Mantimentos

Há nesta fortaleza 40 quintais de biscoito.

10 de arroz.

Quatro pipas e vinho.

Seis almudes de azeite.

Duas arrobas de açúcar.

Seis alqueires de lentilhas.

E seis de ameixas.

Havia mais nesta fortaleza 60 arrobas de toucinho, dois moios de feijões, um de chicharros e meio de favas, que por terem recebido algum dano, e se não perderem e corromperem de todo, se deram por ordem do Conselho da Fazenda para a galé, e agora se anda requerendo nele se lhe restituam.

E por estes mantimentos, para cinquenta pessoas de ração que há na dita fortaleza, não bastarem mais que para dois meses, convirá que se metam nela mantimentos para quatro.

Necessita esta fortaleza de uma cisterna dentro, porque não tem nenhuma água.

E que se lhe acabe a ponte que está começada, pois tem a madeira para isso já dentro.

Fonte: “Relação da gente paga, artelharia armas munições carretas mantimentos e mais cousas que ha nas fortalezas da barra desta cidade e nas de Setuual, e do que necessita cada huã dellas”, anexa à consulta do Conselho de Guerra de 12 de Agosto de 1644 (ANTT, CG, Consultas, 1644, maço 4-B).

Imagem: A Fortaleza de São Sebastião da Caparica (ou o que resta dela) na actualidade. Foi nesta “Torre Velha” que esteve preso D. Francisco Manuel de Melo. Foto de Pateb, reproduzida de acordo com a licença em vigor, a partir daqui.

A defesa da costa portuguesa em 1644 (6) – Fortaleza de Cascais

Fortaleza de Cascais

Há nesta fortaleza sete peças de artilharia de diferentes calibres com seus encavalgamentos novos e o mais tocante a elas. Necessita de mais artilharia e de pólvora, e morrão, porque há muito pouco e mau. E também de lanadas e tacos para a artilharia.

Pelouros de canhão, 450.

De colubrina, 170.

De meia-colubrina, 130.

Pelouros de pedra de pedreiro, 60.

Trezentos e quarenta arcabuzes com 20 frascos de pouco serviço. Necessita de dez frascos de arcabuzes.

26 mosquetes com 20 frascos, e os seis desmanchados. Necessita de mais 29 com seus frascos.

Dez quintais de pelouros de chumbo de mosquete e arcabuz, onde entram quatro pastas de chumbo.

Dezanove piques velhos, a metade sem ferro e carunchoso. Necessita de cinquenta chuços.

Há nesta fortaleza vinte e três pipas de vinho.

50 quintais de biscoito.

30 de toucinho.

23 de arroz.

Quatro moios de legumes sorteados.

Um quarto com seis alqueires de lentilhas.

Outro com duas arrobas de açúcar.

Outro com seis cântaros de azeite.

Outro de seis almudes cheio de ameixas.

Necessita também de um sino para a sentinela e de um cabo para guindar a artilharia.

Fonte: Veja-se a 1ª parte desta série.

Imagem: Fortaleza de Cascais na actualidade. Foto de Carlos Luís M. C. da Cruz, reproduzida de acordo com a licença em vigor, a partir daqui.

A defesa da costa portuguesa em 1644 (5) – Forte de Santo António da Barra


Forte de Santo António da Barra

Há neste forte três canhões de bronze de 36 libras de bala. Uma colubrina de dezoito. Duas meias-colubrinas de dez. Todas estas peças são de bronze e estão encavalgadas com seus reparos novos.

Há três caixas velhas, e delas há uma só que pode servir pondo-se-lhe rodas novas, e a ferragem das outras poderá servir para outras novas de sobresselente.

Há para os três canhões 481 balas.

Para a colubrina 158 balas.

Para as duas [meias-]colubrinas 56 balas. É necessário quantidade de balas para estas duas peças.

Há mais 54 balas de 12 até 13 libras e 359 de seis até oito libras, que não servem para esta artilharia.

Para os três canhões há duas colheres. É necessária outra.

Para a colubrina há outra colher.

Para as duas [meias-]colubrinas há uma colher. É necessária outra.

Há sete soquetes com suas lanadas. São poucas.

Um martinete com seu fuso.

Uma escaleta com seu perno.

Dois banquinhos.

Três alçapremas. São necessárias mais.

Seis pés de cabra.

Quarenta espeques.

Oitenta e dois cartuchos para os dois canhões. São necessários mais.

Vinte e dois cartuchos para a colubrina. São necessários mais.

Quarente e sete cartuchos para as duas meias-colubrinas. São necessários mais.

Dezasseis pães de chumbo grandes.

Doze bombas muito velhas.

Sete sotroços.

Armas

Três esmerilhões com suas bandeirolas.

Vinte e cinco mosquetes de pinçote [suporte para encaixar na muralha]. São necessárias bandeirolas para eles, que as não têm.

Vinte e um mosquetes biscaínhos aparelhados.

45 arcabuzes com vinte e seis frascos. São necessárias bandeirolas para os mais.

Há mais nove frascos biscaínhos.

Há em três barris quantidade de balas de mosquete e arcabuz.

Há sessenta formas para se fazerem balas de mosquete e arcabuz.

Vinte e três piques.

Catorze chuços com cabos e sem eles.

Três enxadas. São poucas.

Dezoito picões. Sessenta e oito picaretas. Cento e cinquenta e quatro pás de ferro. Para todas estas coisas são necessários cabos, que os não há.

Morrão e pólvora

De morrão haverá cinco quintais, pouco mais ou menos, e muito antigos e algum podre da humidade. É necessário mais.

Mantimentos que se meteram em Julho 1643

50 quintais de biscoito.

25 quintais de arroz.

30 quintais de carne de porco.

Seis cântaros de azeite.

Seis alqueires de ameixas passadas.

Seis de lentilhas.

Duas arrobas de açúcar.

Oito pipas de vinho.

Há quantidade de lenha de pinho.

De legumes sorteados, feijões, chicharros, favas, grãos e lentilhas poderá haver quatro moios e meio, pouco mais ou menos, e estes estão maltratados, por haver três anos que se meteram.

Necessita este forte de Santo António de uma cancela na primeira porta, por ser podre a que tem e não ter ferrolho, e a porta levadiça da porta da ponte está no mesmo estado. O rastilho necessita também de conserto. E é necessário, para serviço da artilharia, de ferramentas, como é machado, enxó e serra, porque as não há.

Fonte: Veja-se a 1ª parte desta série.

Imagem: “Ciudad de Lisboa, 1661, a 4 de febrero. Verdadera Relación del porto de Lisboa y sus fortificaciones modernas que aún non están acabadas”. Mapa das defesas costeiras da barra de Lisboa e de Setúbal, elaborado por um espião ao serviço de Filipe IV de Espanha, e publicado em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

A defesa da costa portuguesa em 1644 (4) – Fortes de Paço de Arcos e de São João das Maias

Dando continuidade à descrição da situação da defesa costeira portuguesa entre as barras de Setúbal e de Peniche, e tendo iniciado esta descrição pela barra do Tejo, seguindo o documento apresentado ao Conselho de Guerra em Agosto de 1644, cabe hoje a vez aos Fortes de Paço de Arcos (ou São Pedro de Paço de Arcos) e de São João das Maias.

O primeiro destes fortes já não existe. Tendo sido erguido em 1641, tal como o segundo acima referido, foi definitivamente destruído em 1975, para dar lugar aos novos edifícios da Escola Militar de Electromecânica. O Forte de São João das Maias ainda subsiste e localiza-se no moderno passeio marítimo de Oeiras, mas encontra-se no lamentável estado de degradação que a foto documenta.

Forte de Paço de Arcos

Há neste forte dez peças de artilharia de ferro de vários calibres, com seus reparos, cunhas e soleiras.

Dezasseis arcabuzes com dezasseis bandolas.

Quarenta e nove piques grandes e pequenos.

Cento e uma palanquetas de ferro, de seis e sete libras [palanqueta era um tipo de munição constituído por duas balas ligadas por uma haste de ferro – veja-se a este respeito, e para ilustração, um artigo já aqui publicado].

Setenta palanquetas de ferro de duas libras.

Trezentas balas rasas de ferro.

Mais cinquenta palanquetas de ferro.

Cem balas de cadeia.

Necessita este forte de Paço de Arcos de trinta soldados.

De dois meios-canhões de bronze com balas em quantidade, duzentas de seis libras; e duzentas de duas e quatro [libras]; e cento de oito [libras].

E de um martinete para encavalgar a artilharia.

Quatro colheres de artilharia.

Dez soquetes de toda a sorte.

Um botafogo de campanha.

Duas arrobas de cevo.

Dois sacatrapos e dois rascadores da artilharia.

Doze pés de cabra.

200 cartuchos de toda a sorte.

Doze peles para lanadas.

Seis hásteas de sobresselente.

Doze quintais de morrão.

Dezasseis quintais de pólvora.

Trinta e quatro mosquetes com suas forquilhas e frascos.

Oito quintais, uma arroba e vinte e quatro arrobas de balas de mosquete e arcabuz.


Forte de São João das Maias

Há neste forte cinco peças de artilharia de ferro com seus reparos, cunhas e soleiras.

Duas colheres de artilharia com dois soquetes e suas lanadas.

Quatro botafogos de campanha.

Duas arrobas de cevo.

Dois sacatrapos.

Duzentos cartuchos de pano sorteados.

Cinco arrobas de balas de mosquete e arcabuz.

Vinte e cinco piques velhos.

Necessita este forte das Maias de 20 soldados e dez artilheiros com um condestável.

De três colubrinas de alcance, balas para elas e para as demais peças de ferro em quantidade.

Seis pés de cabra e 24 espeques.

De uma alçaprima, e uma cavilha para ela.

De uma cabrilha para encavalgar a artilharia.

De doze peles para lanadas, e seis hastes para elas.

De doze arandelas e vinte sotroços de ferro.

De doze quintais de pólvora.

De seis quintais de morrão.

De trinta mosquetes e vinte chuços.

Imagem: O Forte de São João das Maias na actualidade. Fotografia de Adrião, reproduzida de acordo com a licença em vigor, a partir daqui.

A defesa da costa portuguesa em 1644 (3) – Torre da Cabeça Seca (Forte de São Lourenço da Cabeça Seca, ou Bugio)

Conhecida durante a Guerra da Restauração como Torre da Cabeça Seca, esta fortificação é actualmente designada por Forte de São Lourenço da Cabeça Seca, ou simplesmente Forte do Bugio.

Torre da Cabeça Seca

Tem esta força sete peças de artilharia de diferentes calibres.

662 balas de artilharia de todo o calibre, em que entram 32 balas de pedra.

9 barris de pólvora.

4 caixões de balas de mosquete e arcabuz.

5 colheres de todo calibre.

3 sacatrapos.

24 mosquetes com doze frascos.

Um arcabuz.

Quatro pés de cabra.

Mantimentos

Doze quintais de biscoito.

4 de arroz.

3 de toucinho.

40 alqueires de grãos.

Duas pipas de vinho.

Necessita de 25 soldados, [e] dez artilheiros com um bom condestável.

De três colubrinas e quatro canhões com suas talhas e bargeiros para estarem na praça baixa, junto ao mar.

E de dois pedreiros [peça de artilharia] mais com a mesma prevenção.

Necessita também de hastes, soquetes, cocharras e lanadas para toda a artilharia, e de reparos.

E de 300 balas para a artilharia que for de novo, e de cem palanquetas.

E de seis quintais de morrão.

40 varas de setelarã para cartuchos.

E acudir-se com brevidade ao parapeito da plataforma de cima, que levou o mar, antes que arruine de todo.

Imagem: O Forte do Bugio, com o seu farol, na actualidade. Foto de Jorge P. Freitas.

A defesa da costa portuguesa em 1644 (2) – Fortaleza de São Gião (São Julião da Barra)

Continuando a transcrição iniciada aqui, passemos à Fortaleza de São Gião, hoje designada por São Julião da Barra.

Fortaleza de São Gião

Há nesta fortaleza [espaço em branco] peças de artilharia de bronze de diferentes calibres.

344 quintais e 22 arráteis de pólvora.

813 mosquetes de toda a sorte, velhos e novos; oito esmerilhões [espingarda antiga de cano comprido] de ferro.

128 arcabuzes velhos, e os mais deles sem caixas.

209 frascos de mosquetes velhos e novos.

193 bandolas de mosquetes.

235 forquilhas.

705 piques.

48 dardos.

31 quintais de morrão.

24 colheres de todo o calibre.

45 soquetes e lanadas já velhas.

Duas cabrilhas de encavalgar a artilharia.

12 pés de cabra.

4.608 balas de artilharia de toda a sorte.

Um monte de balas de pedra, e outro de ferro, miúdas, que não servem na artilharia que há.

30 quintais de balas de mosquete e arcabuz.

41 pães de chumbo.

140 cartuchos de pano de toda a sorte.

Mantimentos

200 quintais de biscoito.

Duas pipas de vinho.

Oito moios de grãos, favas, e chicharros.

12 quintais de bacalhau.

80 quintais de toucinho.

60 barris de arroz velho, e muito velho.

5 moios de feijões brancos velhos, 35 de feijões fradinhos, moio e meio de chicharros velhos.

4 pipas de vinagre.

Mantimentos de sobresselente

Trinta pipas de vinho, 4 de azeite e seis de vinagre.

Trezentos quintais de biscoito, de mais dos mantimentos que há na dita fortaleza, os quais convém se renovem, principalmente o toucinho, arroz e bacalhau.

Há nesta fortaleza 180 soldados e necessita de mais gente para guarnecer os três fortes da Cabeça Seca, Maias e Paço de Arcos, e levantar-se mais para este é preciso uma companhia, como Sua Majestade tem mandado.

Necessita também de 4 colubrinas de alcance, e seis pedreiros para as casamatas.

De 36 reparos.

50 peles para lanadas.

1.000 tachas para as pregar.

50 soquetes de todo o calibre.

100 espeques.

50 sotroços de ferro, e 50 arandelas.

200 varas de setelarã [tecido grosseiro] para cartuchos.

Oito barris de alcatrão e 6 quintais de breu.

200 granadas e 200 alcancias.

Dois quintais de enxofre.

4 pães de cevo e cabos velhos em quantidade para tacos.

500 balas de 24 libras e 200 de cinco.

250 quintais de pólvora e 200 palanquetas.

80 quintais de morrão para sobresselente.

50 tabulões.

400 sacos, ou pano para eles, para servirem de parapeitos.

400 carradas de lenha para esta fortaleza de São Gião e Cabeça Seca, e um barco de sal.

Fonte: Ver aqui.

Imagens: Em cima, planta da fortaleza de São Gião, c. de 1655, publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII. Em baixo, a fortaleza de São Julião, na actualidade, vista de norte para sul. Foto de Jorge P. Freitas.

A defesa da costa portuguesa em 1644 (1) – Torre de Belém

Por decreto de 30 de Julho de 1644, D. João IV ordenou que o Conselho de Guerra desse o seu parecer sobre consulta que o Conselho da Fazenda fizera sobre os artilheiros, o material de guerra e as provisões existentes nas fortalezas da barra de Lisboa, e nas de Setúbal e de Peniche, bem como sobre o que era necessário prover. As listas exaustivas de tudo quanto se encontrava em cada fortaleza surgem em anexo à consulta do Conselho de Guerra de 12 de Agosto de 1644.

Nessa consulta, o Conselho de Guerra apoiou o parecer do Conselho de Fazenda para que as fortalezas de Setúbal e Peniche, como distavam mais de Lisboa, tivessem tudo quanto fosse necessário dentro das suas muralhas, e para esse efeito o tenente-general da artilharia devia visitar aquelas fortalezas passado o mês de Setembro, numa época do ano em que os seus afazeres eram menores na capital do Reino. Quanto às fortalezas da barra de Lisboa, poderiam ser abastecidas do que estivesse em falta em qualquer altura, não requerendo muita urgência, à excepção da pólvora e das balas de diferentes calibres, que deveriam ser providenciadas de imediato. O Conselho de Guerra advertiu, por fim, que a consignação de 1.000 cruzados (400.000 réis) que se tinha atribuído ao tenente-general da artilharia era insuficiente para as necessidades das fortalezas, pelo que seria conveniente atribuírem-se outros mil cruzados, provenientes das tenças.

Passemos à transcrição (com ortografia actualizada) da parte relativa à…

Torre de Belém

A Torre de Belém tem 14 peças de artilharia de bronze e de diferentes calibres, a saber:

Um canhão de 24 libras de bala.

Sete meios-canhões de 16 [libras].

4 meias-colubrinas de 12 e outra de dez [libras].

Um falconete de uma libra.

Os sete meios-canhões têm duzentas balas. Necessitam de 600 balas novas e 200 de cadeia.

Tem 4 colheres [instrumento utilizado para carregar a peça com bala, pela boca]. Necessita de três mais. Necessitam também de cinco reparos com suas rodas.

As 4 meias-colubrinas têm bastantes balas. Tem uma colher. Necessitam de mais 3. Também faltam 4 rodas para os reparos; 12 hásteas de 21 palmos, duas dúzias de soquetes [peça em madeira que servia para impelir a carga na alma da peça, quando se carregava], uma [dúzia] de 16 [libras] e outra de 12; e duas dúzias de granadas de pau para as lanadas [hastes envolvidas em lã numa das extremidades, para limpar o interior das peças após cada tiro].

À meia-colubrina, falta-lhe um reparo e rodas.

Tem a Torre de Belém 65 quintais de pólvora – faltam-lhe 35 mais.

Tem 50 mosquetes de Flandres com suas bandolas. E 40 de sobresselente de Barcarena, com seus frascos; tem mais 28 mosquetes e arcabuzes. Tem mais 50 piques.

Tem necessidade a dita Torre de 14 pranchadas de chumbo para os fogões da artilharia. Duas dúzias de cortiças para as bocas das peças. Meia dúzia de talhas para abocar a artilharia com seus montões, para a praça de baixo. De 50 varas de pano de linho para cartuchos, por não haver mais que 120 de todos os calibres. Necessita também de 2 quintais de cevo, 4 de breu, 4 de alcatrão, e de uma dúzia de soleiras e de duas dúzias de peles curadas ao vento.

Há na dita Torre 10 quintais de murrão. Tem necessidade de 20 quintais mais. Faltam-lhe também 12 quintais de amarra velha para tacos; meia dúzia de lanternas e meia dúzia de lampiões.

Necessita também de 8 tinas para a artilharia e uma pipa de vinagre. E de biscoito, vinho e legumes, conforme à dotação da mesma Torre.

Tem esta Torre 90 arrobas e três arráteis de arroz, que se lhe meteu em 16 de Abril de 1641, que está ruim e mal acondicionado. É necessário outro [arroz], conforme à dotação desta Torre.

Tem mais 6 alqueires de lentilhas e 6 de ameixas passadas. Necessita de mais. Tem também necessidade de lenha e de 60 cobertores e outros tantos enxergões para os soldados.

Tem 40 e tantos soldados. Faltam os mais para oitenta, que há-de haver nela conforme sua dotação.

Fonte: “Relação da gente paga, artelharia armas munições carretas mantimentos e mais cousas que ha nas fortalezas da barra desta cidade e nas de Setuual, e do que necessita cada huã dellas”, anexa à consulta do Conselho de Guerra de 12 de Agosto de 1644 (ANTT, CG, Consultas, 1644, maço 4-B).

Imagem: Torre de Belém na actualidade. Foto de J. P. Freitas.

Armamento de fabrico sueco chegado a Portugal em finais de 1641

Uma relação publicada em 1642 dava conta do material de guerra que o embaixador D. Francisco de Sousa Coutinho trouxera da Suécia em três naus de guerra, chegadas em Dezembro do ano anterior. O panfleto, com evidente finalidade propagandística, divulgava assim, sem grandes floreados, um êxito diplomático: o reconhecimento do Reino de Portugal – recentemente separado da monarquia Hispânica – por parte de uma potência europeia com peso militar na Europa da primeira metade do século XVII. A isto juntava-se o objectivo de mostrar que o exército português estava a preparar-se convenientemente para a guerra.

O panfleto é aqui transcrito com ortografia corrigida para português actual.

Relação das armas que do reino de Suécia traz Francisco de Sousa Coutinho, Embaixador às partes Setentrionais, em três naus de guerra.

Armas que vêm com preço feito.

Quatro mil mosquetes com capacetes e bandoleiras, custou cada um mil e quarenta réis.

Cinco mil piques, cada um cento e noventa réis.

Dois mil corpos de armas brancas, cada um setecentos e vinte réis.

Cem peças de artilharia de ferro, cada arratel quatro réis.

Cem peças de artilharia de bronze, não se sabe o preço.

Mil pistolas com suas bolsas, cada uma oitocentos réis.

Armas que vêm da Rainha da Suécia, para se venderem neste Reino.

Oitenta peças de artilharia de bronze.

Cinquenta de ferro.

Mil piques.

Dois mil e quinhentos corpos de armas.

Dois mil mosquetes.

Mil e duzentas pistolas com suas bolsas.

Armas que vêm de mercadores para se venderem neste Reino.

Setenta peças de ferro.

Sessenta peças de artilharia de bronze.

Oitocentos e cinquenta corpos de armas.

Setecentos piques.

Mil e novecentas pistolas com suas bolsas.

Vêm mais trinta mastros grandes.

Uma embarcação carregada de pólvora.

E alguns cavalos.

(…)

Em Lisboa, por António Alvarez, Impressor d’El-Rei Nosso Senhor, ano de 1642.

(Biblioteca Nacional, secção de Reservados, microfilme, F.R. 131)

Imagem: “Cena de Batalha”, Joseph Parrocel, The Courtauld Gallery, Londres.

Necessidades de material de guerra na província de Entre-Douro-e-Minho, 1657

O 2º Conde de Castelo Melhor, governador das armas da província de Entre-Douro-e-Minho, expôs em duas cartas enviadas ao Conselho de Guerra, em 13 de Agosto e 24 de Setembro de 1657, as necessidades que o seu exército tinha para poder encetar uma campanha ofensiva na Galiza durante o Inverno de 1657-58. Fez acompanhar uma delas da lista exaustiva do material indispensável, que intitulou “Ramo das Couzas e aprestos do Trem da Artilheria que hé nesessario pêra Hum exercito de oito mil Infantes, noueçentos Cauallos, & dous mil gastadores, Campearem dous mezes, em tempo de Inuerno, e fazer acometimento de Praça“.

Contudo, os conselheiros não se mostraram muito entusiastas na apreciação do pedido. Somente em Janeiro de 1658 apreciaram as cartas e a relação do material, e solicitaram à Rainha Regente que ouvisse de novo o Conde sobre as necessidades de defesa da província. Foi dada prioridade às tarefas defensivas: os quatro conselheiros (Pedro César de Meneses, o Conde do Prado, Salvador Correia de Sá e Rui de Moura Teles) reconheciam o valor e a experiência de Castelo Melhor na defesa e conservação de Entre-Douro-e-Minho, mas só Pedro César de Meneses referiu a possibilidade de conduzir uma guerra ofensiva na Galiza. Havia, sobretudo, que não descurar o Alentejo e a Corte (ou seja, a capital do Reino) ao enviar reforços para a província setentrional. A Rainha, em decreto de 5 de Fevereiro de 1658, mandou que se aplicasse o parecer de Moura Teles, que era conforme ao da maioria dos conselheiros.

Sem pretender transcrever exaustivamente a lista, apresenta-se aqui algum do material de guerra nela referido, pois ajuda-nos a ter uma percepção mais concreta do equipamento do exército português do período. Deste modo, o governador das armas solicitava o seguinte:

Artilharia

– 4 meios-canhões de 24 libras de bala.

– 2 quartos-de-canhão, ou meias-colubrinas, de 12 libras de bala.

– 4 bastardas ou peças de campanha de 8 libras.

Todas as peças deviam estar aparelhadas de todo o material necessário, incluindo sobresselentes. E recomendava o Conde: Estas dez peças acima hão-de ser de cano seguido, e de metal de toda a conta.

Munições para a artilharia e armas de fogo individuais

– Para as peças de 24 libras: 192 quintais de pólvora e 1.536 balas. (Um quintal equivalia a 4 arrobas, ou seja, um total aproximado de 45 quilos)

– Para as peças de 12 libras: 77 quintais de pólvora e 1.152 balas.

– Para as peças de 8 libras: 135 quintais de pólvora e 3.840 balas.

– Para se encherem 300 bombas de morteiro e para se encherem 1.000 granadas de mão: 25 quintais de pólvora.

– Para 5.000 armas de fogo necessárias para equipar 8.000 infantes: 300 quintais de pólvora.

– Para as 5.000 armas de fogo: 400 cunhetes de balas de chumbo de mosquetes biscaínhos e holandeses.

– Para as mesmas armas de fogo e para a artilharia: 250 quintais de morrão.

– Para os 900 soldados de cavalos propostos: 8 quintais de pólvora fina.

– Para a cavalaria: 10 cunhetes de bala miúda para pistola.

São ao todo 737 quintais de pólvora, 410 cunhetes de balas, 250 quintais de morrão, 6.528 balas de artilharia.

Armas e equipamento para a infantaria e cavalaria

– Armas de sobresselente para a infantaria e a cavalaria: 800, entre mosquetes e arcabuzes biscaínhos e holandeses, com suas forquilhas e frascos.

– 1.200 piques.

– 100 pares de pistolas com suas bolsas.

– 50 carabinas com suas bandolas.

– 50 selas e freios para cavalos.

– 2.000 pederneiras (para as pistolas da cavalaria).

– 200 pares de esporas.

– 50 corpos de armas com murriões (ou seja, peito, espaldar e capacete, equipamento defensivo para os cavaleiros).

– 50 alabardas (para os sargentos).

– 50 rodelas de ferro e outras tantas espadas largas cortadeiras (para os capitães das companhias de infantaria, ou para os voluntários em operações especiais).

– 60 borrachas grandes para levar, cada uma delas, uma arroba de pólvora (uma arroba: cerca de 11 quilos).

– 4.000 estribos pequenos para a cavalaria.

– 4.000 ferraduras de cavalos.

– 20.000 cravos para as ferraduras.

Fonte:  ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1658, mç. 18, consulta de 31 de Janeiro de 1658.

Imagem: Granada de mão (século XVII). Utilizada no combate próximo de infantaria, principalmente no assalto a fortificações ou em zonas urbanas. Foto de Jorge P. Freitas.

Cavalaria do exército do Alentejo em Junho de 1644

Joseph Parrocel

Cerca de um mês após o fraco desempenho da cavalaria do exército da província do Alentejo na batalha de Montijo, era este o efectivo das companhias portuguesas, segundo a mostra de 29 de Junho de 1644:

Companhia do general da cavalaria (Francisco de Melo, monteiro-mor do Reino): soldados montados – 82; apeados – 13; carabinas – 82; pistolas – 110; peitos – 65; espaldares – 63; murriões – 35.

Cª do tenente-general (D. Rodrigo de Castro, ausente por doença): soldados montados – 64; apeados – 0; carabinas – 46; pistolas – 57; peitos – 40; espaldares – 40; murriões – 38.

Cª do comissário-geral (Gaspar Pinto Pestana, exonerado e preso por ordem régia após a batalha de Montijo; cª a cargo do tenente): soldados montados – 56; apeados – 14; carabinas – 38; pistolas – 54; peitos – 43; espaldares – 43; murriões – 40.

Cª do capitão D. António Álvares da Cunha: soldados montados – 76; apeados – 0; carabinas – 67; pistolas – 94; peitos – 96; espaldares – 96.

Cª do capitão Fernão Pereira de Castro (prisioneiro em Espanha desde a batalha de Montijo; cª a cargo do tenente): soldados montados – 64; apeados – 2; carabinas – 51; pistolas – 61; peitos – 51; espaldares – 51.

Cª do capitão D. Francisco de Azevedo: soldados montados – 71; apeados – 5; carabinas – 44; pistolas – 95; peitos – 41; espaldares – 41.

Cª do capitão Francisco Barreto de Meneses: soldados montados – 59; apeados – 5; carabinas – 50; pistolas – 35; peitos – 24; espaldares – 24.

Cª do capitão D. Diogo de Meneses (prisioneiro em Espanha desde a batalha de Montijo; cª a cargo do tenente): soldados montados – 55; apeados – 6; carabinas – 48; pistolas – 87; peitos – 53; espaldares – 53.

Cª do capitão António de Saldanha: soldados montados – 44; apeados – 1; carabinas – 28; pistolas – 30; peitos – 17; espaldares – 17.

Cª do capitão D. João de Azevedo e Ataíde: soldados montados – 91; apeados – 1; carabinas – 63; pistolas – 78; peitos – 44; espaldares – 47; murriões – 47.

Cª do capitão D. Henrique Henriques: soldados montados – 49; apeados – 7; carabinas – 42; pistolas – 61; peitos – 35; espaldares – 35; murriões – 30.

Cª do capitão João de Saldanha da Gama (morto em combate na batalha de Montijo; cª a cargo do tenente): soldados montados – 88; apeados – 0; carabinas – 66; pistolas – 80; peitos – 51; espaldares – 51; murriões – 51.

[dragões] do capitão António Teixeira Castanho: soldados montados – 56; apeados – 2; arcabuzes – 56.

Efectivos totais: 911 (855 soldados montados, 56 apeados); não entram nesta conta os oficiais das companhias, capelães, furriéis, trombetas e ferreiros. Conforme se verifica, apenas metade das companhias dispunha de murriões ou capacetes. É notória a falta de armas de fogo (recorde-se que a dotação nominal por soldado seria de um par de pistolas e uma carabina). Todas as companhias de cavalaria eram, de facto, de cavalos arcabuzeiros, mesmo que honorificamente as dos oficiais superiores fossem classificadas como couraças – os verdadeiros cavalos couraças só seriam introduzidos em Setembro dese ano, com equipamento defensivo mais completo para os seus militares.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1644, mç. 4-A, nº 264, doc. anexo à consulta de 12 de Julho de 1644, “Rezumo das Companhias de Cauallo que neste Ex.to Seruem a SMgde Apresentado na mostra que se comesou em 29 de Junho 1644″.

Imagem: “Combate de Cavalaria”, Joseph Parrocel, Museum der bildenden Künste, Leipzig.

Ainda os “cavalinhos de pau”

011_Telena

O estimado amigo e investigador Julián García Blanco, a propósito do artigo sobre os “cavalinhos de pau”, enviou-me cópias de dois documentos impressos em Espanha durante a Guerra da Restauração, nos quais é feita menção àquele engenho que a infantaria portuguesa utilizava para se proteger da cavalaria inimiga. Obstáculos deste tipo eram usados desde a Idade Média e algumas variantes foram utilizadas durante a Guerra dos 30 Anos, como por exemplo o  jocosamente denominado por “Penas Suecas”, ou “Penas de Porco” – uma forquilha para mosquete, na qual estava incorporado um espigão para a defesa do infante atirador contra a cavalaria. No entanto, no contexto da guerra entre os vizinhos ibéricos, pelas referências até agora encontradas, parece ter sido de uso exclusivo dos portugueses, embora os obstáculos do género fossem bem conhecidos pelos militares espanhóis.

Na Verdadera Relación de la famosa Batalla, y vitoria que han tenido las armas Catolicas contra Portugal, viniendo a sitiar la Ciudad de Badajoz, de 1646, há uma passagem em que se demonstra a eficácia dos “cavalinhos de pau”. De acordo com o autor espanhol da Relación:

Nuestra cavalleria apretava fuertemente la contraria, y ella peleava siempre opuesta para salvar su infanteria. (…) Viendo el Marqués [de Molinguen] que el enemigo llegava ya al esguazo, dexando la mitad de la cavalleria de reten con la otra mitad, y con determinada, y no vista resolucion embistio la del enemigo hasta hazerla bolver las espaldas, y huir a su infanteria, que corriera la misma fortuna, si llegando a ella, no la toparan los nuestros guarnecida con un frente de crizos (que aqui llaman cavallos de palo) todos encadenados, y puestos a modo de peynes, de donde no pudo passar nuestra cavalleria, antes le fue fuerza retirarse de las muchas, y menudas cargas de mosqueteria que le dava el enemigo, logrando la ocasion que le dava el estorvo referido (…).

A descrição dos “cavalinhos de pau” corresponde à que o soldado Mateus Rodrigues deixou (com um detalhe mais minucioso) nas suas memórias sobre a campanha do forte de Telena e que aqui foi reproduzida.

Referência que se repete em outro documento, uma carta enviada pelo Marquês de Molinguen a Filipe IV de Espanha sobre a mesma campanha, entre 15 e 21 de Setembro de 1646, na qual, a dado passo, se descreve a disposição do exército português:

En 18 por la mañana amanecio en batalla, y su carruage y demas bagaje puesto en ordenança entre el esguazo del rio Guadiana y el fuerte de Telena, que dista menos de un tiro de cañon, deixandolo cubierto por el costado derecho de los vallados y viñas, que los ay desde el fuerte hasta el mesmo esguazo, y por el izquierdo le guarnecio de una hilera de carros, y otra de puerco espines, que ellos llaman cauallos de palo.

Note-se a designação de “porco-espinhos” aos obstáculos. Na relação, também impressa, do Marquês de Molinguen sobre a composição do exército português, pode ler-se que havia “quinientos cavallos de palo” entre o material de guerra do exército comandado por Matias de Albuquerque, Conde de Alegrete.

Fontes:

Copia de carta del Marques de Molinguen General del Exercito de Badajoz, escrita al Sñor Don Iuan de Santelizes e Guevara, del Consejo de Su Magestad en el Real de Castilla, y Governador de là Audiencia de Sevilla, su fecha en 21 de Setiembre deste año de 1646, en que se le dà quenta de lo sucedido en el Campo de Telena desde 15 del dicho mes, hasta los dichos 21. En que se incluye otra copia de la Relacion que el dicho Marques de Molinguen embió a Su Magestad sobre lo mismo, cuyo tenor es como se sigue, Sevilla, Juan Gomez de Ilas, 1646.

Verdadera Relación de la famosa Batalla, y vitoria que han tenido las armas Catolicas contra Portugal, viniendo a sitiar la Ciudad de Badajoz, Madrid, Carlos Sanchez Bravo, 1646.

Imagem: Planta de Telena, c. 1655, publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

Com um grande obrigado ao amigo Julián García Blanco.

Material de guerra existente na praça de Estremoz em Outubro de 1658

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Em Outubro de 1658, o exército espanhol comandado por D. Luís de Haro punha cerco à cidade de Elvas. Era a resposta ao fracassado cerco de Badajoz, meses antes, que deixara exangue o exército da província do Alentejo e fizera cair em desgraça Joane Mendes de Vasconcelos, o responsável pela operação. Por todo o Alentejo contavam-se as armas. Literalmente. Ao Conselho de Guerra chegavam listas com o número de homens e material de guerra disponíveis. Uma dessas listas foi remetida pelo almoxarife de Estremoz, Gabriel Castro Barbosa. Na falta de Elvas, submetida a impiedoso cerco, Estremoz passava a ser a principal praça de armas do Alentejo. O material existente em armazém era o seguinte:

Barris de pólvora – 1000

Feixes de morrão [para mosquetes, arcabuzes e peças de artilharia] – 210

Cunhetes de balas para mosquetes e arcabuzes – 1050

Armas de fogo – 200

Piques – 300

Correias de bândolas – 200

Frascos – 200

Bacamartes – 60

Peitos de armas e espaldares, “são antigos e mal consertados” – 120

Granadas [de mão] – 1900

Balas de 16 libras [para colubrinas] – 600

Balas de 24 libras [para meios canhões] – 1000

Balas de 7 libras [para bastardas] – 900

Enxadas – 1024

Picaretas – 790

Pás de ferro – 600

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1658, maço 18, “Numero das monisois que ora estão nesta praça”, relação enviada por Gabriel Castro Barbosa.

Imagem: Praça de Estremoz, publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

Os “cavalinhos de pau”

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Os cavalinhos de pau – designação lusitana seiscentista para os obstáculos portáteis vulgarmente conhecidos pelo termo francês “chevaux de frise” – foram muito utilizados em Portugal durante todo o período da Guerra da Restauração. Destinavam-se a proteger a frente dos atiradores de infantaria (arcabuzeiros e mosqueteiros), os quais não dispunham de meios eficazes para se defenderem da cavalaria inimiga no combate corpo-a-corpo. Como uma parte dos atiradores era destacada para formar as mangas do esquadrão, ou para se dispor entre os batalhões de cavalaria, ficavam sem a cobertura próxima dos piqueiros. Daí a utilização dos obstáculos portáteis.

Existem várias referências ao uso dos cavalinhos de pau. O Conde de Ericeira atribui a Joane Mendes de Vasconcelos a responsabilidade da introdução do seu fabrico no Alentejo, província onde foram bastante utilizados devido à natureza do terreno. O soldado Mateus Rodrigues (Matheus Roiz) deixou, nas suas memórias, uma descrição detalhada deste equipamento e do seu uso:

(…) [L]evavam os infantes os cavalinhos de pau às costas, cada dois soldados [levavam] um, e em cima deles levavam seus mosquetes, eram de comprimento de dez palmos [cerca de dois metros], com uma cadeia de ferro cada um em uma ponta, com um gancho, e no outro uma argola metida no mesmo pau, e assim como os queriam pôr como trincheira da infantaria, de noite ficavam todos pegados uns nos outros, de modo que não se podiam despegar; e estando postos na forma que digo, ficavam com uns bicos de pau para o ar, na mesma altura de um cavalo, pelos peitos, e em cada ponta dos paus tinha um bico de ferro como o de uma lança, mas maior e mais agudo, e não tinha cada pau mais de os mesmos dez palmos, mas cada cavalinho tinha cinco pontas destas, e por todas as partes que o pusessem ficava da mesma maneira; e assim a infantaria estava de noite tão segura com isto que bem podiam vir 20 mil cavalos, não haviam de romper a infantaria. (MMR, pgs. 106-107)

A descrição de Mateus Rodrigues reporta-se à campanha do forte de Telena (Setembro de 1646, erroneamente datada pelo soldado, nas suas memórias, em 1645). Ainda nessa campanha, o memorialista descreve um combate em que três terços de infantaria, protegidos por cavalinhos de pau, conseguiram suster os ataques de caballos corazas espanhóis junto às margens do Guadiana.

Os cavalinhos de pau eram, portanto, segmentos de madeira com cerca de dois metros de comprimento, os quais  comportavam cinco espigões de madeira revestidos de pontas de ferro bem aguçadas, e que se podiam atrelar uns aos outros através de um sistema de corrente com argola numa das extremidades, e gancho na outra. Não existe qualquer gravura coeva dos mesmos, mas em breve colocarei aqui um esboço de reconstituição de um desses segmentos.

Apesar de poderem ser transportados por dois soldados, os cavalinhos de pau não eram de fácil deslocação (note-se que os militares tinham ainda de arcar com o peso dos respectivos mosquetes ou arcabuzes). Por isso, havendo veículos hipomóveis disponíveis, os cavalinhos de pau eram neles transportados, como também descreve Mateus Rodrigues a propósito da campanha de Mourão em 1657, durante a qual 500 carretas puxadas por bois foram destinadas ao transporte daquelas defesas da infantaria.

Imagem: Exemplo de chevaux de frise (reconstituição moderna), maior, mais pesado e com mais espigões que os segmentos de cavalinhos de pau de construção portuguesa, mas destinado ao mesmo fim. Foto retirada deste site: http://www.geocities.com/lakeforts/Fort_Ontario.html

Nota à margem: por motivos profissionais, e também porque estou neste momento a avançar com a redacção de mais uma obra, não me tem sido possível actualizar com a frequência desejada a página da Guerra da Restauração. Quero, no entanto, aproveitar para agradecer de novo a Juan Antonio Caro del Corral e Julián García Blanco a preciosíssima ajuda que me têm dado com o envio de publicações e documentação de arquivos de Espanha, que muito úteis me têm sido para o prosseguimento do meu trabalho. O livro que a pouco e pouco vai tomando forma e que (assim espero) chegará aos escaparates no próximo ano será, também, fruto da colaboração daqueles estimados amigos e  investigadores. Bem hajam!

Artilharia (2) – as categorias das peças de campanha

As referências à artilharia eram geralmente feitas de acordo com o peso do projéctil disparado. Apesar da variedade de calibres e designações, é possível traçar um esboço da valoração e do agrupamento das peças de bronze em “categorias” baseando-nos no testemunho competente de D. Luís de Meneses, Conde de Ericeira, que foi general da artilharia do exército do Alentejo. Assim, na sua História de Portugal Restaurado (edição da Livraria Civilização, Porto, 1945-46, vol. IV, pg. 291) descreve a composição do trem de artilharia presente na batalha de Montes Claros, em 1665, agrupando as 20 peças do seguinte modo:

Quinze peças de 7, 6 e 4 libras.

Três peças de 12 libras.

Duas peças de 24 libras.

Como se vê, nenhuma se enquadra em absoluto nos exemplos mostrados no quadro que foi aqui apresentado, mas podemos arriscar que as de 7 e 6 libras seriam sacres ou meias colubrinas e as de 12 libras provavelmente colubrinas. As de 24 libras eram certamente os meios canhões que surgem também destacados noutras passagens da obra do Conde de Ericeira, como por exemplo a respeito da artilharia do exército de D. Juan de Áustria na campanha do Alentejo em 1663:

Constava (…) [de] dezoito peças de artilharia, em que entravam seis meios canhões, três morteiros, quantidade de munições e mantimentos (…). (Obra citada, vol. IV, pg. 103)

Destaque que prossegue mais adiante, ao referir-se às unidades e material militar ao dispor do Conde de Sartirana para a defesa de Évora, que os espanhóis haviam tomado:

(…) Treze peças de artilharia, em que entravam seis meios canhões (…). (ob. cit., vol. IV, pg. 124)

Os meios canhões eram as peças mais pesadas da artilharia de campanha em serviço nos exércitos português e espanhol na década final do conflito. Se quase toda a artilharia era de lenta deslocação, o peso destas peças maiores atrasava ainda mais a progressão do exército, exigindo cada peça muitos animais de tiro.

No entanto, foi também na última década do conflito que mais se empregaram peças de menor calibre, que apoiavam em proximidade a cavalaria e a infantaria com o seu tiro, sendo intercaladas entre os esquadrões e os batalhões. Não se tratava propriamente de uma novidade – há referências a peças ligeiras hipomóveis que acompanhavam a cavalaria em campanha no Alentejo, já nos anos 40, bem como à experimentação de canhões de couro, semelhantes aos usados pelo exército sueco de Gustavo Adolfo – mas o seu emprego táctico era agora mais frequente e eficaz.

Sobre os tipos de munição e a sua eficácia será aqui colocado em breve um artigo.

Imagem: Artilharia em acção. Trata-se de uma peça de pequeno calibre (3 ou 4 libras), usada no apoio próximo das formações de infantaria. Reconstituição histórica, Kelmarsh Hall, 2007. Foto do autor.

Artilharia (1) – uma pequena introdução

Para facilitar o nosso entendimento e com a ressalva de que esta sistematização não coincide na totalidade com qualquer distinção oficial usada na época, poderemos agrupar a artilharia em três categorias:

a) Artilharia de campanha, composta por peças de grande e médio porte e variados calibres. Era móvel, sendo as peças assentes em reparos dotados de rodas. Tirada por juntas de bois, mulas ou, mais raramente, cavalos. Exemplos deste tipo: canhões, meios canhões, colubrinas, sacres.

b) Artilharia ligeira, composta por peças mais leves, de calibres variados. O falconete é um exemplo deste tipo. Assente em reparos com rodas, o seu peso não exigia o emprego de muitas bestas de tiro. Algumas peças podiam ser deslocadas pela força de braços de um ou mais homens.

c) Artilharia de cerco. Peças de grosso calibre destinadas ao tiro curvo de projécteis explosivos e incendiários, regulados por fusos, como morteiros e trabucos. Eram transportadas em carros ou carretas, pois os seus reparos não estavam dotados de rodas.

Embora a variedade de calibres e de designações em uso na época seja impeditiva de uma sistematização coerente, uma passagem da obra de Philip Haythornthwaite sobre a Guerra civil Inglesa (The English Civil War 1642-1651. An Illustrated Military History, London, Brockhampton Press, 1994, pg. 53) dá-nos uma ideia dos calibres, peso das peças e dos respectivos projécteis:

Peça

Calibre

Peso da peça

(em quilos)

Peso da munição

(em libras e quilos)

Falconete

Sacre

Meia colubrina

Colubrina

Meio canhão

Canhão

51 mm

89 mm

114 mm

127 mm

152 mm

178 mm

95

1.134

1.633

1.814

2.722

3.175

1¼ lb/0,6 kg

5 ¼ lb/2,4 kg

9 lb/4,1 kg

15 lb/6,8 kg

27 lb/12,3 kg

47 lb/21,3 kg

Estes valores não devem ser tidos como absolutos, dadas as variações dentro do mesmo tipo de peça. Nas fontes portuguesas, para além das designações das peças, surgem por vezes as referências ao peso do projéctil que disparavam (em libras). O assunto será retomado num futuro artigo, no qual será tratado o tipo de munição, a cadência de tiro e o efeito da artilharia.

Imagem: Peça de artilharia ligeira. Reconstituição histórica, Old Sarum. Foto do autor.

Organização do exército português (2) – Infantaria: o equipamento das companhias

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Além da organização em terços, a infantaria portuguesa também compreendia companhias independentes (soltas, como então se dizia). No exército profissional eram raras e normalmente de curta duração, acabando quase sempre absorvidas por um dos terços existentes. O mesmo sucedia entre a milícia de auxiliares. Já na milícia de ordenanças, a companhia era a estrutura básica de organização, pois os terços eram formados ad hoc, isto é, para uma operação ou uma campanha específica.

Em qualquer dos casos, a organização interna das companhias seguia o previsto no projecto de Ordenanças Militares de 1643 (já aqui referido), que por sua vez reflectia a prática existente nos exércitos português e espanhol. De um modo geral, a proporção entre os soldados atiradores equipados com mosquete (de mecha) ou arcabuz (também de mecha)  e os soldados armados de pique não se afastava muito do que o projecto de 1943 preconizava. Tudo dependia da escassez temporária de determinado tipo de armamento – sobretudo, das armas de fogo – mas, ainda assim, os desvios não eram muito significativos. Os registos de certidões de contas de armas existentes para o período 1647-1654 no Arquivo Histórico Militar mostram que havia, em média, equipamento ofensivo para 90 a 100 soldados por companhia, sendo que a proporção dos mosquetes oscilava entre os 33% (mínimo) e os 49,5% (máximo), a dos arcabuzes entre 20,2% e 32,5%, e a dos piques entre 30,3% e 34,5%.

As companhias da ordenança eram equipadas com arcabuzes e piques, numa proporção de 2 para 1. Mas era possível encontrar companhias totalmente equipadas com arcabuzes. Sendo o mosquete mais pesado do que o arcabuz (e também com maior alcance efectivo, e mais potente), esta arma de fogo era encaminhada preferencialmente para as companhias de tropas pagas.

O equipamento defensivo referido nos registos mostra que o uso de cossoletes compostos por peito e espaldar (ou espaldas, como se dizia na época) era uma raridade entre a infantaria. Só os oficiais e os piqueiros tinham direito a este tipo de protecção, mas as proporções são baixíssimas em relação ao armamento ofensivo existente em cada companhia. Os peitos e espaldares variam entre 0,4% (mínimo) e 7,6% (máximo), os morriões entre 0,4% e 8,3% (e este máximo só é atingido em 1647, sendo cada vez mais escassos nos anos posteriores), as rodelas (escudos redondos utilizados pelos capitães) entre 0,2% e 0,4% e as golas (gorgeiras) entre 0,1% e 0,3%. No caso das rodelas e das golas, o uso exclusivo destas pela oficialidade justifica o reduzido número encontrado nas listas, mas ainda assim eram muito raras. Os capitães podiam optar por combater com pique ou com espada e rodela, ou com mosquete ou arcabuz, se assim preferissem.

O abandono de qualquer protecção metálica para o corpo era uma tendência evidente na infantaria. O Conde da Ericeira refere que cerca de 3.000 cossoletes de infantaria foram adaptados para couraças da cavalaria em 1663, por já não serem usados pelos infantes [História de Portugal Restaurado, 1945-46, vol. IV, pg. 101]. Por outro lado, o uso de couras (coletes ou casacas de couro) pela infantaria dependia da capacidade de cada militar se abastecer – por exemplo, despindo os mortos, feridos e prisioneiros inimigos, principalmente os cavaleiros e os oficiais. Não existe qualquer referência a este tipo de protecção nos registos, pois não era fornecida aos militares por conta da fazenda real.

Outro material que era fornecido e que constava nos registos eram as forquilhas (apoio para os mosquetes), os frascos (polvorinhos) e as bândolas (bandoleira de onde pendiam frasquinhos de madeira contendo o cartucho com a bala e a pólvora necessária para um tiro; normalmente cada bandoleira tinha 12 frasquinhos, daí serem conhecidas em Inglaterra por “doze apóstolos”). Havia forquilhas para mais de metade dos mosquetes, na maior parte dos casos; os frascos chegavam para cerca de 2/3 dos atiradores (os restantes teriam de providenciar os seus próprios polvorinhos ou utilizar o de um camarada, provavelmente); já as bândolas eram mais raras, na maior parte dos casos nem a terça parte dos atiradores as usavam.

Cada companhia tinha uma bandeira e duas caixas de guerra (tambores), mas algumas companhias só dispunham de uma caixa de guerra.

Os vestidos de munição (casaca, camisa, calças e meias), bem como chapéus e sapatos, eram entregues aos soldados uma vez por ano, contra desconto no soldo. Era à vedoria geral do exército de cada província que cabia esta tarefa. As espadas também eram entregues aos soldados pela vedoria, não sendo contabilizadas nos registos das companhias.

A companhia era uma unidade administrativa, não uma unidade táctica. Devido à composição heterogénea das companhias, estas eram desarticuladas quando os terços formavam em esquadrão (formação táctica, também designada por batalhão). Este assunto será tratado em breve.

 Fotos do autor (não mostram forças portuguesas ou espanholas, mas sim tropas inglesas do New Model Army; todavia, o equipamento era muito semelhante em qualquer exército da época): em cima, em primeiro plano, soldados atiradores transportando ao ombro um tipo mais leve de mosquete, o qual dispensava forquilha;  note-se o polvorinho, as bandoleiras com os “doze apóstolos” e a variedade de mochilas (o termo era empregue na época para designar os sacos de lona usados a tiracolo) e bornais, bem como o modo de segurar a mecha (segundo soldado a contar da esquerda); em baixo, piqueiros em marcha, protegidos por cossoletes sem escarcelas e usando morriões; vê-se ainda um sargento com alabarda a fechar a coluna e, mais atrás, um oficial (provavelmente um capitão); ambos usam golas. Reconstituição histórica do período da Guerra Civil Inglesa (conflito contemporâneo da primeira década da Guerra da Restauração),  levada a cabo em Kellmarsh Hall em Agosto de 2007.