A deserção apresentava-se como um fenómeno recorrente nos exércitos da Era Moderna, a que nem os castigos severos e mesmo extremos, como a pena de morte, conseguiam pôr cobro. No decurso da Guerra da Restauração, a deserção afectou bastante ambos os lados em contenda. O facto das levas de soldados serem feitas, na sua maior parte, a contragosto dos ditos, com um misto de persuasão e de força no arrancar dos homens às tarefas quotidianas (ou à vida de indolência) que levavam até aí, predispunha logo à partida para uma má vontade no serviço militar, ao qual muitos nunca se adaptavam. O constante risco de vida e a dureza da vida do combatente fazia com que, na primeira oportunidade, muitos deixassem as fronteiras e regressassem a suas terras (a pátria natural, conforme era designada na época).
Um meio de voltar a preencher os terços de infantaria e as companhias de cavalaria era a recondução dos ausentes. Para esse fim, uma pessoa de autoridade – um nobre, preferencialmente ocupando um posto de oficial superior num exército provincial – era encarregada de se deslocar às comarcas de origem dos desertores, percorrendo as localidades de onde aqueles eram naturais ou onde viviam. A pessoa encarregada de fazer a recondução estava munida de uma lista onde constavam os nomes dos soldados ausentes e a sua filiação (somente o nome do pai, ou o termo “filho de outro”, quando o progenitor era desconhecido) e a terra de onde era natural; listas mais detalhadas podiam incluir os sinais particulares do soldado (para ser mais facilmente reconhecido) e o nome do seu fiador, que era o responsável perante a justiça pelo bom cumprimento do serviço por parte do soldado. Uma vez detectado o desertor, este era preso e reconduzido para a unidade de onde havia fugido. Na maior parte dos casos, porém, as coisas não corriam desta forma tão simples.
O exemplo que trago aqui é um caso isolado, mas que permite ilustrar o resultado de uma recondução específica. Não serve para tecer conclusões mais abrangentes, pois para isso seria preciso estudar um conjunto mais alargado de documentos (que os há), tratar quantitativamente os dados e analisá-los. No entanto, esta simples lista de 1648 permite ter uma ideia do resultado da deserção e das dificuldades e limites das reconduções.
A lista foi apresentada em Novembro de 1648 ao Conselho de Guerra e mostrava o resultado da recondução levada a cabo, entre Setembro e Outubro, por D. Álvaro de Ataíde na comarca de Tomar. Eram ao todo 101 soldados pagos que haviam supostamente desertado da fronteira do Alentejo. As terras de origem eram Tomar (sede de comarca), Águas Belas, Pias, Ourém, Álvaro, Punhete (actualmente Constância), Abrantes, Sardoal, Mação, Dornes, Alvaiázere, Pedrógão Grande, Tancos, Atalaia, Chão de Couce, Figueiró dos Vinhos e Torres Novas, embora esta vila pertencesse à comarca de Santarém. As diligências de D. Álvaro de Ataíde revelaram que nem todos os soldados tinham desertado.
Dos 101 soldados pagos, D. Álvaro de Ataíde apenas conseguiu fazer a recondução de uma pequena parte. Os casos que encontrou foram os seguintes:
Em serviço nas fronteiras – 33 (32,7% do total)
Reconduzidos – 19 (18,8%)
Desconhecidos nas suas terras – 18 (17,8%)
Mortos – 8 (7,9%)
Ausentes das terras de origem – 6 (5,9%)
Doentes – 2 (2%)
Incapaz para o serviço – 1 (1%)
Soldado auxiliar (alegando que nunca foi soldado pago) – 1 (1%)
Prisioneiro do inimigo (desde a batalha de Montijo) – 1 (1%)
Com ocupação não militar (lacaio) – 1 (1%)
Tendo pago a outro homem para servir no seu lugar (conforme a lei permitia) – 1 (1%)
Preso e tendo voltado a fugir – 1 (1%)
Sem conhecimento do resultado da recondução – 9 (8,9%)
Este último caso reporta a nove dos onze soldados residentes em Torres Novas, que estavam fora da jurisdição de D. Álvaro de Ataíde, mas de cuja recondução fora encarregado João de Saldanha, governador da comarca de Santarém. A lista nada indica acerca do resultado final das diligências, à excepção de dois soldados, que apareceram em Tomar e foram presos e reconduzidos ao Alentejo.
Os soldados dados como servindo nas fronteiras (em terços de infantaria ou companhias de cavalos de Olivença, Castelo de Vide, Elvas e Campo Maior) tinham a sua situação comprovada por certidões apresentadas pelos pais ou fiadores, ou então, apenas declarada pela mãe, como aconteceu num dos casos. No entanto, o responsável pela recondução aceitou estas justificações, cuja comprovação seria difícil de conseguir num prazo curto. Três dos militares dados como no serviço activo eram soldados na companhia de cavalos de André Mendes Lobo. Apenas um servia fora do Alentejo, na província da Beira: Pedro Vaz, de Mação, era soldado em Almeida.
O suposto serviço activo, justificado apenas por uma declaração passada alguns meses antes (entre Junho e Agosto, na maior parte dos casos), podia encobrir perfeitamente uma deserção. Mas é impossível concluir sobre este aspecto. Entre os vários militares cuja situação fora justificada por papel passado e autenticado, destaca-se João de Moura, de Tomar, alferes na companhia do mestre de campo Diogo Gomes de Figueiredo – portanto, o oficial comandante da primeira companhia do terço, uma vez que a do mestre de campo não tinha capitão.
Menos dúvidas deixa o desconhecimento declarado pelos conterrâneos quando indagados acerca de um desertor específico. Ou não se sabia do paradeiro, ou não vinha à terra há muitos anos, ou pura e simplesmente nunca se ouvira falar de tal sujeito na localidade. Por vezes, nem o fiador era encontrado. Outros eram conhecidos, mas estavam ausentes: um, Amador Francisco, de Tancos, era dado como casado em Santarém; outro, Lourenço Duarte, na própria terra (no caso, Pedrógão Grande), tendo fugido com a sua mulher a tempo de evitar a prisão pelo sargento-mor João de Almeida de Abreu. Havia deserções bem sucedidas, como a de Jorge Marques, que passara a ser lacaio de Jorge de Castilho e que por qualquer razão não foi reconduzido.
Havia os que se declaravam doentes ou incapazes – ou porque de facto o estavam, e isso era facilmente verificável, como no caso de Domingos Rodrigues, das Lapas (Tomar), que era aleijado de uma perna devido ao ferimento provocado por uma bala de artilharia; ou porque a doença era passageira e ficava a promessa de um regresso à fronteira logo que convalescesse, como fizera António Francisco, de Além da Ribeira (Tomar).
Alguns soldados constavam na lista dos desertores, mas os seus pais ou fiadores tinham em sua posse certidões que comprovavam o falecimento do militar. Foi assim que D. Álvaro de Ataíde descobriu que Manuel Jorge, de Beselga (Tomar), tinha morrido em Olivença na ocasião de Julho [Junho] de 648, pelejando honradamente (ou seja, foi uma das cerca de 20 baixas sofridas pelos portugueses nessa ocasião). O mesmo acontecera a Manuel Duarte, das Olalhas (Tomar), falecido no hospital de Olivença. Também por certidão ficara comprovado que Nuno Álvares, do Sardoal, morrera no Alentejo. Outros eram dados como mortos nas suas terras de origem, com ou sem instrumento de justificação.
Um dos soldados, Manuel de Sousa, de Dornes, filho de Afonso Antunes, chegou a ser preso, mas voltou a fugir durante a recondução. Em retaliação, o seu pai e um irmão foram incorporados à força e seguiram para a fronteira.
Em suma, da variedade de situações com que se deparou o oficial que procedia à recondução, o facto é que menos de um terço dos soldados foram recambiados de novo para as fronteiras. E nem todos o foram por D. Álvaro de Ataíde: as certidões que os pais e fiadores de vários soldados apresentaram, declarando terem os militares sido reconduzidos às suas bandeiras em meses anteriores, foram aceites como boas e as reconduções tomadas por certas. As declarações sobre o paradeiro de muitos e a aceitação das justificações de índole diversa parecem apontar para uma certa complacência perante a rede que se tecia em torno dos que se ausentavam e que não tinham vontade de regressar ao serviço nas fronteiras. Era esse o bom modo que convinha, sem opressão dos povos, a que se referia o Conselho de Guerra na consulta em que recomendava o agradecimento régio a D. Álvaro de Ataíde pelo seu empenho na recondução.
Fonte: “Lista dos soldados pagos da Comarca de Thomar ausentes de suas bandeiras cuia Recondução se encarregou a Dom Aluaro de Attayde (…)”, anexa à consulta de 11 de Novembro de 1648. ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1648, maço 8-B.
Imagem: Soldados na Flandres (1653). Pintura de Peter Snayers, Museo del Prado, Madrid. Soldados franceses durante a guerra com a Espanha, esfarrapados, com calçado improvisado. As más condições de vida dos soldados: um dos factores da deserção em qualquer exército.