Gil Vaz Lobo Freire – herói e vilão

Gil Vaz Lobo Freire, filho de Gomes Freire de Andrade e de D. Luísa de Moura, foi um dos mais incensados nomes do período da Guerra da Restauração. Participou com o seu pai no 1º de Dezembro de 1640, tendo sido um dos nobres insurrectos que procurou no Paço a Duquesa de Mântua, para a obrigar a abdicar do cargo de Vice-Rainha de Portugal. Tivesse a Duquesa o dom da premonição, teria razões de sobra para ficar muito preocupada com o jovem espadachim que lhe saíra ao caminho, cujas atitudes no futuro – durante a Guerra da Restauração – demonstrariam uma profunda indiferença pela vida humana. A par da bravura e valor no campo de batalha, Gil Vaz Lobo (é assim que é referido em quase todos os documentos) deixaria um rasto de crimes, que a sua posição social e influência na Corte conseguiriam, todavia, deixar impunes, livrando-se de condenações que pareciam tão severas como certas.

O nobre beirão cedo iniciou a sua carreira militar. Em Fevereiro de 1642 recebeu a patente de capitão de infantaria, passando a servir em Campo Maior com o seu pai. Em Novembro de 1645 foi promovido a capitão de cavalos, continuando a servir no Alentejo. A par das referências elogiosas às qualidades militares do oficial, surgem alusões ao seu carácter violento e criminoso. Os exemplos que aqui trago dizem respeito ao ano de 1652, onde num curto período Gil Vaz Lobo se viu a contas com a justiça por causa de vários crimes. No início desse ano, um grupo de mulheres de Campo Maior, encabeçado por uma Catarina Gomes, enviou uma carta ao Príncipe D. Teodósio, queixando-se da conduta de Gil Vaz Lobo e de outros militares. Quando, em carta datada de 21 de Março de 1652, o Príncipe ordenou ao mestre de campo general do Alentejo, D. João da Costa, e ao auditor geral do exército da mesma província, que abrissem um inquérito (uma devassa, como então se dizia) aos motivos da queixa, já era tarde demais. No livro de registos, à margem da cópia da carta, surge um acrescento recomendando que se iniciasse uma devassa à morte de Catarina Gomes.

Em Abril já Gil Vaz Lobo se encontrava na província da Beira, onde o governador das armas do partido de Penamacor (ou de Castelo Branco, como também era referido) D. Sancho Manuel pretendia nomeá-lo para o posto de comissário geral da cavalaria. A carta de 20 de Abril propondo o nome de Gil Vaz Lobo, enviada ao Príncipe D. Teodósio e observada no Conselho de Guerra, acabou por trazer à discussão os crimes recentes do oficial, que não se resumiam ao acontecido em Campo Maior. No entanto, os próprios conselheiros pareciam dispostos a fechar os olhos à conduta do capitão de cavalos e inclinavam-se para a aceitação da promoção, deixando à Coroa a última palavra. Segue-se a transcrição da consulta:

Nesta carta apresenta Dom Sancho Manuel a Vossa Alteza a grande necessidade que a cavalaria do seu partido tem de oficial maior que a governe porque, por falta dele, tem sucedido e sucedem muitas desordens com a liberdade que os soldados tomam, e pouco respeito com que procedem por não terem cabo maior a quem temam, arriscando-se por esta causa muitas vezes a mesma cavalaria e a reputação das armas de Sua Majestade e Vossa Alteza quando sucede ir buscar ao inimigo, ou em nossa defensa, ou em ofensa sua. E por todas estas razões pede Dom Sancho à Vossa Alteza se sirva de nomear para o posto de Comissário geral da cavalaria do seu partido a Gil Vaz Lobo porque, por seu valor e pelo conhecimento que tem daquela campanha, e por suas partes merece que Vossa Alteza o honre e lhe faça mercê, porquanto a Dom João Flux [capitão de cavalos alemão], a quem Sua Majestade foi servido de encarregar o governo dela, lhe sobrevieram tantos achaques que está impossibilitado por razão deles para exercitar o governo dela, e incapaz para montar a cavalo, havendo pouco de um ano que o não faz.

Vendo-se em Conselho a carta de Dom Sancho, pareceu fazer presente a Vossa Alteza a resolução que Sua Majestade tem tomado, de que os criminosos, enquanto não estiverem livres dos crimes que se lhe imputam, não possam ser providos em postos. E que Gil Vaz Lobo se livra de alguns crimes no juízo da assessoria deste Conselho em três processos, um deles sobre a morte de um homem sucedida em Estremoz, pela qual está sentenciado em final em pena de cinco anos de degredo para o Brasil e guerra de Pernambuco, e em duzentos mil réis para a parte com pregão em audiência. Esta sentença se não tem tirado do processo até agora, nem executada por não haver parte que o requeira.

Os outros dois processos são sobre o ferimento feito ao corregedor Sebastião Vieira de Matos e morte do seu escrivão; estes estando conclusos a final, se mandou acabar de tirar em Campo Maior certa devassa de outros casos em que também é culpado, e correr folha em Elvas, esta diligência há dias que se cometeu por cartas de Sua Majestade ao mestre de campo general e ao auditor geral em segredo, e até agora se não tem satisfeito a ela, e por se esperar resposta, se não acabam de sentenciar estes dois feitos.

Por ser este o estado em que se encontra o livramento de Gil Vaz Lobo, pareceu também ao Conselho representar a Vossa Alteza que se houver lugar de se poder dispensar no impedimento que Gil Vaz tem (conforme a resolução de Sua Majestade que fica referida) para haver de ser provido em posto, estando criminoso; e Vossa Alteza tiver por conveniente habilitá-lo para ir servir de comissário geral da cavalaria deste partido, será mui bem empregado nele todo o favor e mercê que Vossa Alteza nisto lhe fizer, por o merecer por seu valor e pelo zelo com que tem servido, e também por ter préstimo, experiência e particular génio para ocupar aquele posto. Lisboa 14 de Maio de 1652.  

Entre os crimes cometidos no Alentejo a que a consulta se reporta, um é certamente o que envolveu a morte de Catarina Gomes, e os outros, os que originaram a queixa anterior ao desaparecimento da infeliz mulher. Apesar disso, prevaleceu a influência da poderosa linhagem dos Freires de Andrade, e Gil Vaz Lobo Freire não foi muito apoquentado pelos processos em que estava envolvido. Em Agosto de 1659 foi nomeado governador da cavalaria da Corte e comarcas do Ribatejo, sendo já nessa altura tenente-general da cavalaria da Beira.

Em Maio de 1669, mais de um ano após o final da guerra, Gil Vaz Lobo foi nomeado governador das armas da província da Beira pelo regente D. Pedro (futuro D. Pedro II). Viria a falecer em Castelo Branco em 1678.

Fontes: ANTT, CG, Secretaria de Guerra, Livro 16º, fl. 15; Consultas, 1652, mç. 12, consulta de 14 de Maio de 1652.

Imagem: Jacob Duck, “Mulher e soldados jogando às cartas”.

Os dragões na Guerra da Restauração: desfazendo um mito

Não é raro ver referências à existência de dragões como um dos dois tipos de cavalaria existentes durante a Guerra da Restauração, sendo o outro os cavalos couraças. Esta confusão entre dragões e arcabuzeiros a cavalo é um dos mitos sobre o período que mais tem persistido, em boa parte pela repetição de erros surgidos em obras de autores dos séculos XIX e primeira metade do XX, como Rebelo da Silva, Fortunato de Almeida e Carlos Selvagem (cujo Portugal Militar é uma verdadeira armadilha para quem o toma como “manual” de História Militar de Portugal).

Acontece que os dragões, nesta época histórica, eram infantaria montada. O seu emprego táctico era diferente da cavalaria: combatiam sempre desmontados, dando cobertura à infantaria e à cavalaria a partir de posições abrigadas (em pequenos bosques, atrás de muros, sebes, em casas ou ruínas, etc.) e emboscando o inimigo. Um dos exemplos célebres da utilização de uma força de dragões emboscada, surpreendendo um dos flancos do dispositivo inimigo, aconteceu na batalha de Naseby em 1645, durante a Guerra Civil Inglesa (o regimento do coronel Okey, do New Model Army de Cromwell). Além disso, ao contrário da cavalaria, estavam armados com arcabuzes de mecha e não com carabinas, o que impedia a sua utilização a partir da sela.

Dois motivos contribuíram para a origem desta confusão. O primeiro radica na origem dos genuínos dragões, surgidos no século XVI como infantaria montada – piqueiros e arcabuzeiros montados em rocins, para lhes conferir maior mobilidade. Os arcabuzeiros passaram a acompanhar regularmente a cavalaria pesada (os lanceiros e mais tarde os couraceiros, sobrevivência da cavalaria pesada medieval) e acabaram por dar origem ao tipo de cavalaria ligeira designada por arcabuzeiros a cavalo. A função táctica e o armamento foram sendo adaptados ao combate montado, e embora os dragões continuassem a ser utilizados, foram remetidos ao seu papel original de infantaria montada, separando-se dos arcabuzeiros a cavalo. Só na parte final do século XVII é que os dragões passaram a ser considerados como um tipo de cavalaria, podendo combater tanto a cavalo como desmontados.

O outro motivo tem origem em algumas fontes do período, onde se patenteiam os confusos saberes (ou melhor, a falta de conhecimentos sólidos) por parte dos conselheiros militares da Coroa portuguesa, logo após a Aclamação de D. João IV. Porventura fruto de leituras mal digeridas de tratados militares do início do século XVII e até do século anterior, o certo é que o projecto de Ordenanças Militares de 1643 preconizava a constituição (anacrónica e confusa) de companhias de lanças, couraças e dragões! Joane Mendes de Vasconcelos, nos seus comentários à proposta das Ordenanças Militares, procurou corrigir o absurdo – tratava-se de um militar com experiência de combate de cavalaria e tinha conhecimento de causa. Foi este general que aconselhou a formação de companhias de couraceiros e de arcabuzeiros a cavalo, esclarecendo que os dragões, conquanto fossem úteis, eram infantaria montada e não deviam, portanto, fazer parte da cavalaria.

O facto é que, durante alguns anos, houve uma companhia (portuguesa) de dragões no exército português e a sua organização era semelhante à das companhias de arcabuzeiros a cavalo. Além disso, houve várias ocasiões em que alguma infantaria dos terços foi montada em rocins e sendeiros, transformando-se assim provisoriamente em… dragões! Mas isso será tema para uma próxima entrada.

Imagem: Parte de equipamento de dragão – capacete, colete de couro, espada, bolsa e bandoleira com frascos. A bandoleira era idêntica à utilizada pelos mosqueteiros e arcabuzeiros da infantaria. Ilustração retirada da obra de P. H. Ditchfield, Vanishing England, London, Methuen & Co. Ltd., 1910.