A última campanha de Mateus Rodrigues – a reconquista de Mourão, Outubro-Novembro 1657 (1ª parte)

IMG_1259A derradeira presença do soldado Mateus Rodrigues no Alentejo ocorreu entre 1657 e 1658, mas deste período apenas deixou uma descrição detalhada da campanha de Mourão. Abandonara o exército da província do Alentejo nos inícios de Fevereiro de 1654, ao fim de quase doze anos e meio de serviço e poucos dias antes da publicação do decreto régio que fixava em oito anos consecutivos o máximo tempo de serviço que um soldado pago devia cumprir antes de ser desmobilizado. Regressado à sua Águeda natal, ali casou, o que devia escusá-lo definitivamente de ser reconduzido ao cenário de guerra. No entanto, regressaria ao Alentejo três anos depois, obrigado pela fome. De acordo com as suas palavras,

(…) ninguém diga deste pão não hei-de comer, por farto que se veja, porque lá vem um ano mau de fome que obriga a comer (…) tudo quanto há. Pois o fim foi (…) que para mim houve tanta fome (…) que me obrigou a que fosse outra vez a ver as ditas guerras, desterrando-me a fortuna um ano inteiro fora de minha casa. (Memorial de Matheus Roiz, pg. 423)

O destaque dado à campanha de Mourão no derradeiro capítulo das suas memórias é justificado pelo soldado de cavalos pela sua afeição a Joane Mendes de Vasconcelos. Desejava assim destacar a “fama, valor e sabedoria” daquele cabo de guerra, logo secundado, na admiração e devoção do autor, pela figura de André de Albuquerque Ribafria.

Olivença e Mourão caíram em poder dos espanhóis no decurso da campanha de 1657. Se a primeira daquelas praças, tomada em Maio, foi uma perda de monta, principalmente pelo impacto negativo no moral (era uma das principais da fronteira alentejana e um dos vértices do triângulo defensivo Elvas-Campo Maior-Olivença), já Mourão – perdida em Junho – se revelou um problema maior para os portugueses. A partir dali, o inimigo fazia incursões nos campos do termo de Monsaraz, rapinando lavouras e gado, aldeias e montes, o que levava muitos moradores a abandonarem os seus haveres e casas, não se sentindo seguros.

Entradas de maior envergadura e alcance levaram a cavalaria inimiga até demasiado perto de Évora. Daí as repetidas queixas e solicitações à Rainha regente, para que ordenasse a reconquista de Mourão e o fim dos sobressaltos. É que sendo a região em redor de Olivença pouco povoada, não dava a perda daquela praça tantas preocupações como Mourão, cuja posse abria caminho ao controlo ou saqueio de vastas e férteis terras.

A Rainha acabou por ordenar a Joane Mendes de Vasconcelos que preparasse uma campanha destinada a retomar a praça. Todo o processo foi mantido em segredo, para que não constasse o verdadeiro objectivo do exército a formar. A partir daqui, sigamos a narrativa de Mateus Rodrigues.

Junta a gente das províncias, como era um terço de infantaria do Algarve muito bom, mas pequeno; e os de Lisboa, um terço novo da Câmara, e o da Armada; e com as tropas da Beira e muita quantidade de auxiliares de todas as comarcas deste Reino, para ficarem de guarnição nas praças, se saiu na maneira seguinte:

Aos vinte e um dias de Outubro, ao domingo à tarde, saiu o senhor Joane Mendes e o senhor André de Albuquerque com a maior parte do exército e com toda a artilharia, que constava de seis meios-canhões de 24 libras e oito peças de 12 libras e trabucos e outros artifícios de fogo.

Chegaram a Vila Viçosa pela manhã, onde fizeram alto até à tarde, donde se puseram outra vez em marcha. E chegando no outro dia pela manhã a Terena, que são duas léguas, mas muito grandes e de muito mau caminho para a artilharia, (…) aí fizeram alto e por decurso da tarde começaram a marchar, chegando à quarta-feira a Monsaraz, que já não fica mais de uma légua de Mourão. E aí se fez alto até de noite, que começou a marchar a carriagem para Mourão.

Tornando agora (…) atrás, digo que Dom Sancho Manuel, mestre de campo general na província do Alentejo, que suposto governa o partido de Penamacor, foi feito por Sua Majestade, na ocasião desta campanha, mestre de campo general, e daí ficou para sempre, (…) que merece como todos o metam na conta, como é o general da artilharia Afonso Furtado de Mendonça, que obrou em seu cargo como adiante se verá.

Digo que Dom Sancho Manuel marchou diante do grosso do exército com seis terços de infantaria e um grosso de cavalaria de 600 cavalos com suas bagagens, e quando o nosso exército chegou a Monsaraz à quarta-feira, já Dom Sancho tinha amanhecido com o seu grosso à roda de Mourão, atacando a praça, de modo que nunca foi possível poder o inimigo lançar fora aviso algum, e alguns que botava, todos lhos apanhavam cá fora. E como o inimigo não via mais que aquele pouco grosso, fazia zombaria dos nossos. Começou a jogar com sua artilharia e mosquetaria, mas com pouco efeito, porquanto os nossos estavam encobertos e não recebiam dano do inimigo, nem o inimigo também recebia dos nossos, porque eles não podiam pelejar em forma até que não chegasse o nosso exército todo junto. (MMR, pgs. 427-429)

Imagem: Monsaraz. Fotografia de JPF.

 

Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645, última parte) – Carta de D. Gregório Ortis de Ibarra ao Marquês de Molinguen

Com a publicação desta carta, a partir de uma cópia do original em castelhano, termina a série dedicada a este evento menor, quase insignificante, da Guerra da Restauração (não foi insignificante de todo, porque se perderam vidas humanas e mais uma vez a população da raia se viu a braços com as incursões de pilhagem que sobressaltavam o seu quotidiano). A carta é, de facto, um relatório da entrada no termo de Monsaraz, e permite contrapor a versão espanhola às diversas narrativas que sobre o mesmo acontecimento se produziram do lado português. Foi escrita pelo tenente-general D. Gregório de Ibarra, comandante da força espanhola que fez a incursão, e era destinada ao general da cavalaria , o Marquês de Molinguen. As palavras em castelhano são por vezes escritas com grafia portuguesa (por exemplo, companhias em vez de compañias, troços em vez de trozos, etc – de um modo geral, é empregue o ç em vez do z), o que pode tratar-se de um erro de quem copiou a carta original. O castelhano original seiscentista foi respeitado.

Doi parte a V. Excelencia de las aventuras destas companhias, que no ha sido poco, el que todas no quedasen en Portugal, por las buenas noticias que me dio Ramos, que asi sea su salvo. Lo que succedio es que, conforme la orden de Vuestra Excelencia, y lo que tenia dispuesto con dicho Ramos era que las seis compañias se dividiesen en tres troços, el uno en la Luz, el otro en el esguaço, y el otro que passasse Guadiana; para que inquietando Monçaras, saldria a algunos de estos puestos la compañia de Moron [Mourão]. A lo qual digo, Señor, que el enemigo se emparejava y a que no fuesse mas a qualquiera destos troços; y que quedava a la fortuna el buen, o mal successo. Y assi tomamos la marcha el dia que di aviso a V. Excelencia, y el siguiente estuvimos emboscados de donde embié a tomar lengua y truxeron tres, y todos convinieron en que la compañia de Moron  no havia mas que una esquadra, porque todos los demas cavallos estavan mlos de lamparones, y que se havian llevado a curar. Y el capitán havia ido a Helves [Elvas], porque se dizia iva a ser comissario general. Y viendo esto, todos los capitanes y yo acordamos, ya que estavamos en aquel paraje, si se podia intentar el hazerle algun daño al enemigo, y Ramos y todos sus confidentes dixeron que si, y mui facil, porque en dos aldeas que estan mas adentro dos leguas de Monçaraz se podia traher dos mil bueyes y vacas, y preguntandoles si a los esguaços de Guadiana nos podia el enemigo impedir, dixeron que no, por dos causas; la una, porque el enemigo no tenia fuerça para ello, y que nunca acostumbrava ocupar estos puestos, y que quando quisiesse, no se hallava con furça para ello, ademas que quando los ocupasse, que Guadiana se esguaçava por todas partes. Y asi resolvimos el hazer esta entrada, y todos convenimos en que no quedasse ninguna compañia en el esguaço, porque quedaba perdida como lo seran, aunque quedassen mil cavallos  por el mas terreno, y que un infante bale en aquel paraje por vinte. Enfin, Señor, ganamos a estas aldeas, de donde se cogio cosa de seis cientos bueyes y vacas, dos mil cabras, y algunos puercos, y de saqueo una aldea y caserias, y tomando nuestra marcha la vuelta del esguaço, le hallamos ocupadocon gruesso de cavallaria y infanteria y nos fue fuerça el buscar otro, y estaua ocupdo en la misma conformidad; con que fuimos al tercero y fue todo uno; y diziendo a las guias que como me havian dicho, que Guadiana se esguaçava, y no me enseñavan por donde, se encogieron de hombros medio turbados. Esto ès lo que sabe hazer el buen Ramos, y viendo qu eramos cortados y perdidos, embie a Don Juan Unsueta y Don Christoval de Bustamante y mi compañia pera que, perdiendo o ganando, pasassen el esguaçoy que le limpiassen del enemigo, para que yo, en el interin, diesse calor a que pudiesse passar tambien el ganado, y como para obrar esto havia de passar tiempo, el enemigo se engrossava, yo le hize mas de tres horas peleando con el; y como eramos cortados por vanguardia y retaguardia, y el passaje tan aspero, torne a ordenar a Don Juan Unsueta cerrasse dentro de su misma fortificacion con el enemigo, lo qual puso por execucion, y obligo al rebelde a meterse entre unos peñascos. Y viendome yo impossibilitado el poder retirar la presa e salvar la cavallaria, lo hize con toda presteza dexandola, y unos al esguaço, y otros a nado, escapamos con gran ventura, porque el enemigo havia encorporado todo su gruesso. Nuestra perdida han sido diesyseis cavallos muertos de mosquetaços, y quatro soldados muertos y algunos heridos. Lo que puedo asegurar es que creo emos salido bien desquitos. Lo que se pudo salvar fue hasta diesyseis o diesysiete presas maiores y menores, entre las quales ha havido uma excellente potranea y una mula, las quales estos señores capitanes se las embian a V. Excelencia, y la restra entre estos malos guias y dichos capitanes se han consumido. Mi retirada  fue por Moron, y vine a parar a Oliva, oy, sabado, treinta del corriente, y para los cuarteles partiremos mañana, adonde V. Excelencia me podra dar el parabien de tan venturosa retirada. Dios guarde a V. Excelencia muchos años y le suplico otra vez no se fie de gente ruina. Oliva, treinta de septiembre de 645. De V. Excelencia, Don Gregorio Ortis de Ibarra. (Dos cavallos de los mios fenecieron de dos mosquetaços, con que quede acomodado. Sobrescrito – Al Excelentissimo Señor Marqués de Molinguen, guarde Dios, capitan general de la cavallaria del exercito, &tc. Badajoz.

Como se pode verificar, os números apontados na carta do tenente-general Ibarra diferem bastante dos que circulavam entre as notícias portuguesas. Por outro lado, verifica-se a habitual auto-desculpabilização dos comandantes, quando as operações militares não corriam conforme o previsto – traço comum em ambos os exércitos.

Fonte: Copia de huã carta de D. Gregorio Ortis de Ibarra cabo da gente que entrou no termo de Monçaras, para o General da Caualaria Castelhana (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 43-44)

Imagem: “Cena de pilhagem”, pintura de Sebastian Vrancx, do período da Guerra dos 30 Anos (1618-1648). Museu do Louvre, Paris.

Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645) – Carta de Mourão com novas desta entrada

A 29 de Setembro de 645, dia de S. Miguel amanhecente entraram 300 castelhanos de cavalo no termo de Monsaraz, aonde vinha a companhia do Lara e Bustamante e Don Alonso de Cabrera por cabo, que são os da fama. Chegaram até à Caridade, vieram recolhendo todo o gado que acharam até Vale de Xeres e Dona Amada. Quiseram vir passar ao porto da Vila Velha, acharam, dizem, seriam sessenta homens do termo de Monsaraz, não se atreveram a passar, foram ribeira acima, estavam ao porto de S. Gens outra pouca de gente, houveram-se tão bem, que os castelhanos houveram por bem largar a presa toda com perda de alguns mortos, e cuido disseram haviam achado, e lhe tomaram cinco cavalos vivos, afora outros que pelo campo se acharam mortos. Vieram-nos dando vista pelo caminho velho, direito ao Penedo da Corva, vieram sair à fonte de Pedro Mateus. Começou-se a jogar com a artilharia, de modo que logo se tomou um cavalo passado pelo pescoço com um pelouro de uma peça, e ainda está vivo, de modo que lhe fugiu um cativo dos que levaram de Valência, e vindo pelo caminho por donde foram, achou à cabeça de João de Vilheiro cinco homens mortos, e disse que levavam alguns com pernas e braços quebrados, e outros feridos, que de noite se queixavam muito; e dizem que todos aqueles haviam morto [morrido] com a artilharia. Parece que Nosso Senhor nos quer ajudar, e bem os castigou nesta jornada, em verdade que bem se pode restituir aos de Monsaraz o crédito, que tão perdido o tinham. Também temos novas que tem o castelhano muita gente junta. Acuda-se a tudo, etc.

Mourão, o derradeiro de Setembro de 645.

António Cordeiro de Sande

Fonte: Carta de Mourão que dá novas desta entrada (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 42 v-43)

Imagem: “Cena de Pilhagem”, gravura de Jacques Callot, do período da Guerra dos 30 Anos (1618-1648).

Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645) – O rebate em Évora

Conforme tinha sido referido na primeira parte desta série, um dos documentos inéditos acerca desta operação reporta-se ao sucedido em Évora, quando aí chegaram as notícias da entrada da força espanhola no termo de Monsaraz. É esse documento que a seguir se transcreve:

Sexta-feira, 29 de Setembro de 645, dia de S. Miguel, pouco depois do meio dia, chegou recado ao capitão-mor Luís de Miranda de João de Mira, lavrador, capitão do campo da freguesia de S. Vicente, que aquela manhã vinha entrando grande poder de gente castelhana, tanto avante que entendeu que marchava para esta cidade. Mandou logo o capitão-mor chamar o sargento-mor, que viesse correndo a casa do chantre para que mandasse picar o relógio a rebate e fizesse fechar todas as portas da cidade, tirando a de Alconchel, e tocarem caixa todas as companhias; fosse tudo com muita diligência, cerrando-se as portas das estacadas, que algumas estavam no chão. Acudiram a casa do capitão-mor todos os oficiais, e o capitão Luís da Silva Vasconcelos ia correndo pela cidade a cavalo dizendo “Arma, senhores, arma”, o que causou grande perturbação nas mulheres, levantando a esta voz seus choros e gritos. Levou-se o recado ao Cabido, porquanto o senhor chantre estava de cama sangrando daquela manhã, presidindo o tesoureiro-mor Dom Veríssimo, e se mandou logo a todos os clérigos da cidade que tomassem armas, e mandaram recado a todos os conventos de religiosos para que estivessem prestes. O primeiro de todos que se foi oferecer ao capitão-mor foi Dom Rodrigo de Melo, arcediago e cónego da sé, com 24 criados armados; o mesmo fez Dom Teotónio Manuel e Dom Veríssimo, a que se seguiu uma numerosa companhia de clérigos, que levavam por capitão o mestre-escola Duarte de Vasconcelos com um arcabuz às costas, e os mais todos armados com mosquetes e espingardas. O mesmo fizeram todos os fidalgos da terra, como foram Fernão Martins Freire, seu filho Luís Freire, Henrique de Melo de Azambuja, Manuel de Mendo, Martim Ferreira da Câmara, Jorge da Silva Velho, Rui de Brito, Dom João Solis, Vasco de Melo e toda a nobreza da cidade. Foi a gente tanta que se puderam coroar os muros, porém contentou-se o capitão-mor em mandar ocupar a praça com um grande corpo de guarda, e em cada porta da cidade outro, e pelos muros, em cada ponta do lenço, um soldado de vigia.  Com o repique do relógio acudiu muita parte da gente que andava na vindima ao longo da cidade, e trouxeram consigo o gado que tinham. A gente de cavalo se ajuntou também na praça com seu capitão João de Macedo, não chegavam a cento, deles escolheu o capitão-mor uma tropa de vinte e cinco, que com o mesmo João de Macedo mandou que fossem pelo caminho de Montoito, por onde diziam que o inimigo vinha, até achar língua, e que não passasse de Montoito. Estando todas as coisas neste estado, chegou um correio de Elvas, que mandava o Conde general ao capitão-mor, pedindo-lhe cavalgaduras de carga para a bagagem do nosso exército, em caso que o inimigo saísse de Badajoz, donde até então não tinha partido. Veio este correio por Vila Viçosa e pelo Redondo e chegou à cidade às quatro horas, sem em todo o caminho se achar nova, nem rumor algum da entrada dos inimigos, por onde se entendeu que o lavrador João de Mira se enganou em cuidar que marchavam os castelhanos pela terra dentro. A certeza deste discurso se confirmou logo, porque pouco depois chegou recado de João de Mira que os castelhanos, chegando a algumas herdades, tomavam o gado e roubavam as casas e se tornavam. Mandou logo o capitão-mor este recado ao senhor chantre, com o qual se recolheram os eclesiásticos e fidalgos, mas a cidade ainda se ficou guardando pela gente da ordenança. O capitão João de Macedo passou a noite em Montoito, onde se ouviram muitas peças de artilharia e muitos mosquetes. E ao outro dia se soube como saindo alguma gente daquelas freguesias a esperar os inimigos no vau por onde dizem que entraram, lhe deram algumas cargas, com que lhe fizeram deixar todo o gado que levavam, com morte de cinco castelhanos, fugindo os outros todos, muitos deles feridos, deixando alguns cavalos. O padre regedor da Universidade mandou repicar o sino do colégio, e como eram férias e não vindos ainda os estudantes de fora, acudiram somente alguns da cidade, que não chegaram a fazer número de trinta, mas esses armados, e mandando-lhe o reitor dar sua bandeira e tambor, saíram pela cidade até casa do capitão-mor, e tornando ao colégio ficaram toda a noite guardando a trincheira da cerca.

Os castelhanos dizem que eram sete tropas, e segundo isto não podiam chegar a duzentos e cinquenta, ainda que ao outro lhe pareceu que eram quinhentos. O guia desta gente era um negro escravo de um fidalgo de Monsaraz que tinha fugido para Castela, este, como conhecia todos os lavradores daquele território e os portos por donde se podia passar o Guadiana, os devia persuadir a fazerem esta entrada, ou com esta ocasião a tomaram eles, por onde parece isto era gente solta de Xerês e Ensinasola e Aroche. O negro os trouxe pelas herdades dos mais ricos, ou dos menos amigos, mas como pela artilharia de Mourão viram que eram sentidos, procuraram logo voltar, e nas herdades onde achavam resistência passavam por se não deter.

Fonte: Entrada de Castelhanos no campo de Monçaràs e rebate de Évora (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 41 v-42 v)

Imagem: Évora. A Porta de Alconchel na actualidade. Foto de JPF.

Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645) – parte 3

Partido o dito capitão pela outra parte da vila sem ser visto nem sentido do inimigo, foi o dito inimigo seguindo seu caminho para o dito porto, e encontrando a gente do Reguengo de sobressalto, todos se espalharam cada um por onde pôde, porém logo se foram ajuntando com seu capitão Domingos Pires Guato, e (…) se lhe ajuntou o capitão Domingos Valada com a sua companhia das Vidigueiras, e ambos juntos vieram pelos alcances do inimigo, até chegarem a avistá-lo junto aos Álvaros Gis, e por aquelas barrocas e partes mais altas e ásperas o vieram seguindo sempre, [a]tirando-se-lhe alguns tiros de mosquetes a seus corredores de retaguarda, com o que os inquietaram muito, e assim lhe vieram seguindo os passos até o Monte do Boi, dando-lhe muito boas cargas. Vendo-se o inimigo enfadado de os nossos o perseguirem tanto, ou por lhe fazer algum dano, se virou com a maior parte de sua gente em tropas fechadas para os romper, ou pôr em fugida, o que começaram a fazer alguns, que fora total perdição de todos se o capitão Valada não metera mão à espada, dando-lhe muitas espadeiradas e algumas feridas, ajudado do capitão Guato e do seu sargento, de sorte que os fizeram ter, e tiveram lugar de ganhar um palanquezinho que ali está, donde se tiveram e esperaram ao inimigo. Dando-lhe muito boas cargas o rebateram, depois de porfiarem um bom espaço por entrarem no palanque, que todo o tinham cercado, e como não lhe faziam bom agasalho, se foram alargando. Neste tempo, com o tiro de uma cravina caiu um cavalo de um que andava diante, devia de ser pessoa de porte, porque como se retirou deixando o cavalo, logo todos largaram a pretensão e se vieram em seguimento do gado que vinha pelo Monte do Caminho. Saindo às duas lameiras e serra do Vale de Xeres se vieram chegando ao rio, porém o gado todo o levaram para baixo, de modo que esteve junto do Álamo, que fica muito distante do porto por onde queriam passar. E chegando com o dito gado ao Monte dos Mouros, dizem que tiveram vista de dois ou três homens de cavalo nossos, e imaginando que havia gente nossa no porto de Portel, vieram com o gado rio acima. O capitão António Pereira, tanto que chegou ao porto de Vila Velha com a gente que levava, passou o rio da outra parte. Escolhendo um bom posto, se puseram encobertos para que se o inimigo [a]cometesse o dito posto, o rebater. E chegando alguns do inimigo ao dito porto, se disparou por descuido um mosquete nosso, com que foram sentidos os nossos, de sorte que o inimigo se começou a retirar. Contudo, aqui se lhe [a]tiraram alguns tiros de mosquete, com que se desviaram mais depressa e fizeram alto na Cabeça Solta. Ali deviam ter aviso, ou viram que o gado ia muito abaixo e marcharam todos para lá, e encontrando-o, que já vinha para cima, se vieram todos em demanda do mesmo porto, e tornaram a fazer alto na Cabeça Solta. Nesta volta que fez o inimigo, tiveram lugar as companhias do termo, que já se lhes haviam juntado a de S. Marcos e a de Montoito, de lhe darem algumas muito boas cargas entre o Vale de Xeres e o Monte da Barca. E investindo aqui os nossos, guiados do capitão Guato e Simão Lopes, com uma boa tropa que o inimigo ali tinha, lhe fizeram largar o posto e fugir para os mais. Já aqui o inimigo vinha perdido, porque a gente do capitão lhe ficava à retaguarda, e por diante achava o porto por onde queria passar impedido, e assim se resolveu a mandar duas valentes tropas, com mita gente, a passar pelo porto de Mourão, que chamam o porto de São Gens, guiados pelo mulato Mateus, natural desta vila, cativo [ou seja, escravo] que foi de Baltasar Limpo. Bem viu o capitão António Pereira vir aquela gente a passar, mandou logo pôr sentinelas, por que os não colhessem descuidados. Passado o inimigo da parte de além do rio, e feita uma das tropas em duas, os acometeu no porto com grande ímpeto e fúria, imaginando fazê-los largar o posto ou rompê-los, e com grande grita[ria] das outras tropas que ficaram desta parte com o gado, que diziam com muito altas vozes, para que as outras tropas que acometiam os ouvissem “cerra Espanha, cerra Espanha”, e isto muitas vezes, querendo também cometer o posto, para que uns de uma parte e outros de outra tomassem os nossos, que os tinham no meio, e os rompessem ou fizessem largar o posto, para eles passarem com o gado livremente. Mas foram as duas tropas tão bem recebidas e com tão boas cargas, que depois de os investirem duas vezes se retiraram com perda, e vindo a outra sua tropa muito à pressa, em socorro, se encontraram junto da igreja de Santiago que está naquele lugar, e não sei eu que novas as duas tropas lhe deram, que todas se retiraram ao largo, e depois voltaram sobre o porto de Mourão, aonde fizeram alto. A outra sua gente que estava desta parte, tanto que viu o sucesso dos seus e ouviram uns poucos tiros que alguns nossos [a]tiraram ao porto de São Gens, logo desentenderam de tudo e largaram todo o gado e fugiram infamemente pelo rio acima, indo sempre ao longo dele por partes por onde se não pode andar a pé, mas que não fará o temor e necessidade.

Neste tempo tinham chegado catorze ou quinze infantes nossos ao dito porto, e como os inimigos iam tão apressados, lhe deram suas cargas, que os meteram em tanta confusão que se apinharam dentro na água. Muitos passaram a nado pela garganta do pego, que se o rio levara alguma água ocasião houve de se perderem muitos. Aqui lhe tomaram muitas cavalgaduras carregadas de roupa e cinco cavalos seus e alguns escravos que levavam cativos, e os prisioneiros, e assim se foram fugindo. E ao passar por Mourão lhe saiu o tenente de Dom João de Ataíde [era o tenente Agostinho Ribeiro] com alguns vinte cavalos que ali ficaram, a escaramuçar com eles dando-lhes cargas e chamando-os para lhe chegar a artilharia, o que se logrou porque lhe [a]tiraram nove peças, que lhe deram no meio das tropas e lhe mataram dois cavalos, mas não se sabe quanta gente, porque não deixaram pessoa alguma. E lhes perderam no nosso termo alguma gente, eu tenho alcançado que são doze pessoas as que se acharam mortas e outras que lhe viram levar em cavalgaduras atravessadas. E de crer é que que, em tanto distrito que se lhe foi [a]tirando, lhe mataram muita gente, porque foram seguidos mais de légua e meia [aproximadamente 7,5 Km], e a tempos se lhes davam muito boas cargas, e é certo que levaram muita gente ferida, e lhe ficaram muitos cavalos mortos. De um prisioneiro que levaram até onde fizeram pouco soubemos, que toda a noite estiveram gemendo muitos que seriam os feridos, e diz este que se achou perto donde estavam falando uns castelhanos, e que dissera um: “mal viaje havemos echo”, e falando outro, parece que encontrando-o [ou seja, contrariando-o], tornara ele: “boto que nos cuesta mas de cien hombres entre muertos y heridos”, no que se não põe dúvida, pelo bom agasalho que se lhe havia feito em todo o dia. E é de notar que não houve da nossa parte nenhuma morte nem ferida, donde eu entendo e creio que foi um grande milagre que Deus Nosso Senhor fez, por intercepção do Glorioso Arcanjo São Miguel e das almas do Purgatório, cujas festas se faziam naquele e no dia seguinte. E para que ficasse todo o louvor à gente desta vila e termo do bom sucesso deste dia, há-de se advertir que mando[u] o capitão-mor desta vila dois ou três recados muito a tempo ao de Mourão; e o mesmo fez o capitão António Pereira depois de estar no rio, que lhe mandasse algum socorro, ou lhe mandasse guarnecer algum porto; não mandou soldado algum [o capitão-mor de Mourão], desculpando-se que tinha pouca gente para poder mandar. E ainda que se pudera dizer que o Limpo, com os companheiros, fizeram grande temeridade em escaramuçarem com o inimigo, não se lhe pode negar o louvor a todos; nem menos ao capitão António Pereira que, com tão pouca gente e mal disciplinada, se opôs a tanta cavalaria e tão luzida, que é de crer vinha muita gente de porte nela. Em resolução todos o fizeram muito bem e cada um melhor. Queira Deus levar muito avante este Reino, e que as armas do nosso Rei sejam sempre vitoriosas dos nossos inimigos.


E assim termina a relação. Uma longa narrativa que empola uma acção insignificante no contexto da guerra, mas de grande importância para uma região que não era então das mais agitadas pelas operações na fronteira e cuja pacatez fora quebrada de forma brusca e súbita. Essa escala de vivência da guerra confere outra dimensão ao drama humano, quase sempre esbatido no grande quadro das operações militares.

De realçar que Mateus Rodrigues não inclui esta incursão nas suas memórias, apesar do documento aqui transcrito se referir à  intervenção da companhia onde o soldado servia na altura, a do comissário geral D. João de Ataíde. Contudo, o memorialista refere, em algumas passagens da sua obra, a região onde se desenrolou este episódio e na qual a sua companhia esteve alojada pelo menos entre 1644-45 e 1648.

Um outro dado aparentemente menor, mas que é de salientar, é a referência, por parte dos soldados espanhóis, ao termo “Espanha” como grito de guerra e factor de identificação. Mais um exemplo a juntar a vários outros que tenho vindo a pesquisar e a encontrar, e que contraria opiniões académicas recentes e bem divulgadas (estou a lembrar-me de alguns trabalhos do Professor António Hespanha e do Dr. Fernando Dores Costa), nas quais se nega a ideia de “Espanha” como factor identitário por parte dos militares de Filipe IV, apontando para a historiografia tradicional portuguesa, nacionalista e romântica, a criação desse pretenso “mito”. Nada como investigar a fundo as fontes primárias para corrigir mitos mais recentes – mas é essa, mesmo, a função do historiador, cujas conclusões nunca são definitivas.

Fonte: Relação da entrada dos Castelhanos no termo de Monçaras (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 45 v-49)

Imagem: Novissima regnorum Portugalliae et Algarbiae descriptio (c. 1680). Biblioteca Nacional, Cartografia, CC1681A.

Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645) – parte 2


Boa parte das terras que no século XVII serviram de palco à incursão que aqui é relatada estão hoje submersas, devido à construção da barragem do Alqueva, como se pode verificar pela imagem retirada do Google Earth que acima se reproduz. Mas retornemos à narrativa, interrompida no momento em que 80 infantes e 17  cavaleiros da ordenança montados em éguas saíram de Monsaraz.

Se foram detrás da serra de Gaspar Dias, aonde estiveram com determinação de esperar o inimigo (se por ali viesse). Depois de um bom espaço de tempo se tornaram todos a subir a serra, porque lhe chegou um corredor nosso novo, que o inimigo vinha marchando pela estrada de Évora para passar entre a serra e as vinhas e que eram muitos, no que se certificaram com a vista e temeram com muita razão, porque vinham cinco ou seis castelhanos para cada infante nosso. E assim se foram retirando pelo cume da serra para pé da atalaia, aonde fizeram alto, e ouviu-se uma voz de um soldado bisonho, e disse “senhores, o poder do inimigo é muito grande, mostremo-nos neste alto espalhados para que pareçamos muitos”, o que se executou com tão bom acerto que foi total perdição do inimigo e remédio nosso. Neste tempo vinha o inimigo passando pelo Monte do Duque com três tropas de vanguarda e seus corredores diante, e contra o Monte do Cazevel e a aldeia dos Moinhos. Fizeram alto as três tropas, aonde estiveram grande espaço de tempo indecisos, porque seus corredores lhe levaram a nova que haviam visto da aldeia (onde haviam estado) muita gente na serra e ao pé da atalaia que era nossa. Na detença que fizeram deviam de mandar aviso às quatro tropas que vinham de retaguarda na acumada do Monte do Duque, donde pareciam os campos cobertos de gado, que era muito. Deviam tomar resolução de virarem com temor da nossa gente, parecendo-lhe que era muita e que seria ali vinda de Olivença, porque perguntavam a um prisioneiro quantas léguas havia daqui àquela praça; e dada a resposta pelo prisioneiro, viraram todo o gado e a cavalaria pela de Mísia Nunes, e pelo Barrocal da Morgada, e Santa Margarida, vindo sair ao Monte do Caminho e ao de Gaspar Pereira, aonde chegaram Baltasar Limpo, Manuel Tenreiro e Fernão Rodrigues e o Garção, e o João Nunes e o Tourillo, e Diogo Mendes dos Abandeiros, soldados de cavalo da ordenança desta vila e termo, que iam em seguimento do inimigo. E no dito Monte de Gaspar Pereira tiveram um[a] gentil escaramuça com uma pouca de gente que ali estava, dando-se muito boas cargas por espaço de muito tempo, e saíram também os castelhanos a dar-lhas, até que largaram o posto e se foram seguindo os mais, e não pararam ainda aqui porque se foram [a]trás [d]eles, e nas matas tiveram outra mais travada. E é certo que os desviaram da adega e horta do Licenciado Marcos Esteves, sendo os castelhanos mais de vinte e os nossos os sobreditos.

Os nossos da serra, vendo o muito poder do inimigo, estavam perplexos, sem saberem o que haviam de fazer na parada que o inimigo fez à vista deles. Disse então um dos mais atentados soldados  dos nossos, que era grande temeridade estarem ali com tão pouca gente, porque se o inimigo se resolvesse a vir por aquela parte e os [a]cometesse, que mal lhe poderiam resistir. Que o acerto era com grande brevidade retirarem-se para a vila, porque ficaria nela muito pouca gente, e que poderiam lá ser necessários. O capitão António Pereira de Oliveira, parecendo-lhe bem o conselho, despachou logo um de cavalo ao capitão-mor, dando-lhe conta do poder que era muito superior ao nosso, que se lhe parecesse retirarem-se para a vila o fariam. Partido este recado, viram que o inimigo virava para baixo, e sem esperarem resposta do capitão-mor se veio a nossa infantaria, com alguns de cavalo, pelo caminho da vila, e dela mandou segundo recado o dito capitão ao capitão-mor, que o inimigo ia virado para passar o rio de Guadiana por baixo desta vila, que lhe desse sua mercê licença para vir ocupar um porto, por onde se entendia havia de passar o inimigo. E logo, sem esperar resposta, se pôs a caminho com grandíssima pressa por chegar ao dito porto primeiro que o inimigo. E o dito capitão-mor lhe mandou recado, que fosse em boa hora.

(continua)

Fonte: Relação da entrada dos Castelhanos no termo de Monçaras (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 45 v-49)

Imagem: Em cima, “Escaramuça de cavalaria”, pintura de Pieter Meulener, com permissão para reprodução para fins não comerciais a partir deste site. Em baixo, a região onde se desenrolou parte da acção aqui narrada, hoje em dia (imagem Google Earth).

Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645) – parte 1

O ano de 1645 foi fértil em acontecimentos bélicos na província do Alentejo, desde a frustrada intenção do 2º Conde de Castelo Melhor de tomar Badajoz, passando pelas investidas do exército espanhol sob o comando do Marquês de Leganés, até ao episódio, já diversas vezes tratado neste blog, do desastre de Alcaraviça (aqui, aqui, e aqui). No entanto, um dos pequenos casos de guerra que ocorreram nesse ano passou quase despercebido. Nem o minucioso Conde de Ericeira lhe faz referência na História de Portugal Restaurado (embora não lhe tenha escapado sequer a presença no exército do Alentejo, nesse ano de 1645, do rei das ilhas Maldivas, senhor de grande riqueza e muitos vassalos no Estado da Índia, que tinha vindo a Portugal pedir auxílio a D. João IV para retomar o trono que um seu irmão lhe havia usurpado, e que entretanto decidira servir algum tempo no exército daquela província, com honras de oficial superior).

O episódio de menor envergadura a que me reporto é uma entrada da cavalaria espanhola na zona de Monsaraz, que acabou por colocar em alvoroço a própria população de Évora. Sobre este acontecimento da pequena guerra de fronteira existem quatro referências manuscritas que se completam. Três foram produzidas por portugueses, ao jeito das habituais “Relações” do período. A primeira, da qual se inicia aqui a transcrição, respeita à entrada propriamente dita. A segunda reporta o acontecido em Évora após terem chegado as novas da incursão. E a terceira é a cópia de uma carta remetida de Mourão, acerca da entrada do inimigos nos campos da região. E a quarta é outra cópia, esta em castelhano, de uma carta do tenente-general D. Gregório Ortis de Ibarra para o general da cavalaria Marquês de Molinguen, dando conta do sucedido na operação.

Nada do que aqui se irá apresentar foi alguma vez publicado, tendo eu tomado conhecimento deste episódio esquecido da guerra de fronteira através de um manuscrito existente na Biblioteca Nacional de Madrid, cuja cópia em boa hora me foi enviada pelo estimado amigo Julián García Blanco, a quem muito agradeço.

A transcrição do original manuscrito foi vertida para português corrente.

Relação da entrada dos Castelhanos no termo de Monsaraz

Em 28 deste mês de Setembro, véspera do bem-aventurado Arcanjo S. Miguel, vieram à coutada desta vila seis corredores castelhanos, e nela cativaram três homens nossos e os levaram. Veio logo recado a esta praça, saíram dela doze homens nossos em éguas, que foram em busca sua até muito além de Cheles; e foi Deus servido que errassem a trilha, porque fora sua perdição se lha acharam, porque haviam de segui-la até se meter no poder do inimigo. Os voltadores [sic] castelhanos com os prisioneiros foram ao da Lapa, aonde acharam muita gente de cavalo, mui luzida, com muitas couras guarnecidas de ouro e prata, e bandas de custo, e muito gentis cavalos; e é certo que era a melhor cavalaria escolhida, a que tem o inimigo em Badajoz. Dizem que eram seiscentos cavalos; e há outros que afirmam que era maior número. Com a confissão que fizeram os cativos se puseram logo a caminho para o termo desta vila, de modo que, quando amanheceu, estavam metidos dentro nele. Em S. Pedro do Corval deixaram uma tropa e foram repartindo outras pela terra dentro, e punham-nas em partes altas e descobertas, porque seus corredores fossem saqueando e ajuntando o gado, o que fizeram com grande cuidado, roubando a maior parte das casas do termo; porque o fizeram quase a toda a freguesia de S. Pedro, e na de Caridade lhes ficou muito pouco, e ainda tocaram na das Vidigueiras, e no termo de Évora e Montoito, usando de crueldades em razão dos roubos, porque despiam a toda a mulher que achavam com bom vestido, e pelo conseguinte a homens e meninos. Mataram duas ou três pessoas sem pelejarem e feriram poucas mais. Em três ou quatro montes se fizeram os nossos moradores do termo fortes e ficaram livres. A mesma sorte teve a aldeia do Reguengo de Baixo, porque de umas trincheiras que tem, com poucos defensores que ali se acharam, os detiveram e fizeram retirar. Da mesma maneira se houve o Licenciado Paulo Duarte, que com alguma gente que se lhe ajuntou, se defendeu do inimigo, e fez que não chegasse à igreja e aldeia que ali está. Diferente a tiveram as aldeias do Reguengo de Cima e a do Mato, que as entraram e saquearam, e todos os mais montes que há por aquela banda, donde roubaram muita quantidade de roupa, fato e algum dinheiro, e até na igreja de S. Pedro entraram e despiram as imagens da Virgem Nossa Senhora do Rosário, e Conceição, deixando-as no chão como se foram hereges.

Depois de ajuntarem todo o gado vacum que por ali havia, que era muito muito [sic], e cabras e porcos que também era muita quantidade, se vieram recolhendo para S. Pedro, aonde se ajuntaram todos, e vieram marchando pela estrada que vem de Évora para esta vila.

No dia do glorioso Arcanjo S. Miguel, pela manhã, chegou a esta vila nova [ou seja, notícia] onde estava o inimigo, mas muito diferente na quantidade do que era, porque diziam que seriam 150 homens de cavalo. Ordenou logo o capitão-mor Luís Álvares Baines que lhe saísse desta vila gente; para o que se ofereceu logo o capitão António Pereira de Oliveira, que foi com a que havia, acompanhado dos alferes Gaspar Grisante, Rafael Segurado e Miguel Gomes de Sampaio, com o sargento da companhia do dito capitão, Francisco Mendes Couto, e os sargentos Simão Lopes e Diogo Mendes. E assim se foram [a] caminho da serra da Atalaia. Seriam pouco mais de oitenta infantes, com dezassete homens de éguas que aqui estavam.

(continua)

Fonte: Relação da entrada dos Castelhanos no termo de Monçaras (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 45 v-49)

Imagem: Sebastian Vrancx, cena de pilhagem (detalhe de uma pintura do período da Guerra dos 30 Anos).