As reconduções de soldados desertores – um exemplo de 1648

A deserção apresentava-se como um fenómeno recorrente nos exércitos da Era Moderna, a que nem os castigos severos e mesmo extremos, como a pena de morte, conseguiam pôr cobro. No decurso da Guerra da Restauração, a deserção afectou bastante ambos os lados em contenda. O facto das levas de soldados serem feitas, na sua maior parte, a contragosto dos ditos, com um misto de persuasão e de força no arrancar dos homens às tarefas quotidianas (ou à vida de indolência) que levavam até aí, predispunha logo à partida para uma má vontade no serviço militar, ao qual muitos nunca se adaptavam. O constante risco de vida e a dureza da vida do combatente fazia com que, na primeira oportunidade, muitos deixassem as fronteiras e regressassem a suas terras (a pátria natural, conforme era designada na época).

Um meio de voltar a preencher os terços de infantaria e as companhias de cavalaria era a recondução dos ausentes. Para esse fim, uma pessoa de autoridade – um nobre, preferencialmente ocupando um posto de oficial superior num exército provincial – era encarregada de se deslocar às comarcas de origem dos desertores, percorrendo as localidades de onde aqueles eram naturais ou onde viviam. A pessoa encarregada de fazer a recondução estava munida de uma lista onde constavam os nomes dos soldados ausentes e a sua filiação (somente o nome do pai, ou o termo “filho de outro”, quando o progenitor era desconhecido) e a terra de onde era natural; listas mais detalhadas podiam incluir os sinais particulares do soldado (para ser mais facilmente reconhecido) e o nome do seu fiador, que era o responsável perante a justiça pelo bom cumprimento do serviço por parte do soldado. Uma vez detectado o desertor, este era preso e reconduzido para a unidade de onde havia fugido. Na maior parte dos casos, porém, as coisas não corriam desta forma tão simples.

O exemplo que trago aqui é um caso isolado, mas que permite ilustrar o resultado de uma recondução específica. Não serve para tecer conclusões mais abrangentes, pois para isso seria preciso estudar um conjunto mais alargado de  documentos (que os há), tratar quantitativamente os dados e analisá-los. No entanto, esta simples lista de 1648 permite ter uma ideia do resultado da deserção e das dificuldades e limites das reconduções.

A lista foi apresentada em Novembro de 1648 ao Conselho de Guerra e mostrava o resultado da recondução levada a cabo, entre Setembro e Outubro, por D. Álvaro de Ataíde na comarca de Tomar. Eram ao todo 101 soldados pagos que haviam supostamente desertado da fronteira do Alentejo. As terras de origem eram Tomar (sede de comarca), Águas Belas, Pias, Ourém, Álvaro, Punhete (actualmente Constância), Abrantes, Sardoal, Mação, Dornes, Alvaiázere, Pedrógão Grande, Tancos, Atalaia, Chão de Couce, Figueiró dos Vinhos e Torres Novas, embora esta vila pertencesse à comarca de Santarém. As diligências de D. Álvaro de Ataíde revelaram que nem todos os soldados tinham desertado.

Dos 101 soldados pagos, D. Álvaro de Ataíde apenas conseguiu fazer a recondução de uma pequena parte. Os casos que encontrou foram os seguintes:

Em serviço nas fronteiras – 33 (32,7% do total)

Reconduzidos – 19 (18,8%)

Desconhecidos nas suas terras – 18 (17,8%)

Mortos – 8 (7,9%)

Ausentes das terras de origem – 6 (5,9%)

Doentes – 2 (2%)

Incapaz para o serviço – 1 (1%)

Soldado auxiliar (alegando que nunca foi soldado pago) – 1 (1%)

Prisioneiro do inimigo (desde a batalha de Montijo) – 1 (1%)

Com ocupação não militar (lacaio) – 1 (1%)

Tendo pago a outro homem para servir no seu lugar (conforme a lei permitia) – 1 (1%)

Preso e tendo voltado a fugir – 1 (1%)

Sem conhecimento do resultado da recondução – 9 (8,9%)

Este último caso reporta a nove dos onze soldados residentes em Torres Novas, que estavam fora da jurisdição de D. Álvaro de Ataíde, mas de cuja recondução fora encarregado João de Saldanha, governador da comarca de Santarém. A lista nada indica acerca do resultado final das diligências, à excepção de dois soldados, que apareceram em Tomar e foram presos e reconduzidos ao Alentejo.

Os soldados dados como servindo nas fronteiras (em terços de infantaria ou companhias de cavalos de Olivença, Castelo de Vide, Elvas e Campo Maior) tinham a sua situação comprovada por certidões apresentadas pelos pais ou fiadores, ou então, apenas declarada pela mãe, como aconteceu num dos casos. No entanto, o responsável pela recondução aceitou estas justificações, cuja comprovação seria difícil de conseguir num prazo curto. Três dos militares dados como no serviço activo eram soldados na companhia de cavalos de André Mendes Lobo. Apenas um servia fora do Alentejo, na província da Beira: Pedro Vaz, de Mação, era soldado em Almeida.

O suposto serviço activo, justificado apenas por uma declaração passada alguns meses antes (entre Junho e Agosto, na maior parte dos casos), podia encobrir perfeitamente uma deserção. Mas é impossível concluir sobre este aspecto. Entre os vários militares cuja situação fora justificada por papel passado e autenticado, destaca-se João de Moura, de Tomar, alferes na companhia do mestre de campo Diogo Gomes de Figueiredo – portanto, o oficial comandante da primeira companhia do terço, uma vez que a do mestre de campo não tinha capitão.

Menos dúvidas deixa o desconhecimento declarado pelos conterrâneos quando indagados acerca de um desertor específico. Ou não se sabia do paradeiro, ou não vinha à terra há muitos anos, ou pura e simplesmente nunca se ouvira falar de tal sujeito na localidade. Por vezes, nem o fiador era encontrado. Outros eram conhecidos, mas estavam ausentes: um, Amador Francisco, de Tancos, era dado como casado em Santarém; outro, Lourenço Duarte, na própria terra (no caso, Pedrógão Grande), tendo fugido com a sua mulher a tempo de evitar a prisão pelo sargento-mor João de Almeida de Abreu. Havia deserções bem sucedidas, como a de Jorge Marques, que passara a ser lacaio de Jorge de Castilho e que por qualquer razão não foi reconduzido.

Havia os que se declaravam doentes ou incapazes – ou porque de facto o estavam, e isso era facilmente verificável, como no caso de Domingos Rodrigues, das Lapas (Tomar), que era aleijado de uma perna devido ao ferimento provocado por uma bala de artilharia; ou porque a doença era passageira e ficava a promessa de um regresso à fronteira logo que convalescesse, como fizera António Francisco, de Além da Ribeira (Tomar).

Alguns soldados constavam na lista dos desertores, mas os seus pais ou fiadores tinham em sua posse certidões que comprovavam o falecimento do militar. Foi assim que D. Álvaro de Ataíde descobriu que Manuel Jorge, de Beselga (Tomar), tinha morrido em Olivença na ocasião de Julho [Junho] de 648, pelejando honradamente (ou seja, foi uma das cerca de 20 baixas sofridas pelos portugueses nessa ocasião). O mesmo acontecera a Manuel Duarte, das Olalhas (Tomar), falecido no hospital de Olivença. Também por certidão ficara comprovado que Nuno Álvares, do Sardoal, morrera no Alentejo. Outros eram dados como mortos nas suas terras de origem, com ou sem instrumento de justificação.

Um dos soldados, Manuel de Sousa, de Dornes, filho de Afonso Antunes, chegou a ser preso, mas voltou a fugir durante a recondução. Em retaliação, o seu pai e um irmão foram incorporados à força e seguiram para a fronteira.

Em suma, da variedade de situações com que se deparou o oficial que procedia à recondução, o facto é que menos de um terço dos soldados foram recambiados de novo para as fronteiras. E nem todos o foram por D. Álvaro de Ataíde: as certidões que os pais e fiadores de vários soldados apresentaram, declarando terem os militares sido reconduzidos às suas bandeiras em meses anteriores, foram aceites como boas e as reconduções tomadas por certas. As declarações sobre o paradeiro de muitos e a aceitação das justificações de índole diversa parecem apontar para uma certa complacência perante a rede que se tecia em torno dos que se ausentavam e que não tinham vontade de regressar ao serviço nas fronteiras. Era esse o bom modo que convinha, sem opressão dos povos, a que se referia o Conselho de Guerra na consulta em que recomendava o agradecimento régio a D. Álvaro de Ataíde pelo seu empenho na recondução.

Fonte: “Lista dos soldados pagos da Comarca de Thomar ausentes de suas bandeiras cuia Recondução se encarregou a Dom Aluaro de Attayde (…)”, anexa à consulta de 11 de Novembro de 1648. ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1648, maço 8-B.

Imagem: Soldados na Flandres (1653). Pintura de Peter Snayers, Museo del Prado, Madrid. Soldados franceses durante a guerra com a Espanha, esfarrapados, com calçado improvisado. As más condições de vida dos soldados: um dos factores da deserção em qualquer exército.

Companhias “soltas” de infantaria no exército da província do Alentejo em 1664

À margem dos terços de infantaria, existiam também algumas companhias pagas independentes (“soltas”, como se dizia na época), sobretudo na guarnição de localidades de menor importância. Todavia, a sua manutenção e capacidade operacional eram facilitadas com a integração num terço, de modo que as companhias soltas tinham normalmente uma duração limitada enquanto unidades independentes. Ou eram dissolvidas ao fim de algum tempo, ou passavam a fazer parte de um terço.

Um dos vários casos documentados respeita ao exército do Alentejo, no ano de 1664. Um decreto de 9 de Novembro desse ano ordenava que o Conselho de Guerra desse o seu parecer sobre o terço que, segundo o mestre de campo general do exército do Alentejo Gil Vaz Lobo, seria necessário formar com as companhias soltas de infantaria daquela província. O mestre de campo general afirmava que as companhias se poderiam conservar melhor desse modo, e solicitava que o comando do terço fosse atribuído ao mestre de campo António Tavares de Pina. O Conselho de Guerra pediu então informações mais detalhadas sobre as companhias e as praças onde se encontravam.

Em resposta, Gil Vaz Lobo escreveu de Estremoz uma carta, em 22 de Dezembro. Nela referia que, das 15 companhias (deveriam ser 16, mas uma ainda não estava formada), o Rei deveria mandar formar um terço a 12 companhias, agregando-se as 3 de Monsaraz ao terço da guarnição de Mourão. Em anexo à sua carta enviou uma relação detalhada, intitulada “Rellação das Companhias de infantaria soltas que ha na Provincia de Alentejo, e da gente com que se achão”. É com base nessa relação que a seguir se apresenta a situação das companhias de infantaria:

– 5 companhias da guarnição do Crato, que se encontravam nessa altura a guarnecer Valência de Alcântara: 20 oficiais e 240 soldados, dos quais 29 se encontravam doentes.

– 1 companhia que se levantou no Crato, para a guarnição de Montalvão: 4 oficiais, 50 soldados.

– 2 companhias da guarnição de Avis que assistem em Monforte: 8 oficiais, 40 soldados. Deveria haver uma terceira companhia da mesma guarnição, mas ainda não estava formada.

– 1 companhia da guarnição de Alter do Chão: 2 oficiais, 30 soldados.

– 1 companhia da guarnição de Fronteira, assistindo em Monforte: 3 oficiais, 28 soldados.

– 3 companhias da guarnição de Monforte: 9 oficiais, 34 soldados.

– 1 companhia da guarnição de Alegrete: 4 oficiais, 36 soldados.

– 1 companhia da guarnição de Marvão: 4 oficiais, 30 soldados.

– 3 companhias da guarnição de Monsaraz: 17 oficiais, 108 soldados.

Totais: 71 oficiais, 567 soldados, dos quais 29 se encontravam doentes.

Note-se que o conceito de “oficial” abrangia os postos de capitão, alferes e sargento. A praça de Valência de Alcântara, onde se encontravam os soldados doentes, tinha sido conquistada em 1664.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1664, maço 24-A.

Imagem: Valência de Alcântara. Planta publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

As mostras (1ª parte)

Por sugestão de João Torres Centeno, autor do blog Lagos Militar, e a propósito de um assunto que ali foi recentemente tratado, deixo aqui um artigo em duas partes sobre as mostras.

As mostras consistiam numa formatura geral das unidades – terços de infantaria e companhias da cavalaria (a artilharia era tratada à parte) -, durante as quais eram passados em revista os militares e o estado do equipamento individual, bem como das montadas. Se a finalidade era apenas fazer uma contagem dos efectivos, confirmando (ou não) as listas previamente elaboradas pelos sargentos das companhias de infantaria ou furriéis das companhias de cavalaria, entregues aos respectivos oficiais comandantes e confrontadas com as da vedoria, chamava-se mostra seca. Esta era motivo de desapontamento para os soldados. A mais desejada era a mostra que terminava com o recebimento do soldo, conforme estava estipulado no Regimento do Vedor Geral. O vedor geral era o responsável máximo pela administração e finanças do exército de cada província – num futuro artigo irei abordar este cargo, bem como os outros oficiais de pena, isto é, funcionários não-militares do exército provincial. Por ora, passarei a transcrever (em português corrente, como é hábito neste blog para facilitar a compreensão do texto) o que estipulava o Regimento do Vedor Geral do Exército da Província do Alentejo acerca das mostras.

Mostras

Cap. 30 – O vedor geral procurará achar-se presente a todas as mostras que lhe for possível, para que assim se tome com maior satisfação, e quando não puder assistir mandará que assistam seus comissários [de mostras, ajudantes do vedor], e o dia antes que a mostra se houver de tomar dará conta ao governador das armas para que mande lançar os bandos [editais militares], nos quais se diga a parte e o lugar onde os terços e as companhias hão-de acudir, e que venham todos com suas armas, e que ninguém se atreva a passar mostra por outrem sob pena de quatro anos de galés [a condenação a servir, como remador, nas galés da armada de costa, era um castigo muito temido].

Cap. 31 – E quando a mostra se tomar estarão os soldados recolhidos em algum pátio, ou parte que não tenha mais saída que uma porta, aonde estará a mesa, e estarão os oficiais, convém a saber, o vedor geral com os seus, que para aquele acto forem necessários, o contador [geral] com os seus, e o pagador geral com os seus, e com o dinheiro para ir logo fazendo os pagamentos, e um dos oficiais lerá as listas, e começando primeiro pelos oficiais maiores do terço, os irá nomeando um por um, e eles irão acudindo assim como forem chamados, e reconhecendo que são aqueles pelo sinal do assento, lhe porão em cima dele uma letra do A B C somente, que será uma mesma a todos em cada mostra, começando-se na primeira mostra pelo A e continuando-se nas mostras seguintes com as outras.

(continua)

Fonte: Regimento do Vedor geral do exercito da Prouincia do Alentejo, Arquivo Histórico Militar, 1ª divisão, 2ª secção, caixa 3, nº 1, cópia manuscrita, do séc. XIX, do original seiscentista.

Imagem: Formatura de uma companhia de infantaria. Note-se que se trata de uma reconstituição histórica (no caso, da Guerra Civil Inglesa), pelo que a “companhia” é necessariamente reduzida para efeitos de escala visual com o resto do “regimento” e do “exército” – todavia, na realidade, as companhias de infantaria do séc. XVII estavam por vezes tão desfalcadas de efectivos como as das sociedades de reconstituição histórica actuais. Foto do autor. Kelmarsh Hall, 2007.

Postos do exército português (13) – o mestre de campo

Os mestres de campo ou são feitos por grande qualidade [fidalguia] ou por grandes serviços [desempenhados na guerra].

(carta de Matias de Albuquerque, Conde de Alegrete, 22 de Agosto de 1644, in Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI, publicadas e prefaciadas por P. M. Laranjo Coelho, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, vol. II, pgs. 57-58).

O posto de mestre de campo tinha grande prestígio. Ao tempo da Guerra da Restauração existia também nos exércitos espanhol e francês. Encontrava-se apenas na infantaria e correspondia ao posto de coronel, designação que em épocas posteriores iria substituir por completo a de mestre de campo. Em rigor, havia coronéis no exército português em simultâneo com mestres de campo, pois por tradição as grandes unidades da ordenança de Lisboa eram designadas regimentos (e não terços, embora este nome surja de vez em quando nos documentos, um pequeno erro gerado pelo hábito).

De facto, atendendo ao que exigiam as regras militares, reflectidas no projecto de Ordenanças Militares de 1643, para se ascender ao posto de mestre de campo era necessário ter servido durante 12 anos em cenário de guerra, dos quais 4 no posto de capitão. Desta conformidade estavam isentas as pessoas de qualidade e nobreza, o que na prática significava que os terços podiam por ser entregues a elementos da fidalguia sem a necessária experiência militar. Sobre o sargento-mor recaía então uma responsabilidade maior.

De qualquer modo, se exceptuarmos os primeiros anos da guerra, esta situação foi relativamente rara. Houve fidalgos que se revelaram bons mestres de campo. Ao posto ascenderam também vários soldados de fortuna, com tirocínio feito nos escalões inferiores, vários deles estrangeiros. Isto no exército pago, pois nos auxiliares e na ordenança era frequente o sargento-mor ter de desempenhar o comando efectivo do terço, dado o absentismo dos mestres de campo, ou a sua inexperiência militar.

O mestre de campo dispunha de um cavalo, se bem que houvesse quem preferisse desmontar e munir-se de espada e rodela, combatendo a pé no calor da refrega.

Imagem: Combate de infantaria. Recriação histórica da Guerra Civil Inglesa, Kelmarsh Hall, 2007. Foto do autor. Reorganizar o esquadrão de infantaria depois da confusão do choque era uma tarefa difícil, mesmo que se rompesse o contacto com alguma ordem. A maioria dos mestres de campo confiava na experiência dos seus sargentos-mores para esse fim.

Postos do exército português (7) – o tenente

O termo tenente (de tenere, possuir) é a designação abreviada de lugar-tenente, ou seja, o que usufrui de algo – neste caso, um cargo – em lugar do titular. No Portugal militar do século XVII só se encontrava o tenente na cavalaria, pois ao contrário do que sucedia em outros exércitos europeus do período, não existia este posto na infantaria – as funções de segundo-comandante de uma companhia cabia, neste caso, ao alferes.

De acordo com o já aqui referido esboço de tratado de D. João de Azevedo e Ataíde, surge entre páginas 31 e 33 sobre o tenente o seguinte:

A segunda pessoa que há em uma companhia de cavalos depois do capitão é o seu lugar tenente. Deve ser pessoa de valor, em que concorram muitas partes juntas com boa prática e experiência no serviço da cavalaria, por ser ele o que só em ausência do capitão governa tudo (…).

Havendo de pelejar a companhia em ausência do capitão, ou marchar por lugares suspeitos, vai o tenente diante no lugar do capitão, deixando em seu lugar um ou dois cabos mais antigos ou outro algum oficial reformado que seja pessoa de respeito, mas fora destes casos não passa diante, porque então o guiar a companhia toca ao alferes, que vai diante.

O tenente era, portanto, o comandante da companhia na ausência do capitão, mas a sua colocação à cabeça da formação era preterida em favor do alferes quando a companhia marchava sem perigo de encontro com o inimigo, ou quando desfilava em sossego. Assim o exigia o cerimonial militar.

Passando à tradução de Galeazzo Gualdo Priorato, feita pelo Conde de Sabugal, D. João de Mascarenhas, é referido a folhas 75-76 v sobre o tenente:

Há-de fazer-se obedecer rigorosamente dos soldados, (…) e que tenham cuidado com as armas e com os cavalos, porque de ordinário, pela negligência dos soldados e por pouco cuidado dos oficiais, se reduz tudo ao péssimo estilo.

Quando se ofereça ocasião de pelejar deve parar o tenente no seu posto detrás da companhia, com a espada na mão, e fazer que os soldados estejam bem recolhidos e que façam a sua obrigação, e se algum se quiser retirar da sua fileira pode matá-lo para dar exemplo aos outros.

Quando a companhia alojar em alguma povoação deve o tenente receber os boletos e dá-los ao furriel, para que ele os distribua com os soldados. (…) Em ocasião de montar a cavalo é obrigação do tenente ser ele o primeiro, e deve com diligência discorrer [acorrer] a uma e outra parte, para fazer que os soldados montem depressa, castigando aos negligentes.

Não deve nunca o tenente ter contenda com o seu capitão, nem cuidar que sabe mais que ele, porque disto nascem as desconfianças que são as ruínas das companhias (…).

Esta última observação será melhor entendida se nos recordarmos que muitas companhias de cavalaria, não só em Portugal como noutras partes da Europa, eram formadas às custas dos capitães seus comandantes; estes nem sempre tinham a experiência militar necessária, e não era invulgar que os tenentes fossem militares de carreira que colmatavam as lacunas dos seus superiores.

Tal como acontecia na infantaria com o alferes, que comandava efectivamente a primeira companhia de um terço (aquela que, em teoria, era capitaneada pelo mestre de campo), na cavalaria o tenente comandava habitualmente a companhia de um oficial maior (oficial superior, na designação actual): comissário geral, tenente-general, general ou governador, ou inclusive a companhia da guarda do governador das armas da província.

Imagem: “Cena de combate de cavalaria”, Joahnnes Lingelbach, 1651-1652, The J. Paul Getty Trust.

Postos do exército português (5) – o sargento

O posto de sargento só existia nos terços de infantaria do exército pago e nos terços milicianos de auxiliares e da ordenança (que em Lisboa tinham a designação tradicional de regimentos).

Sobre o sargento especificava o projecto de Ordenanças Militares de 1643 no título 24, aqui transcrito em português actual:

Os sargentos hão-de nomear os seus capitães [entenda-se: os capitães hão-de nomear os seus sargentos] de cabos de esquadra ou soldados, de partes, e valor, e que hajam servido na guerra quatro anos, e aprovados na mesma forma que os alferes; (…) e os ditos sargentos ajudam aos mesmos capitães, em todo o governo e meneio das companhias, e neles vem a consistir a maior parte da observância das ordens militares.

Ao que Joane Mendes de Vasconcelos respondeu nos seus comentários:

Os sargentos devem ser eleitos com os mesmos anos de serviços e considerações que se disse dos alferes sobre o seu título [quatro anos de guerra viva – ou seja, servindo em zonas de combate – ou seis debaixo de bandeira, mesmo sem participar em acções militares].

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pg. 65.

Imagem: Armas de infantaria usadas pelos sargentos: na vertical, uma alabarda, arma pessoal e insígnia do posto. Vê-se também um capacete ou murrião (ambos os termos eram comuns na época e designavam qualquer tipo de protecção metálica para a cabeça), um peito de armas (peitoral, como se diria mais tarde) e um estoque. Foto do autor, Museu da Escola Prática de Infantaria, Mafra.

Organização do exército português (5) – Dragões

Existiu apenas uma companhia portuguesa de dragões durante a Guerra da Restauração. Foi formada nos inícios de 1642 e fazia parte do exército da província do Alentejo. O seu primeiro comandante foi António Teixeira Castanho, ex-tenente de uma companhia de cavalos arcabuzeiros, um indivíduo com prévia experiência militar ao serviço da monarquia dual. O tenente era António Banha, referido em algumas Relações de feitos de armas. A partir de 1646, os dragões tiveram sempre oficiais franceses a comandá-los. A companhia não tinha alferes, pois não usava estandarte. Em princípio teria duas caixas de guerra (tambores) em vez de trombetas. Quanto ao resto, seguia a estrutura de uma companhia de cavalos, embora fosse considerada infantaria montada. No entanto, os soldos pagos aos oficiais eram idênticos aos da cavalaria – e portanto, superiores aos da infantaria. O armamento defensivo dos dragões consistia de um colete de couro e o ofensivo de um arcabuz de mecha e uma espada.

Apesar de indicações para que fossem constituídas mais unidades de dragões, nenhuma outra portuguesa tomou forma. Em Março de 1648, a companhia foi transformada em cavalos arcabuzeiros. Na opinião do governador das armas do Alentejo que ordenou essa conversão – Martim Afonso de Melo, Conde de São Lourenço – os dragões serviam pouco e os oficiais faziam a mesma despesa que os da cavalaria. Chegava ao fim a breve história dos dragões na Guerra da Restauração. Como curiosidade, refira-se que a companhia tinha como local habitual de alojamento a vila de Olivença – localidade que aparece, numa época posterior, associada àquele tipo de força militar.

Um procedimento relativamente comum durante toda a Guerra da Restauração era fazer montar em mulas parte da infantaria dos terços – os arcabuzeiros, principalmente, mas também piqueiros e mosqueteiros – para lançar incursões em território inimigo ou acudir a alguma ocasião de maior necessidade. Dois soldados por animal era a “dotação” habitual. No entanto, não devem ser considerados dragões no sentido operacional (apesar de algumas fontes narrativas se lhes referirem confusamente como tal), pois não faziam operações de reconhecimento, emboscadas ou protecção do dispositivo em marcha. Os animais serviam apenas de meio de transporte aos militares.

Quanto a unidades estrangeiras de dragões no exército português, houve 4 companhias holandesas que serviram entre 1641 e 1644. Mas esse assunto será tratado num artigo próprio.

Imagem: “Escaramuça de Cavalaria”, quadro de Philips Wouwerman, c. 1640-45.

Categorias militares do exército português

Piqueiro

O exército português reconstruído após o rompimento da monarquia dual em 1640 compreendia duas categorias militares:

a) Os militares pagos. Estando sujeitos a prestação de serviço militar todos os homens válidos do reino entre os 15 e os 60 anos, salvo isenção relacionada com a actividade profissional ou outra particular, eram recrutados como soldados pagos para o exército profissional os filhos segundos ou aqueles que não tivessem a seu cargo quaisquer dependentes. Inicialmente eram chamados apenas os homens solteiros, mas ainda na década de 40 começaram a ser admitidos os casados. As levas eram efectuadas de tempos a tempos, quase sempre por pessoas de categoria elevada na hierarquia sociomilitar, sendo os abusos e desrespeito pela legislação frequentes. Os soldados pagos começaram por servir por um período indeterminado (na prática, para sempre), mas a partir de 1654 ficou estabelecido que deviam servir continuamente durante 8 anos, findos os quais poderiam regressar a suas casas. Nos anos 40 e primeira metade da década de 50, entre os militares que constituíam as forças pagas contavam-se muitos veteranos das guerras no Império ultramarino português, com destaque para o Brasil, ou que haviam servido nas campanhas europeias integrados no exército espanhol ou no dos seus aliados do Sacro Império.

b) Os milicianos, categoria que compreendia a ordenança e os auxiliares. Esta segunda força miliciana foi constituída em 1646 para a infantaria e somente em 1650 para a cavalaria. Na ordenança eram obrigatoriamente alistados todos os homens válidos entre os 15 e os 60 anos que não fossem recrutáveis como soldados pagos, sendo organizados em companhias (uma ou mais companhias de infantaria por comarca, havendo também algumas de cavalaria). Parte da gente da ordenança passou a servir nos auxiliares quando esta força foi criada (um terço e uma companhia de cavalaria em cada comarca). Em teoria, apenas os milicianos  auxiliares deviam prestar serviço nas fronteiras de guerra, pois para isso tinham privilégios semelhantes aos dos soldados pagos. A partir de 1657 passaram a receber metade do soldo que se pagava áqueles, quando partiam em campanha. Todavia, não era raro encontrar unidades da ordenança empregues em guerra viva, mesmo depois de 1646 e até fora da província de origem. Havia ainda uma subcategoria da ordenança, a dos volantes, que era composta por gente escolhida e que se destinava a formar unidades itinerantes. Com o surgimento dos auxiliares, estas unidades tornaram-se mais raras.

 Foto: piqueiro português do início da guerra, armado com pique e protegido por couraça composta por peito, espaldar e escarcelas, além do característico morrião. Apenas uma pequena parte dos piqueiros usava este equipamento defensivo. Os restantes não tinham qualquer tipo de protecção para o corpo, sendo designados por piques secos. Figurino do Museu Militar de Elvas.