Relação da tomada do forte de Telena e recontro dos exércitos junto ao mesmo lugar (Setembro 1646) – um documento inédito, 2ª parte

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Concluindo a transcrição da relação da campanha do forte de Telena, apresenta-se agora a segunda e derradeira parte:

Rendido o forte, nos retirámos todos ao quartel e o Conde de Alegrete, general, se resolveu em desmantelá-lo sem parecer de nenhum cabo, que era o que nos prejudicava a retirada, porque com o forte guarnecido não tinha a retirada nenhum perigo. Enfim desmantelou-se e trouxe-lhe tudo o que tinha, que de tudo tinha muito, em que entravam duas peças de artilharia de bronze muito boas, de doze libras, uma que havia sido nossa da ponte [de Nossa Senhora da Ajuda; ou de Olivença, como era então mais conhecida] e outra sua. E passado aquele dia em que o inimigo se havia aquartelado com o seu exército pouco mais de tiro de canhão do nosso, pareceu a todos que nos retirássemos, pois se havia feito a facção que nos obrigava a passar daquela parte, e que o exército não era capaz de passar adiante, nem havia sido nossa tenção outra que render Telena e tornar a Portugal; além de que também nos obrigava a fazê-lo termos o inimigo tão vizinho e tão poderoso na sua terra.

Sobre a marcha e a hora de marchar houve vários pareceres, e enfim se ajustou que se fizesse a retirada de dia com toda a bizarria, por reputação das armas de Sua Majestade. Marchou toda a bagagem aos 18 deste pela manhã com os terços que lhe tocou, ficando de retaguarda os mesmos que haviam vindo de vanguarda, sem mais diferença que levar Dom Sancho Manuel o corno esquerdo, e o direito Diogo Gomes [de Figueiredo, pai] e Francisco de Melo no meio. Marchava também de retaguarda toda a artilharia e cavalaria, e vendo-nos o inimigo retirar, suposto que já tão tarde que só os da retaguarda estavam para pelejar, por[que] tudo o demais ia já junto do rio, e muitos passando-os, saiu logo com sua cavalaria, e atacando com algumas tropas as nossas de escaramuça ainda antes de se descer a colina que baixa para o rio, com alguns tiros que se lhe fizeram com a artilharia, se retirou vergonhosamente, sem fazermos até então nada com a infantaria.

Era a tenção do inimigo entreter-nos para se vir chegando com a sua infantaria e com a artilharia, mas como se lhe entendeu, ainda que tarde, se resolveu o Conde de Alegrete no que todos os oficiais lhe gritavam, mas já em tempo que o inimigo vinha marchando com todo o cuidado por nos alcançar, porque reconhecia que estavam só daquela parte os três terços da retaguarda com a cavalaria e parte da artilharia. Marchávamos nós também em boa ordem, mas com cuidado a chegar-nos à ribeira, e chagados a ela virámos as caras, incorporando-se os três terços a tempo que o inimigo investia com toda a sua vanguarda a nossa cavalaria e a vinha atropelando, trazendo-a mais que de passeio até onde estavam os terços, de quem o inimigo recebeu tão bizarras cargas que tornou a voltar com perda de muitos. Assistia o mestre de campo general, persuadindo aos de cavalo que car[re]gassem ao inimigo, e nessa volta o fizeram alguns muito honrados, mas não tantos como eram necessários, e tornando, como eram poucos, a ser rebatidos e car[re]gados do inimigo que se vinha avançando com tudo, lhe tornaram a dar os nossos terços outras tão vivas rociadas que nem mais nem menos os tornaram a fazer desistir do intento. Caminhavam e pelejavam as usas mangas, mas sempre largaram o campo às nossas. Neste tempo sempre o general da artilharia andou valorosíssimo, porque sempre se achou muito empenhado, e da mesma maneira o mestre de campo general. Estavam os terços com notável firmeza e não se lhe[s] arrimava poder que não rechaçassem, até que da quarta vez que o inimigo deu com sua retirada lugar nos mandaram retirar, o que se fez com mais pressa do que os mestres de campo queriam. Contudo o inimigo não tornou a carregar, e passado todo o nosso exército desta parte sem perdo, nos pusémos então a canhonearmo-nos com a artilharia de parte a parte, despropositadamente, porque nos havíamos retirado até então com muito pouca gente morta, e então nos mataram alguma sem ser necessário. Dali marchámos até estes olivais em boa forma, e daqui passámos a Juromenha e tornámos para este posto, e para quê não sei eu nem o alcanço. Do que resultar ao diante darei conta. Em 26 de Setembro de 1646.

Como se pode ver, a relação – ou relatório, mais propriamente – está incompleta, embora trate do essencial da acção. Pela maneira como está redigida, a capacidade de comando de Matias de Albuquerque, Conde de Alegrete, não sai nada prestigiada, em contraste com os seus rivais, o mestre de campo general Joane Mendes de Vasconcelos e o general da artilharia André de Albuquerque Ribafria. De qualquer modo, a narrativa de Mateus Rodrigues sobre os acontecimentos, bem mais viva e pormenorizada e que já aqui foi publicada (veja-se a hiperligação para a série na primeira parte deste artigo), corrobora a fraca apreciação que os subordinados de Matias de Albuquerque tinham do seu comandante.

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Relações manuscriptas de Portugal, desdo anno de 1643 athe 1646″, fls. 76 v – 78.

Imagem: Combate de cavalaria, óleo de Pieter Meulener.

Relação da tomada do forte de Telena e recontro dos exércitos junto ao mesmo lugar (Setembro 1646) – um documento inédito, 1ª parte

(c) Royal Armouries Museum, Leeds; Supplied by The Public Catalogue Foundation

Entre Julho e Agosto de 2010 foi aqui publicada uma série de artigos acerca da tomada de Telena pelo exército do Alentejo, comandado por Matias de Albuquerque. Embora composta a partir de várias fontes, a série privilegiava a narrativa do soldado Mateus Rodrigues, que participou naquela campanha. Veja-se aqui o prólogo, a primeira, a segunda e a terceira partes dessa série.

O documento manuscrito português que a seguir se trancreve diz respeito à mesma campanha e faz parte do acervo da Biblioteca Nacional de Madrid, com o códice mss. 8187. Tem por título Relação da tomada do forte de Telena e recontro dos exércitos junto ao mesmo lugar e trata-se de uma relação da operação, provavelmente feita por um oficial ou clérigo que integrou ou acompanhou o exército.

Entrámos em Castela para sitiarmos o forte de Telena com tão poucas notícias do inimigo, que o imaginávamos com três até quatro mil infantes e mil e oitocentos cavalos. Persuadimo-nos que o inimigo nos viria a impedir a passagem de Guadiana, e assim marcharam de vanguarda, para tomarem o passo, mil mosqueteiros de todos os terços à ordem dos sargentos-mores dos terços dos mestres de campo Dom Sancho Manuel e Francisco de Melo. Acompanhava-os toda a cavalaria, e nesta forma se tomou o passo, e chegado o exército que marchava bem formado em batalha, passou todo. Levava o corno direito da vanguarda o terço do mestre de campo D. Sancho Manuel, e o esquerdo o de Francisco de Melo, e o de Diogo Gomes [de Figueiredo, pai] no meio, todos três aparelhados, e nesta forma seguindo os demais onde cada um lhe tocou. Marchámos aquele dia até aquartelarmos, que se fez com boa ordem, formados na mesma batalha. E ao seguinte dia, formados na mesma ordem nos fomos sobre o forte. Aquartelou-se o exército em bom sítio e forte, suposto que distante mas de tiro de canhão, mandaram-se-lhe tomar os postos por uns dos quinhentos mosqueteiros a cargo de D. Francisco de Castelo Branco com o general da artilharia, e vendo que, ou por poucos não eram de grande efeito, ou por serem de vários terços e não terem consigo seus oficiais não faziam nada, se ordenou a D. Sancho Manuel que avançasse com o seu terço, com que se lhe deu tão boa manhã, e se lhe fez tão boa diligência, que quando amanheceu se achavam as mangas de Dom Sancho no fosso, quebrando a estacada. Pelejava o inimigo bastantemente, mas as cargas da mosqueteria de Dom Sancho o reduziu a que nehum ousava a chegar à muralha, e vendo que lhe fazíamos brecha, e que pela parte de Dom Sancho se andava já com as espadas à sua vista, se resolveu a render-se, fazendo uma chamada. Os partidos [ou seja, condições de rendição] foram: que sairiam com suas armas e bagagens e que estariam em Portugal até nos recolhermos. Não estavam ainda acabadas as capitulações quando o inimigo vinha saindo de Badajoz com o seu exército para socorrer o forte, que não havia ainda vinte e quatro horas que o tínhamos atacado, e que lhe tínhamos posto as baterias não havia seis horas. Reconheceu o inimigo, como não [a]tirávamos, que estávamos senhores da praça, e reconhecemos nós o engano com que ali nos meteramos, porque víamos muitos esquadrões de infantaria e de cavalaria ao inimigo, mais do que lhe imaginávamos, e julgámos logo por coisa milagrosa o haver-se-nos rendido o forte, porque a não o fazer naquela hora, não o fizera vendo que era socorrido, e se o não fizera, não sabemos como nos fora possível o retirarmos, porque reconhecíamos ao inimigo nove mil infantes e três mil cavalos, que é o com que se achava, com sete peças de artilharia.

(continua)

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Relações manuscriptas de Portugal, desdo anno de 1643 athe 1646″, fls. 76 v – 78.

Imagem: Artilharia e infantaria, óleo de Pieter Meulener, período da Guerra dos 30 Anos (1618-1648).

A campanha do forte de Telena (Setembro de 1646) – parte 3 e última: a passagem do Guadiana e as querelas dos comandantes

Sempre perseguida pelo exército espanhol, a força portuguesa foi-se aproximando do Guadiana. O inimigo trazia dois mil e quinhentos infantes, mas o que mais nos perseguia era a cavalaria com as peças, e logo trazia 600 [cavalos] couraças que rompiam o demónio, de sorte [que] até Guadiana é meio quarto de légua, e como a palma da mão (…). Já tinham passado três ou quatro terços para além e outros três estavam já formados ao pé do porto de Guadiana, mas da parte de Castela, e todos mui bem formados sobre os barrancos do porto, por onde nós havíamos de passar, com os cavalinhos de pau por muralha, mas vinham ainda pelejando com o inimigo três terços e três peças de artilharia e a nossa cavalaria, mas se me perguntarem quem (…) obrava tudo isto em tão grande aperto, que só quem o viu sabe como era, que nunca jamais se viu poder nosso tão em balanços como naquele dia, se não fora um só homem fatalmente se perdia tudo sem apelação nem agravo, e quem (…) fez todo este bem, assim ao Rei como a todos nós, era o famoso Joane Mendes de Vasconcelos, que era ali então mestre de campo general; que nunca jamais se adjectivou bem [isto é, que nunca se deu bem] com nenhum governador das armas, nem em sua companhia havia nunca de fazer o que entendia, só para não dar o louvor a eles, mas isso não lhe tirava o conhecimento do seu préstimo, que suas obras o abonavam e o diziam.

Mas em esta ocasião viu que se perdia Portugal, vendo até ali a pouca ordem que Matias [de Albuquerque] tinha dado, (…) e assim vendo já tudo por um fio, então mostrou suas partes [isto é, o seu valor], que se fora à vista de um Rei não tinha mercês com que lhe pagar, e foi tão desgraçado, que na gazeta que se fez da ocasião não se falava nele, nem pouco nem muito, mas tudo isto nascia de muitos inimigos que ele tinha em o Conselho de Guerra, e assim falava só (…) quem não fez coisa nenhuma, nem pôs espada nem pensamento em castelhano. Finalmente que direi o modo com que este homem nos livrou da fúria do inimigo: não fazia mais que formar um terço à vista do inimigo, com uma peça diante, e assim como o inimigo se arrimava com a sua cavalaria dava-lhe carga [ou seja, disparava] belissimamente, de modo que o inimigo se fazia ao largo com a cavalaria e logo dava este terço uma volta depressa, e retirando-se atrás em marcha; mas assim como o inimigo carregava outra vez, logo já achava outro terço formado com outra peça dando carga ao inimigo. E assim vieram estes três terços com grande trabalho até chegarem ao porto onde estavam os outros três já entrincheirados, com os cavalinhos [de pau], e a este tempo ia o inimigo todo junto a nós. E nós também, com uma notável confusão na passagem do Guadiana, [acerca de] quem devia passar diante, e de tal maneira foi, que a nossa cavalaria passava por cima da infantaria, atropelando tudo, e outros se metiam a um grande prego que junto do porto estava, e alguns se afogavam com tanta pressa.

Mas o inimigo, vendo-nos nesta confusão, se resolveu de todo a nos avançar com toda sua cavalaria, botando diante as 600 couraças, (…) mas como não podia fazer-nos dano aos que vinham passando com esta bulha, em razão que estavam aqueles três terços sobre o porto (…), assim como averbou com eles (…) achou os cavalinhos [de pau] diante, levando os cavalos muitas feridas dos bicos de ferro. Deu-lhes os terços grandíssimas cargas, em que lhe mataram muita gente, e logo uma pouca de cavalaria nossa que vinha passando Guadiana, puxou por ela D. João de Mascarenhas para ir pelejar com o inimigo, que ia já em retirada ao largo. E logo toda a mais cavalaria nossa que estava já passada, vieram a buscá-la muitos oficiais. (…)

Não se pôde ter o inimigo, vendo-nos outra vez passar o porto, que assim [que] a nossa cavalaria começou a passar, veio outra vez o inimigo com maior força, (…) mas como os terços que estavam daquela banda lhe davam grandíssimas cargas, não se metiam com essa facilidade (…).

Ali fez um castelhano uma notável sorte, mas custou-lhe a vida, que assim como viu o guião real que trazia a companhia do general da cavalaria [na verdade, a do governador da cavalaria, pois D. Rodrigo de Castro não tinha patente de general] (…), se veio a ele como um raio, cuidando que o havia de apanhar, metendo-se por dentro de toda a cavalaria nossa, vindo passando o Guadiana; mas ele ficou estirado em o meio do areal, nu [sem dúvida porque foi logo despojado do equipamento e roupas pelos soldados portugueses, uma prática habitual na guerra], e não há dúvida que devia ser cavalheiro, porque homem tão alvo e tão gentil-homem não vi em minha vida, e o cabelo como um fio d’ouro, e bem moço, que não tinha 30 anos. (MMR, pgs. 115-117)

Dada a inutilidade das investidas sobre a infantaria portuguesa, a cavalaria espanhola pôs-se a coberto em posições desenfiadas. A sua infantaria tinha tomado abrigo nuns valados, e daí em diante apenas se trocou tiro de artilharia de ambos os lados. Os três terços portugueses foram manobrando com habilidade e passaram o rio, um deles cobrindo a retirada dos demais, alternadamente, mas a artilharia espanhola castigou duramente a força portuguesa que retirava. (…) Não era necessário fazer pontaria, senão atirar a montão, à sua vontade, (…) e não fazia tiro que não matasse cinco, seis homens e cavalos ou bois ou mulas das peças. (…) Vinha ali um capitão de cavalos (…), de seu nome Manuel da Gama, um bizarro soldado e mui cavalheiro e grande músico e mui bem entendido, que tinha seus dedos de poeta, mui querido de todos os fidalgos; (…) vem uma peça do inimigo a dar-lhe só nele e tira-lhe a cabeça fora dos ombros, ficando o corpo a cavalo por espaço de bom Credo, sem cair no chão, sem a bala ofender mais a ninguém (…). Não havia quem não sentisse a morte deste capitão, e os seus soldados mais que todos. (MMR, pgs. 118-119). Depois de duramente fustigados, os homens comandados por Matias de Albuquerque percorreram a distância que os separava de Elvas, onde chegaram em segurança.

A operação do forte de Telena, que durante tanto tempo perdurou na memória dos militares que nela participaram e nos registos oficiais, foi um grande empreendimento militar que redundou em fracasso. Não só os espanhóis retomaram a posse do forte, como acabaram de repará-lo em pouco tempo, de que ainda hoje [Mateus Rodrigues escrevia em 1654] o tem em posse eterna (…), porque já não há outro Matias de Albuquerque para intentar semelhantes empresas, nem hoje há nas fronteiras poder com que se obre tal. (MMR, pg. 118)

A colorida descrição da campanha, lembrada por Mateus Rodrigues no sossego de Águeda, cerca de 8 anos depois, é corroborada pelo Conde de Ericeira e por outras narrativas e documentos oficiais contemporâneos da acção. O desenlace da campanha cavou ainda mais a inimizade entre Matias de Albuquerque e Joane Mendes de Vasconcelos. O Conde de Alegrete deixou o governo das armas do Alentejo, que ficou a cargo, precisamente, do seu arqui-rival. Um ano depois, o Conde morria em Lisboa.

Não deixa de ser interessante, todavia, a opinião favorável a Joane Mendes, bem explícita por parte de Mateus Rodrigues nas suas memórias. Assim como já tinha acontecido na ocasião da batalha de Montijo, sobressai uma certa falta de confiança na capacidade de comando de Matias de Albuquerque. É uma perspectiva distante dos panegíricos que mais tarde surgiram a respeito do Conde de Alegrete. A “gazeta” a que o soldado de cavalos se refere na sua narrativa, a propósito do não reconhecimento público do papel desempenhado por Joane Mendes de Vasconcelos, é a seguinte: Svcesso, qve o nosso exercito de Alenteio gouernado por Mathias de Albuquerque, Conde de Alegrete, teue na tomada do forte real de Telena em Castella em 16 de Setembro de 1646, & encontro do mesmo exercito com o do inimigo. Lisboa, Paulo Craesbeeck, 1646.

Imagem: Maquete presente no Armémuseum de Estocolmo, retratando uma pequena parte de uma formação de piqueiros (de um regimento, no exército sueco, ou de um terço, no exército português). Note-se como o artista individualizou cada soldado, conferindo um pathos que espelha bem a apreensão antes da entrada em acção, bem como as consequências das doenças que afligiam muitos dos soldados em campanha – note-se a tez pálida e o aspecto doentio do piqueiro em segundo plano. Como curiosidade adicional, saliente-se que muitos piqueiros do exército do Alentejo teriam, em 1646, um equipamento (murrião e couraça) em tudo igual ao apresentado nas miniaturas, pois milhares de peças destas, bem como piques e outro material de guerra, tinham sido recentemente importados da Suécia. Foto de JPF.

A campanha do forte de Telena (Setembro de 1646) – parte 2: o início da retirada

Prossegue Mateus Rodrigues a narrativa da campanha do forte de Telena:

Em todo este tempo de continuação e assistência esteve o inimigo com todo o poder que já tinha junto bem ao pé de nós, um meio quarto de légua [em rigor, cerca de 600 metros, mas talvez um pouco menos do que o soldado refere], dando-nos sempre muitos rebates e enfadamentos, que de noite estava sempre a cavalaria montada e a infantaria de armas nas mãos, e de dia com grandes escaramuças uns com os outros, os de cavalo. E tinha o inimigo já tenção de nos seguir na retirada, por isso estava ali fora, como assim o fez, porque trazia 3.000 cavalos, que nunca (…) ajuntou tanto; mas trazia à volta de 800 éguas da ordenança (…). De maneira que depois do forte tomado, ainda nós estivemos em o quartel dois ou três dias, num dos quais nos fez o inimigo uma peça galante, que foi o dar-nos um grande trabalho, por imaginarmos que vinha a pelejar connosco uma tarde, (…) fazendo uma grande faceira [sic – o soldado terá querido empregar um termo derivado do verbo facetear, ou seja, zombar; seria, portanto, zombaria], que era passar com a cavalaria por um outeiro à nossa vista, e logo dava volta aquela mesma cavalaria por detrás do mesmo outeiro, e tornava a passar outra vez à nossa vista, e assim com estes estratagemas esteve fazendo mostra à nossa vista, que parecia muito mais cavalaria do que ele tinha, mas não somos nós tão parvos que não disséssemos que era faceira [sic]. (MMR, pg. 110)

O mesmo truque fez o inimigo com a infantaria, mas sem sucesso. No entanto, o conselho de oficiais maiores do exército, mandado reunir pelo governador Matias de Albuquerque, já tinha decidido o regresso do exército a Portugal, uma vez que seria impossível prosseguir e empreender o forte de S. Cristóvão, tendo o inimigo juntado um exército superior ao nosso em Badajoz.

Para não atrapalhar nem atrasar a marcha do exército, Matias de Albuquerque mandou todo o trem de carros, carroças e mulas atravessar o Guadiana para a banda de Portugal durante a noite. Pela manhã, começou a infantaria a marchar, mas a cavalaria permaneceu formada junto ao forte de Telena, para cobrir a retirada. Foi quando as tropas montadas começaram, por sua vez, a preparar-se para se porem em marcha, que se deu o segundo desaguisado grave entre o governador da cavalaria D. Rodrigo de Castro e o seu subordinado, tenente-general D. João de Mascarenhas, conforme narra Mateus Rodrigues. Diz o soldado de cavalos que D. Rodrigo ia deitado numa liteira por se sentir mal disposto (o futuro Conde de Mesquitela padecia com frequência de “uns achaques”, como referem vários documentos da época – provavelmente gota), e que os espanhóis lançaram um ataque com cerca de 1.000 cavalos, com grandíssima resolução, trazendo diante uma companhia de 80 cavalos escolhidos com um tenente por cabo, que devia ser o diabo, (…) que se veio a nós como bárbaro, metendo-se às pancadas como um doido, mas ele ficou ali logo e muitos soldados (…). (MMR, pgs. 111-112) A restante cavalaria espanhola lançou-se então em carga sobre a congénere portuguesa. D. João de Mascarenhas, jovem e impetuoso, ordenou uma contra-carga de espada na mão – e a cavalaria portuguesa começou a movimentar-se para o choque, em vez de permanecer formada para proteger o grosso do exército. Na liteira, D. Rodrigo de Castro nem queria acreditar no que via. De um salto, montou a cavalo e, galopando, conseguiu ultrapassar os batalhões portugueses e ordenar que parassem, com termos inequívocos: “Alto! Alto! Que bebedeira é esta? Eu não valho aqui nada? Nem sou o general desta cavalaria, para avançarem sem minha ordem?” (MMR, pg. 112). Mateus Rodrigues considera nas suas memórias, escritas cerca de 8 anos depois deste evento, que a intervenção de D. Rodrigo foi providencial para evitar um possível desastre, pois a manobra do inimigo era precisamente para atrair os portugueses a uma armadilha: mais cavalaria e infantaria suas se aproximavam, em número superior ao dos portugueses. Mas o tenente-general não reagiu bem à interferência do seu superior: os dois trocaram insultos e, tal como acontecera meses antes, só não chegaram a vias de facto porque outros oficiais intervieram.

D. Rodrigo de Castro assumiu o comando da cavalaria e iniciou a retirada.  Já a nossa infantaria ia toda do forte para baixo (…), e logo o inimigo veio com toda a cavalaria, carregando-nos com grande força e trazendo duas peças entre a mesma cavalaria, com seis mulas cada peça, que corriam com elas como a mesma cavalaria, e assim como chegavam a tiro, davam carga com elas [ou seja, disparavam], que faziam muito dano, porque ia a nossa gente toda numa pinha e não podia deixar de matar muita gente, porque fazia tiro de perto.

(…) Quando nos vínhamos retirando, e já bem apertados, ainda não tinham lançado o fogo às minas que estavam feitas para arrasar o forte, e quando se acordaram a mandar pô-lo, já o inimigo vinha à desfilada, correndo homens de pé a meter-se no forte. Contudo, Matias de Albuquerque prometeu uma bandeira [ou seja, promoção ao posto de alferes] a quem lhe fosse botar o fogo. Logo houve um soldado que se aventurou a lhe ir botar o fogo, e verdade seja que ele lho botou; mas (…) lá ficou em poder do inimigo, cativo, e assim como deu fogo às minas, fizeram elas tão pouca obra, que apenas se ouviu o estrondo entre nós, que como era obra de terra, empapou-se a pólvora nela e não derrubou nem uma vara de muralha, e assim lhe ficou outra vez em pé como estava, (…) havendo-nos custado mais de 600 homens. (MMR, pg. 113)

Na próxima parte conclui-se esta descrição, com a narrativa do combate travado nas margens do Guadiana.

A conclusão da série de artigos sobre o Forte de Telena no blogue Sigue las Huellas de Badajoz pode ser lida aqui.

Imagem: “Combate de cavalaria”, de Peter Snayers (detalhe).

A campanha do forte de Telena (Setembro de 1646) – parte 1: assalto e conquista

A mudança no comando da cavalaria do Alentejo, após o desaire da emboscada nas vinhas da Terrinha, não trouxe maior eficácia. Entre 1646 e 1647, a cavalaria portuguesa era frequentemente suplantada, em número e em qualidade, pela cavalaria espanhola, conforme é corroborado por variadíssimos documentos da Secretaria de Guerra e pela confissão dos “grandes medos” que os soldados sentiam, segundo as palavras de Mateus Rodrigues. A situação só melhoraria em 1647, com a chegada de Martim Afonso de Melo ao governo das armas do Alentejo e a introdução do “Contrato com os capitães de cavalos”.

A preparação da campanha de 1646 não podia ter corrido pior a nível das chefias: Matias de Albuquerque, agora Conde de Alegrete, fora nomeado governador das armas, ficando Joane Mendes de Vasconcelos como mestre de campo general. Grandes rivais, a desconfiança e inimizade entre ambos comprometeu a cooperação necessária para o bom andamento das operações. Também a nomeação de André de Albuquerque Ribafria para general da artilharia, posto que estava vago desde 1644, não foi pacífica, com três mestres de campo mais antigos (Luís da Silva, João de Saldanha e D. Sancho Manuel) a contestarem a nomeação do jovem fidalgo. Como se tudo isto não fosse pouco, quando Joane Mendes – ainda antes da chegada de Matias de Albuquerque ao Alentejo como governador – decidiu empreender uma operação contra o castelo de Codiceira, levantou-se uma grave questão entre D. Rodrigo de Castro e D. João de Mascarenhas, com o segundo a questionar uma ordem do governador da cavalaria e a receber ordem de prisão. Quando se iniciaram as operações para o assalto ao forte de Telena, já D. João recuperara o posto de tenente-general. Mas as tensões entre os comandos continuavam bastante fortes.

O objectivo da campanha foi debatido entre os cabos de guerra da província do Alentejo (os acima referidos e ainda o engenheiro João Pascácio Cosmander e D. João da Costa, que passara a servir no Alentejo sem posto, devido a um duelo que travara com o Conde Camareiro-Mor dois anos antes, que lhe valera a perda do posto de general da artilharia). Sendo Badajoz a praça mais apetecida, considerava-se que era necessário tomar primeiro o forte de S. Cristóvão. Mas Joane Mendes, D. Rodrigo de Castro e André de Albuquerque defendiam que, ainda antes daquele forte, seria necessário tomar e destruir o de Telena. E foi esta opinião que prevaleceu, após consulta ao Rei. Conforme refere o Conde de Ericeira, tratou-se de uma  decisão de grande risco e pouca utilidade (Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, edição on-line (facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro IX, pgs. 168-169).

Em 15 de Setembro, o exército do Alentejo, reforçado com gente de novas levas e unidades de outras províncias, e com o enorme e necessário trem logístico de carroças e carros, atravessou o Guadiana. O Conde de Ericeira apresenta um efectivo de 8.800 homens, sendo 7.200 infantes repartidos por 10 terços, e 1.600 cavalos. Já Mateus Rodrigues refere 6.000 infantes e 2.000 cavalos, tudo gente paga e boa (MMR, pg. 106). É no contexto desta operação que o soldado de cavalos faz referência à estreia dos “cavalinhos de pau”, já tratados em detalhe em dois artigos, aqui e aqui. Sigamos a sua colorida narrativa dos eventos, bem mais pormenorizada do que a apresentada na História de Portugal Restaurado.

Assim como nós saímos à campanha, logo fomos vistos do forte, que toda aquela campanha, assim a sua como a nossa, em mais de 4 léguas de circuito leva com a vista, e como o inimigo logo soube que nós botávamos exército, começou também a juntar a gente que tinha e as ordenanças todas, assim a cavalaria como infantaria, que a gente que ele trouxe não podia ser toda paga, pois sabemos mui bem o que tem (…). Aquele dia em que saímos da cidade não chegámos lá, e (…) não é mais que légua e meia, mas na passagem da ribeira nos detivemos muito, por amor [isto é, por causa] das muitas carruagens e artilharia que levávamos, 8 peças de 48 libras cada uma e 6 peças de 24 libras, e como nós não fomos logo no direito do forte, senão ao largo por amor da sua artilharia, que orlava meia légua, marchámos mui ao largo, e todo o dia gastámos com uma légua, mas dormimos já todos da banda de além do Guadiana, em umas vilas donde chamam os Carrascais de Fiolhais, e assim nós estivemos ali aquela noite.

Ao outro dia nos pusemos em via, levando a nossa cavalaria toda na vanguarda de tudo, e bem formada, (…) que tínhamos então um grande soldado por tenente-general da cavalaria, que era D. João de Mascarenhas, (…) mas íamos mais de uma légua ao largo, porque nos íamos aquartelar por cima do mesmo forte, em umas covas e vales, aonde a sua artilharia nem chegava, nem nos podiam ver do forte. E assim como chegámos, logo a infantaria começou a trabalhar, a fazer trincheira, e logo todos nós a tratar cada rancho de fazer suas barracas para nos acomodarmos, que todo um dia e uma noite não fizemos mais que consertarmo-nos pelo que nos podia suceder. E (…) estando já todo o exército acomodado, trataram de ir ao forte, que nos ficava daí meio quarto de légua. Levaram lá a artilharia, mas não obrava nada, porque como o forte era de faxina e terra, não faziam as peças nada nele. Trataram então de lhe fazer avançadas com a infantaria arrimando-se [ou seja, chegando-se] à estacada, que a tinham mui grossa e forte. Contudo, apesar de mortos, lhe romperam a estacada e ficavam junto da mesma muralha do forte, que dali lhe lançavam dentro muitos penedos e alcameias de fogo e granadas, que com isto lhe faziam grande dano lá dentro. Mas muito mais dano nos fazia o inimigo, que nos matava muita gente, porque diferente é pelejar um homem de sua casa, coberto para quem peleja da rua, e além de que as suas duas peças que lá tinham nos faziam grande dano. Porém, rebentou-lhe uma delas, que fez o artilheiro em pedaços. E como não havia mais, que ficavam muito mal sem artilheiro para a praça, assim logo por diante começaram a descoroçoar, porque, como os nossos estavam sempre arrimados à (…) muralha do forte, não podia o inimigo fazer-lhe dano com a mosquetaria. Os nossos lhe estavam matando muita gente com o que lá lhe botavam dentro, e assim, vendo-se já em aperto, vendo que lhe não vinha socorro, mandaram um aviso a Matias de Albuquerque, que se lhe não viesse socorro dentro de dois dias, que eles se queriam entregar. Concederam no aviso, e susteve[-se] a peleja por espaço dos ditos dois dias, e no cabo, vendo o inimigo que lhe não vinha socorro, se entregou no fim de três dias de continuação, que nos custaram os tais dias mais de 80 homens mortos e feridos [devido a um erro de transcrição, a versão dactilografada refere 800 baixas: o número que Mateus Rodrigues apresenta no manuscrito é 80]. Rendido o castelo, se saiu a gente que nele estava, que eram 300 homens e boa gente, mas já vinham menos uns 60 homens que lá lhe mataram os nossos. (MMR, pgs. 108-109)

Foi então decidido arrasar o forte. Matias de Albuquerque propôs que nele entrassem 2.000 homens com pás e picaretas, que derrubariam o forte em dois dias. Mas o engenheiro Cosmander quis poupar os soldados a mais uma canseira, e contrapôs que se fizessem minas e se fizesse assim explodir o forte. Seguiu-se este conselho, mas sendo a obra de terra, não resultou em nada – nem estrondo fez grande, (…) nem quanto seja uma vara de muralha derrubou. (MMR, pg. 110)

(continua)

Imagem: Fotografia aérea do local onde se ergueu o forte de Telena. Foto retirada do blogue Sigue las Huellas de Badajoz, que apresenta um magnífico conjunto de artigos sobre o forte de Telena. O primeiro desses artigos pode ser lido aqui: Sigue las Huellas de Badajoz. Mais sobre Telena aqui.

O novo contrato com os mercenários holandeses, Julho de 1644 (2ª parte)

Muitos afazeres profissionais têm impedido a actualização mais regular do blogue. Pelo menos até meados deste mês, a actualização continuará a ser feita numa base semanal, para posteriormente regressar a um ritmo mais habitual. Prossigamos, pois, com a transcrição do contrato:

8. Que as companhias deste Regimento constarão de sessenta até oitenta praças o mais, entendendo-se isto neste princípio. Refazendo-se depois de oitenta a cem praças dentro de dois meses.

9. Que os soldos que vencerem os soldados deste Regimento lhe serão pagos em mão de seus capitães, os quais por eles o repartirão, fazendo com que tenham sempre seus cavalos e armas consertadas.

10. Que os soldados que de presente se conduzirem e levantarem aqui nestas fronteiras para este Regimento haverão catorze patacas [4.480 réis], que faz um mês de soldo na forma da capitulação holandesa, e os que vierem de Lisboa e outras partes haverão seis mil réis.

11. Que ao tenente-coronel, oficiais e soldados deste terço lhe correrão seus soldos do primeiro de Agosto deste presente ano por este contrato se começar com eles no próprio dia.

12. Que aos soldados que se apresentarem no dito terço, do dia que aclararem praça em Lisboa ou aqui, lhes correrá seu soldo, sendo-lhes pago na conformidade que os demais, com declaração que os que assentarem praça em Lisboa serão obrigados a virem a servir na fronteira dentro de quinze dias, e não o fazendo assim não vencerão soldo.

13. E que nem um oficial do Regimento holandês possa levar consigo a Lisboa ou outra parte soldado dele sem expressa licença do Governador das Armas, nem pessoa alguma, de qualquer qualidade que seja, possa tirar ou levantar deste Regimento holandês que ora serve soldado algum, porquanto os que ficarem devem servir, e são obrigados, neste Regimento estrangeiro. Mas antes que o dito tenente-coronel poderá fazer leva dos soldados estrangeiros desobrigados, quantos lhe forem possível, em qualquer parte que seja, sem pessoa alguma de qualquer qualidade que seja lho contradizer.

14. Que Sua Majestade, ou o Governador das Armas em seu nome, será obrigado a sustentar e pagar este Regimento alguns anos na forma prescrita, e em caso que algum oficial ou algum soldado deste Regimento, por causas justas, requeiram ir em qualquer tempo, se lhes concederá licença para o poderem fazer, pagando-lhes tudo o que lhe dever.

15. Que Sua Majestade, ou o Governador das Armas em seu nome, será obrigado a que no Regimento haja os oficiais seguintes e soldados pagos pelos soldos abaixo declarados cada mês.

Oficiais da Primeira Plana

Ao tenente-coronel haverá por soldo cada mês cento e cinquenta patacas e outras noventa patacas, as quais Sua Majestade fez mercê ao dito tenente-coronel Alexandre van Harten, de maneira que ao todo vem a ser setenta e seis mil e oitocentos réis.

Ao ajudante, cada mês, dez mil réis.

Ao auditor do terço, cada mês, oito mil réis.

Ao preboste do terço, cada mês, oito mil réis.

Ao cirurgião-mor, nove mil e seiscentos réis.

Oficiais de cada uma companhia

Aos quatro capitães que trabalhando em esta leva haverão por soldo cada mês trinta e dois mil réis, e fora destas doze mil  oitocentos réis, os quais Sua Majestade foi servido fazer mercê em particular a cada um deles, pela razão acima, que vem a ser quarenta e quatro mil e oitocentos réis.

Ao tenente de cada companhia, dezoito mil réis.

Ao alferes, por cada mês, catorze mil réis.

Aos furriéis de cada companhia, por cada mês, sete mil e quinhentos réis.

Aos cabos de esquadra, que serão três de cada companhia, haverão cada um por mês sete mil e quinhentos réis.

Aos trombetas, haverão dois em cada companhia, haverá cada um por mês sete mil e quinhentos réis.

A cada um soldado, segundo o soldo português, cada mês seis mil réis.

A alguns oficiais reformados que queiram ficar no real serviço até que alcancem postos aqueles que Sua Majestade ou Vossa Excelência for servido de lhe fazer mercê. [Não está indicada a quantia]

Pelo dito modo se cerrou esta capitulação ou convenção acima e atrás escrita, de uma parte o Senhor Conde Governador das Armas em nome de Sua Majestade. Pela outra parte o tenente-coronel Alexandre van Harten, em nome de todos os oficiais e soldados, obrigados cada um a cumprir e guardar tudo o escrito nesta capitulação. E se fizeram dois deste. Um ficou ao Senhor Conde Governador das Armas, outro ao tenente-coronel Alexandre van Harten. Feita em Elvas a dezoito de Julho da era de mil seiscentos e quarenta e quatro anos.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1644, maço 4-B, documento anexo à consulta de 2 de Agosto.

Imagem: “Celebração da Paz de Münster”, de Bartolomeus van der Helst (Rijksmuseum, Amesterdão). O contexto político-diplomático em torno da Paz de Münster em 1648 influenciou o destino do regimento holandês de cavalaria ao serviço de Portugal, ainda antes de ser oficialmente celebrado o fim da Guerra dos 30 Anos. Não haveria um terceiro contrato com os holandeses enquanto unidade. Os militares que continuaram ao serviço em Portugal após 1647 fizeram-no a título individual, integrados em unidades portuguesas. Alexandre van Harten passou a ser comissário geral na província do Alentejo.

O novo contrato com os mercenários holandeses, Julho de 1644 (1ª parte)

O tema que ora inicio está relacionado com assuntos já tratados aqui, aqui e aqui, respeitantes à presença do contingente holandês em Portugal, durante os primeiros anos da Guerra da Restauração.

O contrato estabelecido com os mercenários holandeses em Agosto de 1641 expirou passados três anos. Em Julho de 1644, apesar das reticências de D. João IV (ou de quem aconselhava particularmente o Rei) quanto a manter os holandeses ao seu serviço, tanto o Conde de Alegrete Matias de Albuquerque, governador das armas do Alentejo, como D. João da Costa, mestre de campo general, trataram de pressionar a Coroa no sentido de fazer um novo contrato com aqueles estrangeiros. Contrariando o mito – que se perpetuaria até aos nossos dias – da responsabilidade da cavalaria holandesa na derrocada inicial da batalha de Montijo, os experientes soldados das Províncias Unidas eram muito apreciados pelos comandantes que operavam no terreno. Havia, claro, o problema da religião, que dificultava as relações entre portugueses e holandeses – mesmo que D. João da Costa afirmasse que muitos oficiais e soldados do contingente eram católicos, a maioria era protestante, como se depreende de várias passagens das narrativas de guerra e de documentos oficiais, incluindo o próprio contrato que abaixo se apresenta; e a isto se juntava a sempre presente desconfiança em relação aos estrangeiros, um traço comum da mentalidade do período. Aliás, a tolerância em relação aos militares protestantes estava condicionada à discrição da sua conduta – só não “causando escândalo” ficariam ao abrigo de qualquer procedimento de natureza jurídica.

Não obstante estas contrariedades, a falta de efectivos experientes e capazes no exército português da província do Alentejo tornou imperioso manter ao serviço da Coroa portuguesa os profissionais holandeses. D. João IV acabou por dar o seu consentimento à elaboração de um novo contrato.

É o documento respeitante a esse contrato – ou capitulação, como então se designava um acordo deste género – que irei transcrever em duas partes, vertendo para português moderno a ortografia seiscentista original.

Capitulação feita com Sua Excelência o Conde Governador das Armas desta província em nome de Sua Majestade, com os poderes que para isso lhe deu o dito Senhor, entre o tenente-coronel Alexandre van Harten [no original está escrito Herten, mas o nome correcto é Harten, como se pode ver pela assinatura do próprio] e o dito Senhor Conde Governador, em razão de se formar um terço de cavalaria estrangeira [a designação terço aparece por vezes em lugar de regimento; o sistema regimental não existia ainda no exército português], que com o dito tenente-coronel hão-de servir nestas ditas fronteiras de Alentejo, ao qual deram os seus oficiais os poderes necessários para a dita capitulação na maneira seguinte:

Proposta antes da capitulação

O tenente-coronel e seus oficiais protestam a Sua Majestade com todo o ânimo e vontade em seu Real Serviço fazerem que os soldados e mais oficiais do Regimento Holandês fiquem no serviço do dito Senhor, fazendo-lhe toda a instância para que neste Reino sirvam na forma das capitulações abaixo:

Que sendo caso que os oficiais do Regimento Holandês que acaba em fim de Julho presente, por mal intencionados intentarem consigo levar para Holanda alguns dos ditos soldados, ou eles próprios soldados o fizerem por outro qualquer inconveniente, eles ditos tenente-coronel e oficiais não serão obrigados a perda e desserviço que nisto a Sua Majestade se fizer, mas antes o dito Senhor lhe remunerará o trabalho que na condução e levas tiverem feito, mandando-lhes tomar contas do dinheiro que tiverem recebido para o tal efeito, ficando depois desobrigados de toda a capitulação, e nesta conformidade os capítulos dela são os seguintes:

1. Que o dito tenente-coronel e oficiais e soldados que ficarem servindo neste terço o farão bem e fielmente, tomando todos juramento na forma acostumada, em mãos do dito Senhor Governador, para que em nome de Sua Majestade lhe tome a menagem, ficando obrigados a servirem contra todos os inimigos desta Coroa, sem distinção alguma, não sendo eles ditos tenente-coronel e oficiais e soldados obrigados a servirem em outra parte mais que pela defensa da terra firme e costa de Portugal.

2. Que o tenente-coronel, oficiais e soldados que houverem de ficar serão pagos de seus [soldos] atrasados, conforme a capitulação holandesa, na conformidade que o hão-de ser os demais oficiais e soldados que do Regimento Holandês se vão para Holanda. E recebendo estes ditos oficiais e soldados dinheiro em alguma parte dos ditos atrasados, entrarão eles ditos capitulantes na dita partilha, ficando pagos para que de novo comecem o dito contrato.

3. Que Sua Majestade terá respondido a proposta que o tenente-coronel lhe fizer para os oficiais que se houverem de criar no dito regimento, e não se farão de outro, havendo sujeitos capazes nele.

4. Que enquanto à administração da justiça, será conforme às leis e costumes militares deste Reino de Portugal.

5. Que os oficiais e soldados gozarão de todos os privilégios que gozam os vassalos desta Coroa, e morrendo na guerra ou de doença, até ao dia de sua morte ou de sua ausência se lhes pagarão seus soldos em mão dos seus capitães, ou de seus herdeiros. E sendo oficial, na do maior, não se metendo outra pessoa alguma nos ditos soldos e bens que ficarem dos defuntos, mais que os oficiais do próprio Regimento, os quais serão obrigados a fazer tudo aquilo que os restantes deixarem ordenado. E que os feridos, se lhe pagará seu soldo, na conformidade que aos mais soldados e oficiais.

6. Que se não procederá contra os oficiais e soldados por causa da religião, não procedendo com escândalo.

7. Que ao tenente-coronel e oficiais e soldados lhe serão dados cavalos necessários e de préstimo para poderem servir a Sua Majestade com todas as dependências para eles necessárias, como convém: armas, que constará de duas pistolas e uma carabina, peito e espaldar e murrião a cada soldado. E estas por uma vez somente, das quais darão conta seus oficiais ou o dito tenente-coronel, salvo os cavalos e armas que perderem nas batalhas, e outros casos extraordinários se lhes levará em conta na forma em que se fizer com todos os mais soldados portugueses e franceses.

(continua)

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1644, maço 4-B, documento anexo à consulta de 2 de Agosto.

Imagem: “Cavaleiros num acampamento militar”, pintura de Philips Wouwerman.

Um exemplo de espionagem no contexto da Guerra da Restauração – Inácio de Herrera

A questão da espionagem no contexto da Guerra da Restauração foi tema de um interessante estudo do Professor Fernando Cortés Cortés, publicado em Portugal há mais de vinte anos – Espionagem e Contra-espionagem numa guerra peninsular (1640-1668), Lisboa, Livros Horizonte, 1989.

Nessa obra, Fernando Cortés Cortés categoriza as formas de obtenção de informação sobre o inimigo de acordo com os métodos utilizados. A primeira dessas formas é designada genericamente como métodos usuais, que podiam ser a informação visual, as notícias de navegantes e viajantes (com destaque para os mercadores), as notícias dos prisioneiros (com destaque particular para as “línguas”), as notícias dos repatriados e os informes dos desertores e a captura dos correios. A segunda forma era a espionagem organizada, a propósito da qual Fernando Cortés Cortés abordou a actuação de informadores e confidentes, os comportamentos do espião e o móbil económico da actividade de espionagem (Espionagem e Contra-espionagem…, pgs. 25-54).

No desenvolvimento desta segunda forma, a espionagem organizada, o autor refere a actuação de Ignácio de Herrera, espião castelhano ao serviço de Portugal, citando a propósito algumas passagens da carta que Matias de Albuquerque, Conde de Alegrete, escreveu a D. João IV em 19 de Julho de 1644, acompanhada do relatório do espião. Todavia, o relatório propriamente dito não é transcrito na obra de Cortés Cortés.

A parte da carta do Conde de Alegrete que respeita a Ignácio – ou Inácio – de Herrera, bem como o relatório deste, são aqui apresentados, transcritos para português corrente para um mais fácil entendimento.

Inácio de Herrera, castelhano, que mandei a Sevilha, chegou aqui hoje havendo entrado por Noudar e ido por Mértola, e declara o que Vossa Majestade, sendo servido, poderá mandar ver do papel incluso. Outras espias hei metido para Badajoz, mas não hão vindo. Esta me parece pessoa de inteligência, e se Vossa Majestade for servido de que passe a Madrid o fará. E mandando Vossa Majestade que vá a alguma coisa particular, ou que faça outra diligência, lha encarregarei. E até aviso de Vossa Majestade o farei entreter em Estremoz, por não andar aqui onde possa ser conhecido. (…) Elvas, em 19 de Julho de 1644.

Por “coisa particular” pode entender-se algum negócio privado do monarca melómano, que mesmo em tempo de guerra conseguia obter do reino vizinho as obras e partituras com que enriquecia a sua notável colecção dedicada à música. E quanto ao relatório:

Inácio de Herrera diz que chegou a Sevilha a 4 deste [mês de Julho] e esteve 3 dias e passou a Écija, onde esteve um dia, e dali passou a Córdova, e esteve dia e meio. E dali se partiu e veio a Noudar, por onde entrou neste Reino.

O que alcançou foi que dia de S. Pedro houvera nova de uma refrega, em que os franceses perderam muita gente sobre Lérida; donde Monsieur de La Motta [Phillipe de La Mothe-Houdancourt, comandante das forças franco-catalãs que defendiam Lérida, cercada pelo exército de Filipe IV comandado por Felipe da Silva] se havia refazido [ou seja, refeito], e voltado sobre os castelhanos, e morto lhe muita gente [a forma correcta seria: lhes matado muita gente], e feito largar o sítio de Lérida [obviamente uma informação falsa: Lérida caiu em poder do exército espanhol em 30 de Julho de 1644]. E que viera ordem da Rainha ao Marquês de Belmar, Assistente de Sevilha, para que toda a gente de Andaluzia a alta estivesse pronta para segunda ordem, que se entende é para marchar para Catalunha, e que Andaluzia a baixa fizesse o mesmo; mas que não se sabia para onde.E que a cavalaria dos cavaleiros de Córdova tivera ordem para marchar para Catalunha; e que eles o não faziam, dizendo que dariam dinheiro, mas que com suas pessoas não podiam. E que em Sevilha se prendera o Marquês do Arenal, porque o mandavam vir com a gente que havia de vir para Badajoz, por ele não querer, e haviam preso mais cinco ou seis cavaleiros por não aceitarem ginetas de capitães desta mesma gente que havia de vir a Badajoz. E que a gente que se fazia eram 18 companhias, delas 10 haviam de ser pagas e as 8 da ordenança por conta de Sevilha; e que haveria 200 soldados feitos; e que entende que em dois meses não poderão chegar a Badajoz.

E que em Écija se não levantaria gente, porque já haviam saído quatro companhias dali, e de Palma para esta parte há dias. E que de Córdova também não havia mais gente que 1.400 soldados, que ali e em todo o seu Reino havia levantado o Ouvidor Dom Belchior de Arnero; há dias que esta gente viera para Badajoz, donde tinha fugido muita parte.

Que o governador de Ayamonte Dom Alonso de Castrejon o levaram preso; e que em seu lugar viera o mestre de campo Dom Francisco de Errada, e que para Ayamonte se faziam e levantavam 80 cavalos em Córdova.

Que diziam que Dom Rodrigo Girón, irmão bastardo do Duque de Osuna, vinha marchando com 400 homens da ordenança para Badajoz, e que se lhe tinham ido mais de a metade.

Que a armada havia já ido, e levara toda a gente que havia em Cádiz e em o Porto de Santa Maria; que uns diziam que para as Índias, e outros para Catalunha.

E que a Sevilha havia chegado um alcaide de Corte, e passava a Sanlúcar a fazer a informação do Senhor Duque de Medina-Sidonia. E que diziam que haviam preso de novo ao Conde-Duque por suspeição que se queria ausentar. E que o Duque de Medinaceli havia chegado a Sevilha e tomado posse do Ducado de Alcalá; e que se dizia que ia por General de Andaluzia, como o era o Senhor Duque de Medina-Sidonia.

Qur ouvira que estes 80 cavalos que se levantavam em Córdova para Ayamonte haviam de vir a residir em Paymogo e Alcairia. Que na alta Andaluzia se compravam 600 até 700 cavalos, sem exceptuar pessoa, para Catalunha; e que Dom Jerónimo de Sant Viter (?), Governador dos Milhões em Sevilha, os ia a ver e pagar.

Que os nossos prisioneiros os levaram para Granada [refere-se aos prisioneiros feitos na batalha de Montijo] por ostentar grandeza e animar aos povos e persuadi-los a que concorram para contra Portugal [sic]. E que ouvira que o Marquês de Mendejar tinha a seu cargo os nossos presos; e que ouvira que os mandariam a Catalunha ou a Orão.

Que o Marquês de Belmar, Assistente de Sevilha, passara mostra da gente portuguesa e alistara 14.000 – e que [sob] pena da vida mandara que nenhum tivesse arma de fogo.

Agente duplo ou não, Inácio de Herrera limitou-se a contar mais do que ouviu dizer, do que o que de facto observou. Tal como o seu falso depoimento sobre o levantamento do cerco de Lérida, também esta última informação, acerca dos milhares de prisioneiros portugueses que haviam sido alistados pelo Marquês de Belmar, é inverosímil. O móbil económico, como refere Cortés Cortés, constituía o principal motivo destes aventureiros que faziam da espionagem a ocupação ocasional. Mesmo que o seu papel não fosse desempenhado com inteira satisfação, seria difícil averiguar num curto prazo a veracidade total das suas informações, sobretudo se estas se reportavam a acontecimentos passados longe da fronteira de guerra.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1644, maço 4-B, consulta de 2 de Agosto de 1644 e documentos anexos.

Imagem: Recebendo uma mensagem – pintura de Thomas de Keyser.

Ainda os “cavalinhos de pau”

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O estimado amigo e investigador Julián García Blanco, a propósito do artigo sobre os “cavalinhos de pau”, enviou-me cópias de dois documentos impressos em Espanha durante a Guerra da Restauração, nos quais é feita menção àquele engenho que a infantaria portuguesa utilizava para se proteger da cavalaria inimiga. Obstáculos deste tipo eram usados desde a Idade Média e algumas variantes foram utilizadas durante a Guerra dos 30 Anos, como por exemplo o  jocosamente denominado por “Penas Suecas”, ou “Penas de Porco” – uma forquilha para mosquete, na qual estava incorporado um espigão para a defesa do infante atirador contra a cavalaria. No entanto, no contexto da guerra entre os vizinhos ibéricos, pelas referências até agora encontradas, parece ter sido de uso exclusivo dos portugueses, embora os obstáculos do género fossem bem conhecidos pelos militares espanhóis.

Na Verdadera Relación de la famosa Batalla, y vitoria que han tenido las armas Catolicas contra Portugal, viniendo a sitiar la Ciudad de Badajoz, de 1646, há uma passagem em que se demonstra a eficácia dos “cavalinhos de pau”. De acordo com o autor espanhol da Relación:

Nuestra cavalleria apretava fuertemente la contraria, y ella peleava siempre opuesta para salvar su infanteria. (…) Viendo el Marqués [de Molinguen] que el enemigo llegava ya al esguazo, dexando la mitad de la cavalleria de reten con la otra mitad, y con determinada, y no vista resolucion embistio la del enemigo hasta hazerla bolver las espaldas, y huir a su infanteria, que corriera la misma fortuna, si llegando a ella, no la toparan los nuestros guarnecida con un frente de crizos (que aqui llaman cavallos de palo) todos encadenados, y puestos a modo de peynes, de donde no pudo passar nuestra cavalleria, antes le fue fuerza retirarse de las muchas, y menudas cargas de mosqueteria que le dava el enemigo, logrando la ocasion que le dava el estorvo referido (…).

A descrição dos “cavalinhos de pau” corresponde à que o soldado Mateus Rodrigues deixou (com um detalhe mais minucioso) nas suas memórias sobre a campanha do forte de Telena e que aqui foi reproduzida.

Referência que se repete em outro documento, uma carta enviada pelo Marquês de Molinguen a Filipe IV de Espanha sobre a mesma campanha, entre 15 e 21 de Setembro de 1646, na qual, a dado passo, se descreve a disposição do exército português:

En 18 por la mañana amanecio en batalla, y su carruage y demas bagaje puesto en ordenança entre el esguazo del rio Guadiana y el fuerte de Telena, que dista menos de un tiro de cañon, deixandolo cubierto por el costado derecho de los vallados y viñas, que los ay desde el fuerte hasta el mesmo esguazo, y por el izquierdo le guarnecio de una hilera de carros, y otra de puerco espines, que ellos llaman cauallos de palo.

Note-se a designação de “porco-espinhos” aos obstáculos. Na relação, também impressa, do Marquês de Molinguen sobre a composição do exército português, pode ler-se que havia “quinientos cavallos de palo” entre o material de guerra do exército comandado por Matias de Albuquerque, Conde de Alegrete.

Fontes:

Copia de carta del Marques de Molinguen General del Exercito de Badajoz, escrita al Sñor Don Iuan de Santelizes e Guevara, del Consejo de Su Magestad en el Real de Castilla, y Governador de là Audiencia de Sevilla, su fecha en 21 de Setiembre deste año de 1646, en que se le dà quenta de lo sucedido en el Campo de Telena desde 15 del dicho mes, hasta los dichos 21. En que se incluye otra copia de la Relacion que el dicho Marques de Molinguen embió a Su Magestad sobre lo mismo, cuyo tenor es como se sigue, Sevilla, Juan Gomez de Ilas, 1646.

Verdadera Relación de la famosa Batalla, y vitoria que han tenido las armas Catolicas contra Portugal, viniendo a sitiar la Ciudad de Badajoz, Madrid, Carlos Sanchez Bravo, 1646.

Imagem: Planta de Telena, c. 1655, publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

Com um grande obrigado ao amigo Julián García Blanco.

O episódio da «Passagem de Alcaraviça», 1645 – 1ª parte; artigo do Sr. Santos Manoel

Do estimado amigo e investigador Sr. Santos Manoel recebi um muito interessante artigo, que aqui será publicado na íntegra, em duas partes. Agradeço a gentileza do Autor e a sua permissão para aqui partilhar o resultado da sua investigação com os caríssimos leitores.

O episódio da «Passagem de Alcaraviça»

Entre as batalhas de Montijo – em cuja discussão sobre se vitória ou derrota dos portugueses peço licença para não entrar, embora hoje pareça consensual que se tratou de uma das ‘derrotas mais vitoriosamente celebradas’ dos nossos exércitos – e de Montes Claros, o conflito entre portugueses e espanhóis por os primeiros terem reafirmado a sua independência, permaneceu em estado pouco mais que de tensão fronteiriça, interrompida por algumas entradas de parte a parte nos territórios alheios para causar algum dano pontual, colher alguma glória para soldados mais sedentos desse tipo de despojo ou mesmo para o roubo de algum mantimento, em falta crónica de ambos os lados. Esta memória procura resgatar um desses episódios de encontros entre forças opostas nas regiões fronteiriças, porventura um dos que os portugueses não saíram de cabeça erguida, mas que acabou por resultar numa iniciativa de reforço do treino militar, princípio básico da boa preparação dos exércitos.

O episódio foi citado como o ‘sucesso’ (no sentido de ‘acontecimento’, claro está), a ‘ocasião’, o ‘desastre’ da ‘passagem’ ou da ‘rota’ de Alcaraviça, e deu-se em data incerta entre 27 de Outubro e 2 de Novembro de 1645.

As crónicas

Na ‘História Geral de Portugal e Suas Conquistas’ de Damião A L Faria de Castro publicado um século e meio depois, o capítulo que narra este episódio começa com o título pouco prometedor de ‘Continuam os sucessos do Reino no ano de 1645′, como se de uma continuação enfadonha se tratasse, e imediatamente avança para um exórdio francamente desanimador, que não está muito longe do parágrafo com que comecei este texto, pelo menos para o ano em questão. Diz Faria e Castro que ‘Pouco dignos de narração dilatada são, na Província do Alentejo, os sucessos do ano que entro a escrever’. Vejamos.

D João não sabia o que fazer para atrair para o comando das forças do Alentejo uma mente capaz, à qual seria também bem-vindo juntar-se alguma sorte nas armas. O Cde. de Alegrete, relator coberto de glória da meia vitória portuguesa em Montijo, no meio de um ataque de orgulho ferido, tinha-se demitido quando no fim de 44 D João mandou Joane Mendes de Vasconcelos para o comando das forças em campo para libertar Elvas do sítio que lhe punha o Marquês de Torrecusa. Agora que (por razões que ficam para outra memória …) Joane Mendes se revelava uma escolha de difícil manutenção, D João voltava-se para o Cde. de Castelo Melhor. De notar que do lado espanhol as coisas não estavam diferentes. Incomodada pela pouca acção de Torrecusa, a liderança de Castela substituiu-o pelo Marquês de Legañes, com maiores forças e bem mais experimentadas nos campos do que é hoje o norte de Itália.

Dois novos comandos em ambos os lados da fronteira, só por si, fariam adivinhar novos combates quanto mais não fosse para experimentar mutuamente as têmperas e tácticas. Mas o que se segue nas discussões do Conselho de Estado e Guerra demonstra que D João poderia estar menos interessado em apoiar arroubos de bravura que em esperar para ver. Castelo Melhor tentara atacar Badajoz, mas teve tantos percalços no transporte da artilharia que se atrasou, expôs os movimentos e perdeu o elemento surpresa, abortando-se a operação. Castelo Melhor insistia numa acção ofensiva, e com Cosmander congeminou e apresentou no Conselho de Guerra a tomada do Forte de S. Cristóvão para melhor preparar um ataque a Badajoz. No entanto na corte as expectativas, provavelmente baseadas em informação que Castelo Melhor não tinha, viravam-se mais para a preparação de defesas. A presença de um exército experimentado na fronteira, simultaneamente com uma armada em Cádis assim o impunham.

O Conselho recusou o ataque ao forte de S. Cristóvão, próximo de Badajoz. E o Rei sai de Lisboa.

O receio do desencadear para breve do grande ataque conjunto por terra e mar era tal que D João chegou mesmo a nomear a 2 de Novembro de 45 a D Jorge Mascarenhas, Marquês de Montalvão, do Conselho de Estado e Guerra, seu Vedor da Fazenda e presidente do Conselho Ultramarino, como Mestre de Campo General «junto à pessoa d’el Rei», uma espécie de intendência da sua segurança privada, chefia da sua guarda pessoal.

Mas voltemos ao Alentejo, onde neste ambiente de perigo iminente está prestes a dar-se o caso de Alcaraviça.

É um grupo das forças de Legañes que entra pelo território português até próximo do que na altura se chamavam as Vendas de Alcaraviça, não a actual povoação de Alcaraviça, mais a Sul, mas o que é hoje a localidade da Orada, a Norte de Borba (curioso entretanto que nas duas descrições conhecidas e nos documentos da época não se faça nunca referência à ermida da Srª da Orada ou à povoação actualmente com esse nome). As Vendas de Alcaraviça ficavam à beira da estrada ancestral entre Elvas e Estremoz, a que vem por Vila Boim e passa pela Orada e S Lourenço de Mamporcão. A importância dessa via à época confirma-se por ser também a que Filipe III de Espanha fez quando veio visitar Portugal, perdendo na passagem da fronteira um ‘I’ que o seu filho voltou a encontrar. Em 23 de Março de 1619 o rei Filipe envia cartas ao presidente da câmara de Lisboa e ao Marquês de Alenquer descrevendo o seu trajecto a partir de Elvas, onde iria comer, onde iria dormir, quantas léguas a percorrer em cada troço, tudo como o seu pai tinha feito quando veio a Portugal em 1581: «… A comer – de Vila Boim às Vendas de Alcaraviça – duas léguas e meia; A dormir – destas Vendas a Estremoz – duas léguas e meia; …». As Vendas seriam de facto isso, locais de paragem para viajantes com venda de comida a meia jornada entre dois locais maiores capazes para dar dormida. Pelos vistos o lote de personagens ilustres que se refastelou com os cozinhados da Alcaraviça chegou a incluir pelo menos dois reis castelhanos. Pena é que também tenha assistido ao sacrifício de uns tantos bravos defensores do Reino.

A ‘História’ de Faria de Castro (Tomo 18, Livro 47, Cap. V, Ano de 1645) narra o episódio de forma breve como a maior das pequenas acções que Legañes executou durante o seu comando, narração quase que frustrada por um exército de 15000 homens não ter feito muito mais que tomar o forte da Ponte de Olivença e deitar abaixo alguns arcos da dita para cortar as comunicações da praça. Diz esse historiador que um Major (sic) João da Fonseca Barreto, tratado pejorativamente como ‘inconsiderado’, com 400 infantes encontrou-se com um corpo de tropas espanholas próximo à Venda de Alcaraviça. Ao invés de se fortificar e esperar socorro da cavalaria de D Rodrigo de Castro que supostamente o seguia, atacou, e foi destroçado.

Faria de Castro diz que o Rei sentiu essa ‘pequena desgraça’, mas foi compensado com um acto de bravura de 15 soldados e um alferes na Atalaia da Terrinha, que se defenderam contra 2000 infantes e 1000 cavaleiros de Castela, tendo-se perdido alguns e salvado outros após rendição.

No ‘Portugal Restaurado’, de 1751, a narrativa de Ericeira é ligeiramente mais desenvolvida. Os 15000 homens de Legañes eram em pormenor 12000 a pé e 3000 a cavalo, apoiados por dez peças de artilharia.

Fica aqui atestado que o episódio da Terrinha descrito em Faria de Castro, a ter os números por certos, contou então com nada menos que um sexto dos infantes! e a terça parte da cavalaria inimiga!, parcela essa a necessária para derrotar os tais 16 portugueses … As descrições dos cronistas fazem-nos concluir que Legañes, tendo dificuldades em combater pessoas, em alternativa virou-se para as estruturas, no caso os arcos da ponte de Olivença. Enfim, dados os devidos descontos, continuemos com Ericeira cuja descrição segue.

Foi a 25 de Outubro que o marquês espanhol saiu com os seus 15000 de Badajoz e chegou à vista da ponte da Ajuda, onde após dois dias de bombardeio, tomou o forte de Stº António e o pequeno castelo da ponte, e minou-lhe os arcos. Castelo Melhor resolveu mandar socorros a Olivença uma vez que pensava que Legañes a queria sitiar. No entanto desde que este se instalara na zona da ponte que toda a região ficava sob perigo de emboscadas. O terreno ondulado permitia que corpos de tropas de dimensão considerável se movimentassem e posicionassem nos fundos dos vales sem serem detectados, o que tornava muito arriscada a jornada de cerca de seis léguas entre Estremoz e Elvas pela tal estrada de visitas reais. A táctica recomendada para lidar com estas condições de terreno seria mandar batedores pelos cabeços a verificar a presença de tropas inimigas, avaliá-las e por conseguinte garantir a segurança do trajecto, fosse ou não dar-se-lhes combate.

Um corpo de 400 infantes (soldados a pé) da Comarca de Évora chefiados pelo Sargento-mor (sic) João da Fonseca Barreto sai de Estremoz e avista próximo à Venda da Alcaraviça 600 castelhanos a cavalo que tinham saído da ponte na noite anterior com a intenção precisa de praticar acções de emboscada na dita estrada, que sabiam crucial para comunicações entre as duas maiores praças da fronteira e para o abastecimento de Elvas.

Fonseca Barreto ou seria um soldado pouco experimentado e pusilânime, como insinua Ericeira, ou apenas alguém que num dia de pouca inspiração e mau conselho toma uma decisão errada. Ao invés de ocupar uma tapada de parapeito alto, uma das muitas que há na zona, e guarnecê-la, parece ter dado ordem de ataque ou de receber a carga em campo aberto. Fica para o segredo da história se foi como insinua Ericeira ou se Barreto terá sido por sua vez surpreendido e atacado tão rapidamente que nem teve tempo de se refugiar. O resultado foi uma carnificina em que pereceram quase todos os soldados de infantaria da Comarca que o acompanhavam. Ericeira também refere que ‘se’ ao menos Fonseca Barreto se fortificasse, e ‘se’ tivesse conseguido mandar mensageiros a D Rodrigo que vinha de Elvas para Vila Viçosa com 700 cavalos, ao que eu junto ‘se’ Barreto estivesse informado dessa deslocação, ‘se’ o mensageiro conseguisse vencer as duas léguas até encontrar D Rodrigo num ponto qualquer entre Elvas e Vila Viçosa que teria obviamente de adivinhar qual seria, ‘se’ D Rodrigo saísse imediatamente e conseguisse chegar a tempo, entre outros ‘ses’ (junte também o seu: agora, como na época em que Ericeira escreveu, pouca diferença faz).

Terá tudo isso ficado por aí? ‘Enterrar os mortos e cuidar dos vivos’, como sempre que se pôde se fez, bem antes de Pombal o ter glosado? Deixando os relatos históricos e passando aos documentos, alguns Decretos do Conselho da Guerra indicam que não. D João não deixou passar o evento em branco, e os textos adiante permitem esclarecer alguns pontos, revelar alguns detalhes relevantes e medir a justa importância do episódio considerado o mais relevante no quadro geral das operações do Outono desse ano.

(continua)

Imagens: Em cima, Orada (a antiga Venda de Alcaraviça) na actualidade. Fotografia extraída do programa Google Earth. Em baixo, reconstituição de um combate envolvendo tropas de infantaria, Kelmarsh Hall, 2007. Foto de Jorge P. de Freitas.

Postos do exército português (13) – o mestre de campo

Os mestres de campo ou são feitos por grande qualidade [fidalguia] ou por grandes serviços [desempenhados na guerra].

(carta de Matias de Albuquerque, Conde de Alegrete, 22 de Agosto de 1644, in Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI, publicadas e prefaciadas por P. M. Laranjo Coelho, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, vol. II, pgs. 57-58).

O posto de mestre de campo tinha grande prestígio. Ao tempo da Guerra da Restauração existia também nos exércitos espanhol e francês. Encontrava-se apenas na infantaria e correspondia ao posto de coronel, designação que em épocas posteriores iria substituir por completo a de mestre de campo. Em rigor, havia coronéis no exército português em simultâneo com mestres de campo, pois por tradição as grandes unidades da ordenança de Lisboa eram designadas regimentos (e não terços, embora este nome surja de vez em quando nos documentos, um pequeno erro gerado pelo hábito).

De facto, atendendo ao que exigiam as regras militares, reflectidas no projecto de Ordenanças Militares de 1643, para se ascender ao posto de mestre de campo era necessário ter servido durante 12 anos em cenário de guerra, dos quais 4 no posto de capitão. Desta conformidade estavam isentas as pessoas de qualidade e nobreza, o que na prática significava que os terços podiam por ser entregues a elementos da fidalguia sem a necessária experiência militar. Sobre o sargento-mor recaía então uma responsabilidade maior.

De qualquer modo, se exceptuarmos os primeiros anos da guerra, esta situação foi relativamente rara. Houve fidalgos que se revelaram bons mestres de campo. Ao posto ascenderam também vários soldados de fortuna, com tirocínio feito nos escalões inferiores, vários deles estrangeiros. Isto no exército pago, pois nos auxiliares e na ordenança era frequente o sargento-mor ter de desempenhar o comando efectivo do terço, dado o absentismo dos mestres de campo, ou a sua inexperiência militar.

O mestre de campo dispunha de um cavalo, se bem que houvesse quem preferisse desmontar e munir-se de espada e rodela, combatendo a pé no calor da refrega.

Imagem: Combate de infantaria. Recriação histórica da Guerra Civil Inglesa, Kelmarsh Hall, 2007. Foto do autor. Reorganizar o esquadrão de infantaria depois da confusão do choque era uma tarefa difícil, mesmo que se rompesse o contacto com alguma ordem. A maioria dos mestres de campo confiava na experiência dos seus sargentos-mores para esse fim.

Relação do saque e queima da vila de Membrio em 28 de Abril de 1644 (1ª parte)

A relação que hoje aqui trago não consta do rol de narrativas propagandísticas impressas, nomeadamente do levantamento coordenado por Martinho da Fonseca em 1927 (Elementos bibliográficos para a história das guerras chamadas da Restauração 1640-1668, separata de Arquivo de História e Bibliografia, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1927). Dela existe uma cópia manuscrita no Arquivo Histórico Militar, feita provavelmente nos finais do século XIX. Não sendo muito diferente de outras narrativas apologéticas, esta tem um interesse acrescido pela informação detalhada acerca dos procedimentos tácticos numa incursão mista de cavalaria e infantaria (na versão de dragões improvisados).

A acção ocorreu depois da primeira incursão do governador das armas do Alentejo, Matias de Albuquerque (futuro Conde de Alegrete), à vila de Montijo, cerca de um mês antes da segunda incursão que culminaria na célebre batalha campal. Eis a relação dessa entrada, nas passagens mais significativas e numa escrita actualizada.

Depois de vir o senhor Matias de Albuquerque da jornada de Montijo em 20 de Abril passado, começou a dispor outra, para a qual elegeu por cabo a Diogo Gomes de Figueiredo, tenente de mestre de campo general deste exército [do Alentejo], que com 800 mosqueteiros montados de dois em dois, em quatrocentas bestas de albarda, e duzentos cavalos a empreendeu com particular disposição pela maneira seguinte.

Dos terços que aqui se acham nesta praça de Elvas escolheu oito companhias de infantaria, a 90 mosqueteiros e a dez piques cada uma, e foram os capitães Domingos Carneiro, Inácio Pereira de Aragão e Fulgêncio de Matos, do terço do mestre de campo João de Saldanha, e do terço de Luís da Silva os capitães João de [A]Morim, André de Araújo, Francisco Fernandes o Canastreiro [o mesmo que iria participar na defesa da ponte de Olivença, dois anos mais tarde] e Fernão de Mesquita, e do terço do Conde do Prado o capitão Cristóvão Pantoja; levou consigo para a distribuição das ordens o capitão Bernardim de Sequeira, ajudante de tenente [de mestre de campo general] e os ajudantes Francisco Manuel e António da Costa, aquele do terço de João de Saldanha, e este do terço de Luís da Silva, e todos estes oficiais levaram soldados de muito valor (…). A cargo de um gentil-homem de artilharia [posto de oficial artilheiro] iam doze artilheiros com cem granadas, cem fechos, seis escadas, quatro cargas de pólvora, quatro de corda e quatro de balas sortidas; acompanhou ao tenente [de mestre de campo] general o cirurgião-mor do terço da Armada, e o capelão-mor do terço de João de Saldanha, o padre Frei Simão de Lima, que para isso se lhe ofereceu, como também o fez o capitão reformado Amador Rodolfo.

Partiu desta cidade segunda-feira pela manhã, que se contavam 25 do passado [Abril] (…), e pelo caminho de Barbacena e de Assumar se foi dormir a Portalegre, que são oito léguas [c. de 40 km] desta cidade, e ao outro dia a Castelo de Vide, donde pelo ruim caminho chegou às três horas da tarde, ali deu umas ordens que levava do governador das armas ao mestre de campo Dom Nuno Mascarenhas [morreria na batalha de Montijo, um mês depois], que assiste naquela cidade com o seu terço, e outro ao capitão de cavalos João de Saldanha da Gama, que por mais antigo governava as companhias de cavalo que ali se achavam, como eram a de António de Saldanha, a de Fernando Pereira de Castro, e as Holandesas de Vagenheim, e outra de dragões da mesma nação, com mais uma companhia de cavalos da ordenança de Portalegre.

Achou aqui o tenente [de mestre de campo] general Diogo Gomes de Figueiredo segunda ordem do Senhor Matias [de Albuquerque] para que com o mestre de campo Dom Nuno e os capitães de cavalos, assentassem a parte aonde ele havia de ir fazer a facção, porquanto aquela para que o tenente [de mestre de campo] general trazia as primeiras ordens se havia alterado com segunda informação de Dom Nuno, (…) porque a primeira ordem era uma praça distante de Castelo de Vide 12 léguas [c. de 60 km], e os soldados não levavam mantimentos para gastar tantos dias, e assim se resolveu que a empresa fosse à vila de Membrio, 7 léguas [c. de 35 km] distante daquela praça.

Era esta vila de mais de 100 vizinhos [c. de 450 habitantes] e com fama de rica pelo trato que tinha das lãs, situada em um lhano, e quase toda de casas terreiras, estava cercada de trincheiras de terra e barro, e as mais das bocas das ruas com suas costaduras da mesma; tem no meio uma igreja com sua torre quadrada, alta e coroada de ameias, donde se descortinavam as mais das ruas, ou por suas bocas, ou por cima dos telhados das casas, por serem baixas, defronte da porta da igreja todo o terreno, adro à maneira de meia lua, com uma parede de altura de dois homens, e vinte pés afastada do adro outra parede a modo de barbacã, que testavam nas esquinas das ruas que iam para a igreja, pelo lado esquerdo dela havia um cercado, onde estava algum gado, e pela direita outro cercado a modo de cemitério, que tornejava a sacristia, tudo com suas torneiras, donde se disparava.

Está montado o cenário. Será continuada a narrativa na próxima entrada.

Nota: os tenentes de mestre de campo general eram considerados oficiais colaterais, que hoje diríamos de Estado-Maior, destinados a distribuir as ordens emanadas do mestre de campo general pelas unidades. Não deveriam comandar contingentes de tropas, excepto em circunstâncias muito extraordinárias. O prestígio de Diogo Gomes de Figueiredo e Bobadilha (pai – o seu filho homónimo também se celebrizou durante a guerra) foi motivo para uma dessas excepções.

Imagens: em cima, Membrio (grafado como Membrilho, forma que aparece por vezes na narrativa transcrita) no mapa de João Teixeira Albernaz, c. de 1650. Biblioteca Nacional, Iconografia, CC254A; em baixo, Membrio na actualidade. Reprodução de imagem obtida a partir do programa Google Earth.