“A Batalha de Montes Claros. Perspectiva de um Engenheiro Militar”, de José Paulo Berger

libro-batalha-de-montes-claros

O mais recente estudo sobre Montes Claros, da autoria do Coronel de Engenharia José Paulo Berger, é uma excelente análise interpretativa sobre a decisiva batalha da Guerra da Restauração. Assente numa minuciosa investigação do terreno e das suas características, trata-se de um trabalho inovador, cuidadosamente pesquisado e muitíssimo bem escrito, que vem enriquecer a historiografia militar portuguesa. A não perder!

350 anos da batalha de Montes Claros (17 de Junho de 1665)

Passam hoje 350 anos sobre uma das mais importantes batalhas da Guerra da Restauração. O exército português, comandado por D. António Luís de Meneses (Conde de Cantanhede e Marquês de Marialva) e pelo Conde de Schomberg. compreendendo contingentes ingleses e franceses, derrotou nas proximidades de Vila Viçosa o exército espanhol comandado pelo Marquês de Caracena. Não foi uma batalha decisiva no imediato, mas contribuiu para apressar o final de um longo conflito que opunha as duas Coroas peninsulares.

Em breve será construído um Centro de Interpretação da Batalha de Montes Claros. A seu tempo serão aqui dadas mais informações.

Batalille_de_Montes_Claros_-_azulejo_XVIIe_siècle_Palais_Fronteira,_Lisbonne

Montes Claros revisitado – mais algumas fotos do campo de batalha na actualidade

Imagens do campo de batalha de Montes Claros, obtidas a partir do monte Mouro, à esquerda do dispositivo português formado em batalha. Nesta primeira foto, no lado direito da mesma e assinalado com um X, é visível o Convento da Luz, situado à retaguarda do exército português. Também assinalada na foto abaixo se encontra a elevação que foi ocupada pelos terços da vanguarda do exército, sobre a ala esquerda. A seta indica a direcção do dispositivo, de frente para o inimigo.

IMG_8679Nesta segunda foto, a partir do mesmo local da anterior, indica-se com a seta a vermelho o eixo de aproximação a Vila Viçosa inicialmente pretendido pelo Marquês de Marialva e pelo Conde de Schomberg, comandantes do exército português. Contudo, o surgimento do exército inimigo (cuja progressão está indicada a amarelo), que até então marchara a coberto da serra da Vigária, obrigou à alteração do plano inicial e à rápida disposição do exército em batalha.

IMG_8675

 

Fotos do autor.

Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (8ª e última parte)

(Q)Foto Q (acima) – Local onde se formaram as linhas da cavalaria portuguesa, na ala direita do dispositivo português. O caminho que se vê na fotografia passa pelo local onde provavelmente estariam formados os batalhões da terceira linha. Ao fundo é reconhecível a zona onde o batalhão do extremo da primeira linha ficou formado:

No lado direito em o fim da várzea, onde a serra de Ossa tem princípio por aquela parte, se assinalou posto ao primeiro batalhão de cavalaria, e era o terreno que corria para a mão direita tão embaraçado de sanjas e valados, que ficava a cavalaria segura de ser atacada por aquele flanco; porém, alterada a forma, ocupou inutilmente este terreno. Deste sítio para o lado esquerdo continuava a campanha rasa (…). (Ericeira, 1946, IV, pg. 294)

(R)Foto Q (acima) – Na retaguarda das linhas de infantaria do exército português, sensivelmente na zona onde ficou posicionada a reserva. O terreno em frente e para a direita desta foto foi muito disputado e terá sido aqui que se jogou a fase decisiva da batalha, quando a sorte das armas podia ainda pender para qualquer dos lados e o exército espanhol parecia em condições de derrotar o português.

(…) [Os espanhóis] investiram valorosamente o corpo da infantaria e cavalaria [portuguesa] que lhes ficava oposta e, rompendo-o, chegaram até à vanguarda da segunda linha da infantaria e da terceira da cavalaria. Acudiu Dinis de Melo com grande prontidão e valor ao remédio deste dano, reforçando a peleja com novos batalhões, sem perder terreno nem mudar forma. A mesma constância tiveram os terços de Tristão da Cunha, Francisco da Silva e João Furtado; porém, ainda que repetiram incessantes cargas [tiros], entraram mais de mil cavalos pelo claro dos terços de Tristão da Cunha e Francisco da Silva, onde estava o general da artilharia [D. Luís de Meneses] e o Conde de São João e, atropelando algumas mangas da guarnição do lado direito do terço de Francisco da Silva, deixaram ferido ao mestre de campo e mortos trinta oficiais e soldados. (…)

O Conde de Schomberg, vendo que nesta parte era mais vigoroso o conflito, acudiu a ela com tão perigosa resolução, (…) que lhe foi preciso romper pelos batalhões inimigos para chegar ao posto onde estava o Marquês de Marialva, (…) socorrido dos seus três valorosos filhos com seus batalhões, do Conde de Rosan com a sua companhia e do Conde de Maré com o seu regimento (…). Os inimigos, perplexos na resolução que deviam tomar, intentaram romper os batalhões a que assistia Pedro César [de Meneses], Francisco de Távora e Bernardino de Távora; porém, achando-os constantes e impenetráveis, voltaram, perdida a resolução e mortos muitos oficiais e soldados, pela mesma parte por onde haviam investido, entendendo que poderiam romper pela retaguarda os três terços que primeiro encontrararm. Porém, desvaneceu-lhes esta suposição o Conde de São João e o general da artilharia, por haverem dado ordem às três últimas fileiras que voltassem as caras à retaguarda, calada a picaria e prevenidas as bocas de fogo, o que prontamente executaram, animados dos mestres de campos e oficiais, com tão feliz efeito que obrigaram aos inimigos a voltarem com furiosa torrente pelo mesmo claro por onde haviam investido (…). (Ericeira, 1946, IV, pgs. 300-302)

Termina aqui esta série de artigos sobre o campo de batalha de Montes Claros, tal como se encontra na actualidade. Procurou-se assim dissipar as dúvidas acerca do verdadeiro local onde a peleja teve lugar, tarefa sempre difícil, mas que uma análise cuidadosa das fontes permite estabelecer com alguma segurança.

Todas as fotos devem ser referenciadas pelas letras, usando o mapa apresentado na primeira parte desta série de artigos.

Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (7ª parte)

(O)Foto O (acima) – Na retaguarda do dispositivo português erguia-se uma outra elevação, muito semelhante à que foi ocupada, mais adiante, pelos terços e pela artilharia do exército do Marquês de Marialva e do Conde de Schomberg. Foi daqui que os dois generais, ainda com o exército português em marcha, descortinaram a chegada das primeiras tropas do Marquês de Caracena ao local onde se travaria a batalha.

Chegado o Conde de Schomberg à eminência que ocupava o Conde de São João e o general da artilharia, observaram que os batalhões da cavalaria inimiga sucessivamente vinham saindo à campanha, havendo estado cobertos com a serra da Vigaira, e se formavam com tanta pressa, que manifestamente descobriam a deliberação de pelejar, sendo o Conde de Schomberg o primeiro que teve por infalível este discurso. (Ericeira, 1946, IV, pg. 293)

PFoto P (acima) – A planície onde chocaram as cavalarias dos dois exércitos, sobre a ala direita do exército português, olhando na direcção do dispositivo espanhol.

Todas as fotos devem ser referenciadas pelas letras, usando o mapa apresentado na primeira parte desta série de artigos.

Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (6ª parte)

(L)Foto L (acima) – Ala esquerda do dispositivo espanhol. olhando para o flanco esquerdo. Estas posições eram ocupadas pela cavalaria. Realce-se a natureza plana do terreno, propício à manobra da cavalaria.

(M)Foto M (acima) – Zona de progressão da infantaria espanhola, olhando na direcção das linhas portuguesas. Terá sido nas imediações deste local que chocaram dois regimentos, um suíço e outro inglês, num combate renhido a golpe de pique, mas no qual também chegaram a ser arremessadas as pedras caídas dos muros que por ali havia. O regimento suíço, comandado pelo coronel Clofs, estava ao serviço da coroa espanhola. O inglês, sob o comando efectivo do tenente-coronel William Sheldon, era o regimento nominalmente comandado pelo próprio Conde de Schomberg. O tenente-coronel Sheldon perdeu a vida neste combate, tendo o seu regimento sofrido entre 40 e 50 mortos e cerca de 100 feridos. Entre os mortos contavam-se os capitães Jones, Heatfield e Rust e o tenente Boone, e entre os feridos os capitães Stansby, Roch, Turner e Langley, os tenentes Newsome, Sandys e Sherwood e os alferes (ensign, em inglês) Turner, Porridge e Emerson e também o cirurgião John Leadger. Conseguiram capturar 4 bandeiras ao inimigo (Relacion Verdadera…, pgs. 37-38, com cruzamento de referências para os nomes em Childs, John, The Army of Charles II, London, Routledge & Kegan Paul, 1976, appendix B, pgs. 238-239; contudo, Childs não fornece uma relação completa dos oficiais que serviram nos regimentos ingleses de 1662-68, faltando vários nomes que surgem em documentos portugueses).

V(N) reduzFoto N (acima) – vista a partir da primeira linha do dispositivo português, sobre a ala direita, onde estava disposta a maior parte da cavalaria e também dois terços de infantaria. É quase certo que os muros que se vêem sobre a direita sejam os que serviram de abrigo a duas peças de artilharia ligeira e a um destacamento de 100 mosqueteiros, adiantados para essa posição por ordem do general da artilharia D. Luís de Meneses antes do início da batalha. O destacamento era comandado pelo tenente-general da artilharia Marco Raposo Figueira e foi desalojado das posições pelos ferozes ataques do inimigo, depois de oferecer muita resistência. Os canhões assim perdidos viriam a ser recapturados pelos portugueses mais tarde, num contra-ataque comandado pelo sargento-mor de batalha Diogo Gomes de Figueiredo (Relacion Verdadera…, pg. 35).

Todas as fotos devem ser referenciadas pelas letras, usando o mapa apresentado na primeira parte desta série de artigos.

Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (5ª parte)

(I) Detail of the close terrainFoto I1 (acima) – Detalhe do terreno irregular em frente da primeira linha da infantaria portuguesa. Coube aos auxiliares talarem obstáculos como este, que obstruíam o campo de visão e de tiro, tarefa que custou a vida a muitos.

(I)Foto I2 (acima) – Do mesmo local, mas olhando para a direita do dispositivo português (esquerda do espanhol). É notório o suave declive do terreno, afundando na direcção onde se bateu a cavalaria dos dois exércitos e também parte da infantaria portuguesa.

(J)Foto J (acima) – Zona do terreno em frente à primeira linha do dispositivo português, olhando na direcção do mesmo, sensivelmente na zona de charneira entre os últimos terços da primeira linha portuguesa e os primeiros batalhões da cavalaria (havia ainda dois terços mais para o lado esquerdo da foto, interpolados entre os batalhões de cavalos). Esta terá sido a perspectiva que tiveram os cavaleiros da vanguarda do exército de Caracena, quando carregaram a cavalaria portuguesa e também os terços de Tristão da Cunha e de Francisco da Silva de Moura. Local onde a sorte da batalha esteve indecisa, após a cavalaria do exército espanhol ter rompido as primeiras linhas da congénere portuguesa e isolado momentaneamente os terços atrás referidos.

Segundo a Relacion Verdadera, no início da refrega o mestre de campo Francisco da Silva de Moura adiantou-se com o seu terço, aparentemente por querer demonstrar o seu valor, destacando-se da linha inicial do dispositivo (atitudes destas, em que a impetuosidade de um comandante punha em cheque a coesão do conjunto das forças, aconteciam com alguma frequência na época). E por isso foram rompidos os seus mosqueteiros; todavia, com admiração de todos se reformou duas vezes entre o furor do conflito, e a firmeza das picas [ou seja, dos piques] a nenhum dos que entraram deixou sair. (traduzido do castelhano original, pgs. 28-29)

(K)Foto K (acima) – Um pouco mais distante do local da foto anterior, mais próximo da zona de progressão da cavalaria e da infantaria espanhola, olhando para a ala esquerda do mesmo exército. Pequenos muros de pedra como o que se vê na imagem são referidos nas narrativas da batalha.

Todas as fotos devem ser referenciadas pelas letras, usando o mapa apresentado na primeira parte desta série de artigos.

Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (4ª parte)

V(F)Foto F (acima) – Vista a partir das posições da infantaria portuguesa, sensivelmente do local da segunda linha do dispositivo e já um pouco sobre a ala esquerda, olhando na direcção do centro e para o terreno ocupado pelo exército do Marquês de Caracena (ao longe). Apesar de existirem algumas pequenas diferenças de pormenor entre a Relacion verdadera e a História de Portugal Restaurado, sendo a primeira fonte narrativa mais precisa em detalhes, poderemos socorrer-nos do Conde de Ericeira para corroborar o local identificado na foto:

As três linhas de cavalaria e a segunda linha da infantaria foram ocupando, em terreno igual ao referido, os claros dos batalhões e terços da vanguarda. O primeiro terço do lado direito era o de Tristão da Cunha; seguia-se para o esquerdo Francisco da Silva e João Furtado, formados na campanha rasa. O mestre de campo Pedro César e os mais, que se continuavam conforme a ordem referida, ocupavam a colina, tornando a baixá-la até topar com as vinhas que ficavam ao lado esquerdo (…). (Ericeira, 1946, IV, pgs. 294-295)

V(G) Towards Portuguese infantry positionsFoto G (acima) – Se exceptuarmos os elementos que a acção humana introduziu de há cerca de 350 anos para cá, esta era a perspectiva que a infantaria do exército espanhol, dos terços comandados pelos mestres de campo Mojica, Cordoba e Carpio, colocados na ala direita do dispositivo de batalha de Caracena, teria das posições do exército português imediatamente em frente. A elevação ao fundo, à esquerda, é a que se apresenta na foto F. As vinhas do lado esquerdo do dispositivo português ficam aqui, logicamente, à direita, pois o terreno ainda hoje é usado para a viticultura.

Continuando com a descrição do Conde de Ericeira: (…) e no alto desta eminência plantou o general da artilharia [D. Luís de Meneses] quatro peças ligeiras, que, começando a jogar logo que apareceram os primeiros batalhões castelhanos, ainda que a distância era larga, por ordem do general da artilharia se conseguiram ao mesmo tempo dois grandes efeitos: o primeiro, que ouvindo-se em todo o exército o estrondo desta militar tormenta, todos se aplicaram a buscar os postos que antecipadamente se lhes haviam sinalado, sem dependerem das ordens dos oficiais maiores (…); o segundo, servir de alento aos soldados, que não podiam examinar as distâncias, entenderem que os castelhanos começavam a receber o dano da artilharia (…). (Ericeira, 1946, IV, pg. 295)

(H)Foto H (acima) – Pormenor da “terra de ninguém”, um pouco mais para a esquerda do local da foto G, olhando na direcção do dispositivo português. Esta parte da paisagem foi modificada pela acção humana em anos recentes, todavia a zona de terreno era originalmente bastante irregular nesta zona, como se verá na próxima entrada.

Todas as fotos devem ser referenciadas pelas letras, usando o mapa apresentado na primeira parte desta série de artigos.

Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (3ª parte)

Quando se procede à interpretação de uma batalha, para além da aferição e da comparação da plausibilidade das narrativas gerais ou parcelares sobre o evento, há que ter em consideração que as concepções tácticas e os alcances efectivos e práticos das armas do período estudado (estou a referir-me especificamente ao século XVII, mas é igualmente válido para outras eras) eram muito diferentes das actuais. A apreciação do terreno de batalha, se ele não estiver muito modificado em relação ao que serviu de palco à acção estudada, deve ter em conta esse princípio básico. Recordo que no tempo da batalha de Montes Claros, o alcance prático de um mosquete era inferior a 100 metros, o de um arcabuz ainda menos, o de uma pistola menos de 10 metros (contra couraças havia que disparar à queima-roupa para garantir maior probabilidade de penetração). E que na maior parte dos casos os combates se resolviam à arma branca. Portanto, a distância que separava as primeiras linhas de duas forças dispostas em batalha no início de uma refrega era relativamente reduzida (entre 300 a 400 metros, ou até menos), pois permitia a evolução das tropas a uma distância ainda segura, no caso da infantaria, e os preparativos para o lançamento ou recepção da carga (e do escaramuçar prévio com carabinas) por parte da cavalaria. A extensão de cada uma das linhas dependia do número das unidades e dos efectivos que as constituíam. Convém lembrar que os terços, no terreno, se formavam em esquadrões de 10 filas de profundidade, contando nestas as de mosqueteiros (normalmente as duas ou três primeiras fileiras de cada esquadrão, o qual continha nas alas mais 4 a 5 filas de arcabuzeiros – sobre o significado específico desta terminologia, consulte-se este artigo). E que, na verdade, cada esquadrão podia conter elementos de mais do que um terço, ou destacar mangas de atiradores para outros esquadrões, ou para serem interpolados com a cavalaria, ou para defenderem um ponto específico do terreno, actuando assim como pequenas unidades independentes.

O cálculo da extensão de cada uma das linhas deve levar em conta que os efectivos dos terços variavam muito, mas que cada esquadrão teria em média, no caso concreto da batalha de Montes Claros, entre 500 e 600 homens. Sem esquecer os claros, ou seja, os intervalos entre os esquadrões de infantaria ou os batalhões de cavalaria formados no terreno. Seguindo à risca o que estava determinado nos tratados militares, os claros deviam ter espaço suficiente para permitir a manobra de um esquadrão ou batalhão, o seu avanço ou recuo sem se embaraçar com as unidades amigas que estavam na sua frente ou retaguarda. Mas nem sempre assim acontecia, ou porque a natureza do terreno não o permitia, ou por motivos de coesão das próprias linhas. Foi precisamente o que aconteceu com os batalhões da cavalaria do exército espanhol em Montes Claros, que na sua carga sobre a ala direita portuguesa vieram reforçados, mas com prejuízo do intervalo entre as unidades. Após o sucesso inicial, em que desbarataram as primeiras linhas da cavalaria do exército português, não conseguiram reorganizar-se e foram derrotados pelo contra-ataque levado a cabo pelos portugueses.

Continuemos o nosso passeio pelo campo de batalha, passando às fotografias.

Foto C – A partir da ala direita do dispositivo espanhol (posição ocupada pelos terços de infantaria), olhando para o flanco esquerdo (no terreno mais ao fundo progrediria a cavalaria). À distância, a serra da Ossa. Note-se a natureza relativamente plana do terreno, mas com alguns espaços mais fechados, com pedras, árvores de pequeno porte e matagal, não muito diferente do que é descrito nas fontes narrativas. Foi por causa deste tipo de terreno que o Conde de Schomberg mandou formar um destacamento na vanguarda do exército, comandado pelo mestre de campo António de Saldanha, dos auxiliares da comarca de Tomar, com quinhentos infantes de todos os terços de auxiliares, que levavam ferramentas para abaterem os valados e facilitarem os passos dificultosos. (Ericeira, 1946, IV, pg. 290)

V(C) Spanish initial positionsFoto D – Vista sobre as posições espanholas, a partir do terreno em frente da primeira linha da cavalaria portuguesa, na ala direita do dispositivo (que contava com dois terços de infantaria de reforço nessa primeira linha, os dos mestres de campo José de Sousa Cid e Matias da Cunha, interpolados com seis batalhões de cavalaria). Foi através deste terreno que a cavalaria do exército espanhol progrediu para carregar congénere a portuguesa e os terços atrás mencionados, obtendo algum sucesso inicial.

(D)Foto E – Vista a partir das linhas intermédias e retaguarda do dispositivo espanhol, olhando para o flanco esquerdo, ocupado pela cavalaria. O pequeno lago que se pode ver na foto não existia em 1665.

V(E)

Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (2ª parte)

As fontes narrativas de que dispomos para o estudo da batalha de Montes Claros são as seguintes:

– D’ABLANCOURT, Frémont (1701), Mémoires De Monsieur D’Ablancourt Envoyé de la Magesté Trés-Chrétienne Louis XIV, en Portugal; Contenant L’Histoire de Portugal, Depuis le Traité des Pyrenées de 1659, jusqu’à 1668, Amsterdam, J. Louis De Lorme.

– ERICEIRA, Conde de (1946), História de Portugal Restaurado, edição anotada e prefaciada por António Álvaro da Silva Dória, Porto, Livraria Civilização, vol. IV.

Relacion verdadera, y pontval, de la gloriosissima victoria que en la famosa batalla de Montes Claros alcançò el Exercito delRey de Portugal, de qve es Capitan General Don Antonio Luis de Meneses Marquez de Marialua, Conde de Cantañede, contra el Exercito delRey de Castilla, de qve era Capitan General el Marquez de Caracena, El dia diez y siete de Iunio de 1665. Con la admirable defensa de la plaça de Villa Viciosa, Lisboa, Officina de Henrique Valente de Oliuera, 1665.

A estas, que definiria como principais, poderia juntar ainda duas outras:

– “A Relation of the last summers Campagne in the Kingdome of Portugall, 1665”, anonymous (by an officer of an English Regiment of Horse), 23 June 1665, The National Archives, London, State Papers Portugal, SP 89/7

– DUMOURIEZ, Charles François (1807), Campagnes du Maréchal de Schomberg en Portugal, depuis l’année 1662 jusqu’en 1668, Londres, De l’Imprimerie de Cox, Fils, et Baylis.

Estas são muito diferentes entre si. A obra de Dumouriez (que não é memorialista nem historiador, mas aventureiro e militar de carreira – um dos generais vencedores da batalha de Valmy em 1792, caído em desgraça perante a Convenção e que passou a servir os ingleses) navega muito à vista de D’Ablancourt e do Conde de Ericeira, não podendo por isso ser considerada fonte primária. Já a relação anónima de um oficial inglês de cavalaria é um manuscrito que traduzi para português num artigo publicado em 2009 (Lusíada, série II, nº 5/6, pgs. 341-355). Devido ao relato muito marcado pelo “nevoeiro de guerra” e ao discurso fortemente laudatório da participação inglesa na batalha, não é uma fonte que possibilite uma percepção geral dos acontecimentos, embora seja muito interessante como memória particular.

Voltando às fotografias publicadas no anterior artigo, comecemos pela primeira, em que se traçou a rota do exército português até ao campo onde se travou a batalha, e se indicou a rota que o mesmo deveria seguir até Vila Viçosa, não fora a chegada do exército espanhol. O Conde de Ericeira refere o seguinte:

(…) se assentou que o exército se pusesse em marcha  quarta-feira dezassete de Junho, com ordem que se tomasse o primeiro alojamento no sítio de Montes Claros, uma légua distante de Estremoz, outra de Vila Viçosa, considerando-se que nele se apartavam dois caminhos que iam demandar: o da mão direita, à serra de Lavra de Noite; o da mão esquerda, o outeiro da Mina, porque, com esta resolução, obrigávamos aos castelhanos, confusos na perplexidade do nosso intento, a dividirem o exército em defesa dos dois fortes que haviam fabricado. E para que a nossa marcha ficasse menos perigosa, na mesma noite de quarta-feira havia de ocupar um troço do exército a serra da Vigaira, que ficava eminente ao outeiro da Mina, e conseguido este intento, ganhar-se na mesma noite a serra de Barradas, distante da Vigaira um tiro de pistola, porque, ocupados estes dois postos, não parecia dificultoso socorrer a praça (…).

O dia antecedente havia dado ordem o Conde de Schomberg ao comissário geral Bartolomeu de Barros [Caminha], que aquela noite saísse com seis batalhões [unidades tácticas de cavalaria] e ocupasse a serra da Vigaira e outras quaisquer eminências mais vizinhas ao exército que lhe fosse possível, e prontamente fosse mandando avisos de todos os movimentos que observasse; porém, a ordem se distribuiu tão confusamente, que Bartolomeu de Barros não saiu de Estremoz senão ao amanhecer do mesmo dia da batalha (…)

Neste tempo marchava, avançado do exército, o comissário geral Bartolomeu de Barros, levando os seis batalhões (…), pretendendo observar os movimentos dos castelhanos de algumas das eminências superiores àquela campanha, sem reparar que haviam ocupado o alto da serra da Vigaira as companhias da guarda do Marquês de Caracena. (Ericeira, 1946, IV, pgs. 288-291)

O comissário geral recebeu então ordem do Conde de S. João para que fizesse alto, e não se expusesse demasiado ao perigo. No entanto, a narrativa do Conde da Ericeira parece estar depurada, no que toca a este episódio, de uma eventual responsabilidade do general da cavalaria Dinis de Melo de Castro. Segundo D’Ablancourt, teria sido o general o responsável por enviar apenas 30 cavaleiros em reconhecimento à serra da Vigaira, tendo estes recuado quando viram a eminência ocupada pelo Marquês de Caracena. O Conde de Schomberg repreendeu Dinis de Melo pelo facto de não ter cumprido as ordens escritas, pois devia ter enviado os seis batalhões de cavalaria na noite anterior, o que não fez (D’Ablancourt, 1701, pg. 239).

Onde ambas as fontes coincidem é no facto de o terreno onde se desenrolou a batalha ser aquele que se estende pela planície irregular, com pequenas elevações, vinhedos e zonas de vegetação densa, em frente da serra da Vigaira.

Chegado o Conde de Schomberg à eminência que ocupava o Conde de S. João e o general da artilharia [D. Luís de Meneses], observaram que os batalhões da cavalaria inimiga sucessivamente vinham saindo à campanha, havendo estado cobertos com a serra da Vigaira. (Ericeira, 1946, IV, pg. 293)

Neste tempo vimos aparecer dez esquadrões castelhanos [D’Ablancourt utiliza o termo “esquadrão” para a unidade táctica da cavalaria, que ao tempo, entre portugueses e espanhóis, era designada por batalhão], que saíam por um vale que vinha por detrás da montanha de Montes Claros [a serra da Vigaira]; dez outros seguiam-se e em pouco tempo vimos duas linhas formadas que preenchiam toda a frente do vale, que iam aumentando do lado dos portugueses, cada linha tinha 22 esquadrões e estava distante da direita dos portugueses um tiro de canhão. (D’Ablancourt, 1701, pgs. 239-240; tradução minha)

Note-se que quando o exército espanhol iniciou o seu desdobramento, o exército português ainda estava formado em duas linhas, em marcha de costado, e com a vanguarda na direcção de Vila Viçosa, seguindo a rota que pretendia tomar para aquela localidade.

Para as fotos que a seguir são apresentadas, tome-se como referência a fotografia de satélite publicada no artigo anterior.

Foto A – Local onde se ergue o padrão comemorativo da batalha, um pouco à frente da primeira linha do exército espanhol, sobre o lado direito (onde estava disposta a infantaria).

V(A) Montes Claros MemorialFoto B1 – Vista a partir de um local adiantado ao flanco direito do dispositivo espanhol; tal como em 1665, toda a zona se encontra preenchida por vinhas.

V(B) Spanish rightFoto B2 – Do mesmo local, mas olhando para a serra da Vigaira, que em 1665 provavelmente não apresentaria vegetação tão densa como a que hoje a cobre.

V(B) Vigaira on the background

Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (1ª parte)

O objectivo desta pequena série de artigos é dar a conhecer o estado actual do campo onde se travou a batalha de Montes Claros. Recentemente considerado património nacional, graças ao empenho do Dr. Alexandre Patrício Gouveia e da Fundação Batalha de Aljubarrota, fica assegurada a sua preservação e abrem-se boas perspectivas para a construção de um núcleo museológico e interpretativo, a exemplo do que já existe em S. Jorge (batalha de Aljubarrota).

Todavia, muito está ainda por fazer quanto à interpretação da batalha. O estudo mais recente (Gabriel Espírito Santo, Montes Claros, 1665 – A Vitória Decisiva, Lisboa, Tribuna da História, 2005), conquanto tenha os seus méritos na maneira como procura integrar o acontecimento no contexto histórico-militar do período, falha precisamente no essencial: a identificação do terreno e a disposição das forças em confronto. Infelizmente, em alguma historiografia militar portuguesa tem existido a tendência para seguir à letra determinadas fontes narrativas sem as questionar, e descurando a pesquisa arquivística e o confronto com fontes históricas mais diversas. O resultado é a perpetuação de erros e mitos, que só um trabalho meticuloso de análise permite corrigir e desmontar.

Com este pequeno périplo pelo campo de batalha de Montes Claros, encetado no terreno há pouco mais de dois anos, tentarei justificar a minha interpretação acerca de onde e como se desenrolou a maior e mais importante batalha da Guerra da Restauração. Para estimular a curiosidade, deixo aqui, de momento, somente as primeiras fotografias, (retiradas do programa Google Earth). Os textos explicativos e a fundamentação do que aqui apresento irão sendo introduzidos a seu tempo.

Na primeira foto (Google Earth) assinalei a verde a marcha de aproximação do exército português comandado pelo Marquês de Marialva. A amarelo, a marcha que este general tencionava fazer com o mesmo exército rumo a Vila Viçosa, então cercada pelo exército espanhol sob o comando do Marquês de Caracena. Etapa que não chegou a efectuar-se, porque o Marquês de Caracena se antecipou na manobra e saiu ao encontro dos portugueses.

1 Route of approach of the Port Army (GoogleEarth)Na segunda foto, também de satélite, assinala-se:

– a amarelo, a marcha do exército espanhol comandado por Caracena, vindo de Vila Viçosa;

– a azul e a vermelho, as primeiras linhas do desdobramento inicial dos dispositivos português e espanhol, respectivamente (aqui apresentadas a título informativo, sem detalhe quanto às unidades ou à disposição da infantaria, cavalaria e artilharia, e omitindo as restantes linhas);

– o ponto vermelho assinala (aproximadamente, pois é impossível fazê-lo com exactidão) o local que o Marquês de Caracena escolheu para permanecer durante a batalha, na serra da Vigaira – à rectaguarda e sobre a direita do dispositivo espanhol; daí tinha uma excelente visão do campo de batalha, mas sem possibilidade de intervir prontamente e em pessoa na refrega, ao contrário do que sucederia com o Marquês de Marialva e o Conde de Schomberg;

– com letras, a referência dos locais por mim fotografados e que serão aqui publicados e identificados nas próximas entradas.

Montes Claros Google

1 de Dezembro de 1640

Embora ultimamente não tenha sido tão assíduo a actualizar o blogue, por motivo do muito trabalho que não me deixa muito tempo disponível, venho agradecer mais uma vez a todos quantos têm tido a simpatia de visitar este cantinho e colaborado com artigos e muita informação. A todos, renovando o que aqui ficou escrito há um ano, o meu Muito Obrigado.

Imagem: Batalha de Montes Claros, painel de azulejos da Sala das Batalhas do Palácio Fronteira, Lisboa.

Regimentos ingleses ao serviço da Coroa portuguesa (1662-1668)

casacas vermelhas

Na sequência do Tratado de Aliança celebrado entre Portugal e Inglaterra em Junho de 1661, ficou acordado que a Coroa inglesa enviaria para Portugal dois regimentos de cavalaria e dois regimentos de infantaria. Os primeiros teriam um efectivo de 500 homens cada e os segundos contariam, cada um, com 1.000 infantes. Uma força de 3.000 militares profissionais, assim se esperava.

Os efectivos totais enviados para Portugal ficaram abaixo do esperado. A cavalaria contou apenas com um regimento composto, inicialmente, por 8 companhias, num total de 400 homens. Uma força bastante heterogénea, com militares provenientes do antigo exército da Commonwealth de Oliver Cromwell e outros que se tinham batido no campo oposto – os Realistas – durante a Guerra Civil Inglesa, incluindo irlandeses. Aliás, o primeiro comandante do regimento foi um irlandês, o coronel Michael Dongan, que até 1661 tinha servido como mestre de campo no exército de Filipe IV. Já os dois regimentos de infantaria embarcaram para Portugal com um efectivo total de 2.200 homens, todos eles voluntários e antigos militares do exército de Cromwell. Após a restauração da monarquia em Inglaterra, Carlos II desmobilizou a maior parte das unidades criadas por Oliver Cromwell, mas algumas mantiveram-se ao serviço da monarquia. Era o caso de três regimentos que tinham a sua guarnição na Escócia, a partir dos quais se formaram os dois que viajaram para Portugal em 1662. A infantaria veio equipada com uniformes de cor vermelha (casaca, colete e calça), provavelmente com vivos nos canhões das mangas de cor diferente para cada regimento, como era usual na época. O vermelho tornara-se cor predominante (embora não a única utilizada) nos uniformes ingleses desde a criação do New Model Army em 1645. Em suma, o efectivo inicial do contingente inglês era de 2.600 militares (2.200 infantes e 400 cavaleiros).

A deserção e o atrito das campanhas fez oscilar grandemente os números ao longo dos anos da guerra, sempre com a tendência para a diminuição, pois as reposições das perdas foram escassas. Por exemplo, na batalha do Ameixial, em Junho de 1663, o contingente inglês compunha-se de 1.600 infantes, em dois regimentos, e 300 cavaleiros, num regimento a 6 companhias. Nos finais de 1666, o regimento de cavalaria mantinha cerca de 300 soldados nas fileiras (graças a um reforço de irlandeses), mas os dois regimentos de infantaria não conseguiam, em conjunto, alinhar mais do que 700 soldados. O contingente tinha então  pouco mais da terça parte do efectivo inicial.

Os ingleses bateram-se com brio e coragem em muitas ocasiões, sendo a sua experiência militar muitísismo importante para os sucessos alcançados na batalha do Ameixial (1663), tomada de Valência de Alcântara (1664) e batalha de Montes Claros (1665).

Para mais detalhes, consulte-se O Combatente durante a Guerra da Restauração… e A Cavalaria na Guerra da Restauração…, onde este tema é devidamente aprofundado, bem como as histórias pessoais de alguns oficiais. Aqui ficam os comandantes das unidades:

Comando do contingente: Murrough O’ Brien, Conde de Inchinquin (Julho-Novembro 1662); Christopher O’ Brien (Novembro 1662-Janeiro 1663); Conde de Schomberg (1663-1668).

1º Regimento de infantaria: Coronel James Apsley. A partir de 1665, o regimento passou para o comando pessoal do Conde de Schomberg, mas o comando efectivo foi delegado no tenente-coronel William Sheldon. Este oficial liderou o regimento na batalha de Montes Claros, em 1665, tendo morrido aí em combate.

2º Regimento de infantaria: Coronel Henry Pearson; o regimento foi comandado pelo tenente-coronel Thomas Hunt na batalha do Ameixial. Thomas Hunt morreu em 1664, no ataque a Valência de Alcântara, passando o regimento a ser comandado pelo major John Rumpsey. Foi este oficial que conduziu o regimento em 1665, na batalha de Montes Claros, pois Pearson continuava ausente em Inglaterra.

Regimento de cavalaria: Murrough O’ Brien, Conde de Inchinquin (Julho-Novembro 1662); Conde de Schomberg (comandante honorário. 1662-1668). O comando efectivo do regimento foi desempenhado pelo tenente coronel Michael Dongan, até à sua morte na batalha do Ameixial. Depois,  foi entregue ao major Lawrence Dempsey, e quando este morreu em 1664, coube ao Marquês de Schomberg, o filho mais velho do Conde, chefiar a unidade até ao final da guerra.

Bibliografia:

CHILDS, John – “The British Brigade in Portugal, 1661-1668”, in Journal of the Society for Army Historical Research, vol. LIII, 1975, pp. 135-147.

Id. – The Army of Charles II, London, Routledge & Kegan Paul, 1976. (O apêndice sobre o contingente inglês, no final do volume, contém erros a respeito das unidades em que os oficiais serviram)

HARDACRE, P. H. – “The English Contingent in Portugal, 1662-1668”, in Journal of the Society for Army Historical Research, vol. XXXVIII, 1960, pp. 112-125.

Imagem: Piqueiros ingleses do período da Guerra Civil. É pouco provável que em Portugal tenham usado peitos e espaldares – embora alguns oficiais os utilizassem: numa ocasião, foram as boas armas de corpo usadas por James Apsley que o salvaram de receber danos de armas de fogo. Também as casacas seriam de um modelo diferente, mais compridas, de acordo com a moda da década de 60. Foto de J. P. Freitas – Kelmarsh Hall, “History Day” 2007.

Artilharia (3) – Os tipos de munição e a sua eficácia

Os projécteis mais utilizados pelas peças de campanha, designados por pelouros ou balas, eram esféricos, sólidos e de ferro. O diâmetro do projéctil era sempre inferior ao diâmetro da boca da peça, para que aquele não ficasse entalado no cano. Como as peças eram de alma lisa, por muito experiente que fosse o oficial artilheiro encarregado de calcular a elevação necessária à peça e a distância relativamente ao alvo, o efeito do tiro estava sujeito a algumas das contingências aqui apontadas para as armas de fogo pessoais. No entanto, ao contrário das balas de mosquete ou arcabuz, os pesados projécteis de artilharia podiam manter um efeito devastador, mesmo perdendo a velocidade inicial, e a imprevisibilidade da sua trajectória era agravada pelo facto de ricochetearem no solo e continuarem a ser letais. Filas ou fileiras inteiras podiam ser vítimas de uma única pelourada. O efeito sobre os indivíduos atingidos é por vezes descrito nas narrativas coevas:

O inimigo continuava com a artilharia, de que os nossos recebiam dano; uma bala arrancou dos ombros a cabeça a António Machado da França, capitão de cavalos. [Episódio ocorrido durante o cerco de Badajoz em 1644] (Aires Varela, Sucessos que houve nas fronteiras (…), o terceiro anno da Recuperação de Portugal, que começou em o 1º de Dezembro de 1643, Elvas, Typografia Progresso de António José Torres de Carvalho, 1900, pg. 109)

Mateus Rodrigues descreve um acontecimento semelhante, mas situa-o na campanha do forte de Telena em 1645. Contudo, pode tratar-se do mesmo evento descrito por Aires Varela, pois confusões deste tipo surgem com alguma frequência nas memórias escritas – mais de dez anos depois dos acontecimentos – pelo ex-soldado:

E vinha ali um capitão de cavalos na sua companhia, por nome Manuel da Gama, um bizarro soldado e mui cavalheiro e grande músico e mui bem entendido, que tinha seus dedos de poeta, (…) mui querido de todos os fidalgos, (…) vem uma peça do inimigo a dar-lhe só nele e tira-lhe a cabeça fora dos ombros, ficando o corpo a cavalo por espaço de um bom credo, sem cair no chão [e] sem a bala ofender mais a ninguém (…). (Manuscrito de Matheus Roiz, pg. 118 )

Havia outros tipos de munição, como as balas de cadeia ou grilhão, utilizadas frequentemente pela marinha de guerra para derrubar o cordame, rasgar o velame ou desmastrar os navios inimigos. Em terra firme era temível na ceifa de cavaleiros ou infantes em densa formação de batalha. Algumas variantes são mostradas na gravura acima. A forma mais básica consistia em duas balas ligadas por uma corrente. O disparo exigia mais pólvora e o alcance efectivo era muito inferior ao do tiro com munição normal, pelo que era reservado para o tiro contra formações inimigas a curta distância, sendo o alvo preferencial a cavalaria. Este tipo de munição também sujeitava o cano a um desgaste mais intenso. No entanto, foi expressamente requisitado por D. João da Costa em 1646, para o exército do Alentejo (Balas de cadeia, ou grilhão, 200 balas – carta anexa a um decreto de 11 de Agosto de 1646).

Para distâncias mais curtas utilizava-se a carga oca repleta de balas de mosquete: os sacos de bala miúda. Bastante eficaz contra cavalaria, conforme relata Mateus Rodrigues, ainda a propóito da campanha de Telena em 1645:

(…) Logo o inimigo veio com toda a cavalaria carregando-nos com grã força e trazendo duas peças entre a mesma cavalaria, com seis mulas cada peça, que corriam com elas como a mesma cavalaria, e assim como chegavam a tiro davam carga com elas que faziam muito dano, porque ia a nossa gente toda numa pinha e não podia deixar de matar muita gente, porque fazia o tiro de perto. (Manuscrito de Matheus Roiz, pg. 113)

Vinte anos mais tarde, na batalha de Montes Claros, fica registado o uso dos projécteis de carga oca pela artilharia portuguesa:

(…) E o Conde de S. João e o general da artilharia (…) deram ordem que as peças de artilharia, que estavam carregadas de sacos de balas miúdas, não dessem a primeira carga, senão ao tempo que os inimigos estivessem na distância de cinquenta passos (…); e foi tão notável o dano que padeceram, que os batalhões do corno direito, obrigados do receio, voltaram os meios corpos dos cavalos com aparência de quererem fugir (…). (Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, Porto, Livraria Civilização, 1945-46, vol. IV, pg. 300)

Os trabucos e morteiros disparavam projécteis sólidos de ferro, ou esféricos e ocos, neste caso com uma carga de pólvora que era detonada por um fuso (na versão mais simples, um morrão que se incendiava com o disparo propulsor). Conforme o fuso, assim o projéctil poderia explodir pouco depois do impacto no alvo ou mesmo no ar. No entanto, os efeitos sobre as tropas não eram tão devastadores como as munições explosivas empregues a partir do século XIX. Os alvos principais deste tipo de artilharia de cerco eram edifícios e fortificações.

Imagem: Vários tipos de munição de artilharia, nomeadamente variantes de balas de cadeia (ao centro, o modelo mais usual) e palanquetas (balas ligadas por uma haste de ferro). Gravura apresentada em JÖRGENSEN, Christer, e outros, Fighting Techniques of the Early Modern World, AD 1500-AD 1763, Equipment, Combat Skills and Tactics, London, Amber Books, 2005.

Artilharia (2) – as categorias das peças de campanha

As referências à artilharia eram geralmente feitas de acordo com o peso do projéctil disparado. Apesar da variedade de calibres e designações, é possível traçar um esboço da valoração e do agrupamento das peças de bronze em “categorias” baseando-nos no testemunho competente de D. Luís de Meneses, Conde de Ericeira, que foi general da artilharia do exército do Alentejo. Assim, na sua História de Portugal Restaurado (edição da Livraria Civilização, Porto, 1945-46, vol. IV, pg. 291) descreve a composição do trem de artilharia presente na batalha de Montes Claros, em 1665, agrupando as 20 peças do seguinte modo:

Quinze peças de 7, 6 e 4 libras.

Três peças de 12 libras.

Duas peças de 24 libras.

Como se vê, nenhuma se enquadra em absoluto nos exemplos mostrados no quadro que foi aqui apresentado, mas podemos arriscar que as de 7 e 6 libras seriam sacres ou meias colubrinas e as de 12 libras provavelmente colubrinas. As de 24 libras eram certamente os meios canhões que surgem também destacados noutras passagens da obra do Conde de Ericeira, como por exemplo a respeito da artilharia do exército de D. Juan de Áustria na campanha do Alentejo em 1663:

Constava (…) [de] dezoito peças de artilharia, em que entravam seis meios canhões, três morteiros, quantidade de munições e mantimentos (…). (Obra citada, vol. IV, pg. 103)

Destaque que prossegue mais adiante, ao referir-se às unidades e material militar ao dispor do Conde de Sartirana para a defesa de Évora, que os espanhóis haviam tomado:

(…) Treze peças de artilharia, em que entravam seis meios canhões (…). (ob. cit., vol. IV, pg. 124)

Os meios canhões eram as peças mais pesadas da artilharia de campanha em serviço nos exércitos português e espanhol na década final do conflito. Se quase toda a artilharia era de lenta deslocação, o peso destas peças maiores atrasava ainda mais a progressão do exército, exigindo cada peça muitos animais de tiro.

No entanto, foi também na última década do conflito que mais se empregaram peças de menor calibre, que apoiavam em proximidade a cavalaria e a infantaria com o seu tiro, sendo intercaladas entre os esquadrões e os batalhões. Não se tratava propriamente de uma novidade – há referências a peças ligeiras hipomóveis que acompanhavam a cavalaria em campanha no Alentejo, já nos anos 40, bem como à experimentação de canhões de couro, semelhantes aos usados pelo exército sueco de Gustavo Adolfo – mas o seu emprego táctico era agora mais frequente e eficaz.

Sobre os tipos de munição e a sua eficácia será aqui colocado em breve um artigo.

Imagem: Artilharia em acção. Trata-se de uma peça de pequeno calibre (3 ou 4 libras), usada no apoio próximo das formações de infantaria. Reconstituição histórica, Kelmarsh Hall, 2007. Foto do autor.

Representações de batalhas – Montes Claros, 1665

As gravuras de época constituem muitas vezes boas fontes documentais. No entanto, as que pretendem mostrar o desenrolar de uma batalha no seu conjunto foram frequentemente objecto de demasiada “liberdade artística”, quer na composição formal da cena, quer nos pormenores que representam. Um bom exemplo dessa distorção é esta gravura italiana que pretende representar a batalha de Montes Claros (ou de Vila Viçosa, como também ficou conhecida), em 17 de Junho de 1665. Nela se encontram características comuns neste tipo de documento iconográfico: pouco realismo ou fantasia total na representação dos pormenores geográficos do campo de batalha, estilização da representação das unidades, aglomeração das formações militares, conferindo um aspecto bastante congestionado ao campo de batalha.

Imagem: Batalha de Vila Viçosa. Gravura italiana, c. 1665. Biblioteca Nacional, Iconografia, E1053V

O uso de “uniformes” na cavalaria

Com toda a propriedade, devemos colocar entre aspas a palavra uniformes quando nos referimos à indumentária da cavalaria durante a Guerra da Restauração. Se, entre a infantaria, o uso de uniformes no sentido moderno da palavra começava a dar os primeiros passos, mais por iniciativa pessoal dos comandantes dos terços do que por institucionalização, já entre a cavalaria seria difícil levar a cabo a distinção de unidade para unidade com base no equipamento usado. Em primeiro lugar, porque o equipamento defensivo da cavalaria era muito semelhante em qualquer exército do ocidente europeu do período – coletes ou casacas de couro e couraças de aço. Em segundo lugar, porque a companhia continuava a ser a unidade administrativa básica nos exércitos português e espanhol e as preocupações imediatas que sobrecarregavam os capitães em termos financeiros tinham que ver com a manutenção das montadas e do material de guerra imprescindível aos combatentes. A aparência distinta da sua unidade em relação às demais era um luxo impensável para a esmagadora maioria dos comandantes de companhia.

Além disso, é questionável que o conceito actual de uniforme estivesse formado na época. O uso de casacas de cores idênticas no seio de uma unidade, distinguindo-a das outras do mesmo exército, se não constituía novidade (veja-se como exemplo o exército sueco de Gustavo Adolfo), era pouco frequente, e quase sempre encontrado na infantaria. É provável que a preocupação de um comandante como Roque da Costa Barreto em dotar a sua unidade com casacas de cores específicas relevasse mais da ideia de libré (cor tradicional usada pela criadagem de uma casa nobre), do que aquilo que a partir dos finais do século XVII seria tido como norma militar. Mesmo nos casos em que uma determinada cor predominava num exército, ao ponto de se tornar um símbolo de identificação do mesmo (o vermelho das casacas inglesas, introduzido a partir do New Model Army de Cromwell em 1645), os motivos originais da escolha eram económicos e de facilidade logística – por exemplo, o corante que produzia a tonalidade escura de vermelho era relativamente comum e barato, sendo adequado ao tingimento de uma quantidade considerável de tecido.

Apesar de tudo o que acima ficou escrito, é possível encontrar na cavalaria alguns exemplos de unidades que se notabilizaram, em dada altura, pelo uso de equipamento distinto das demais. A sua excepcionalidade é revelada pelos documentos que os referem. Nenhuma delas era composta por portugueses. Assim, a companhia da guarda do Conde de Schomberg, durante a campanha do Alentejo em 1663, usava casacas azuis sobre as armas de corpo (ou seja, sobre a couraça de peito e espaldar). Note-se que não era invulgar o uso de casacas de tecido sobre as armas de corpo. Dois anos mais tarde, na batalha de Montes Claros, a mesma guarda usava capas vermelhas com cruzes brancas. Menos certo é que a cavalaria inglesa usasse casacas vermelhas, como a sua infantaria, mas a hipótese não é de pôr de parte. Outra unidade distinta era a cavalaria da guarda de D. Juan de Áustria, que na batalha do Ameixial, em 1663, usava casacas amarelas. E um documento inglês relativo à batalha de Montes Claros refere o regimento de cavalaria do alemão Conde de Rabat (que pertencia ao exército espanhol comandado pelo Marquês de Caracena) uniformemente equipado com casacas de cor castanho-claro, embora a passagem possa significar que todos usavam apenas casacas de couro. São, todavia, momentos excepcionais em que unidades de cavalaria são referenciadas pela sua aparência peculiar.

Bibliografia:

A Anti-Catastrophe, Historia d’ElRei D. Affonso 6º de Portugal, publicada por Camilo Aureliano da Silva e Sousa, Porto, Tipographia da Rua Formosa, 1845.

“A Relation of the last summers Campagne in the Kingdome of Portugall, 1665”, anonymous (by an officer of an English Regiment of Horse), 23 June 1665, The National Archives, SP89/7, fl. 49.

Imagem: Pormenor de um quadro de Jacques Callot (da colecção do Museu de Versailles), onde dragões do exército francês (reinado de Luís XIII) ostentam capas vermelhas com cruzes brancas. Uma inspiração para a cavalaria do Conde de Schomberg que se bateu em Montes Claros? Todavia, a moda e o trajo eram já diferentes por altura da batalha de 1665, nas proximidades de Vila Viçosa.

Bandeiras, estandartes, guiões – exército português (1)

É escasso o que nos resta de documentação sólida sobre este assunto. Em 1755, o arquivo da Tenência (Arsenal do Exército) foi destruído pelo Terramoto, e nos anos 30 do século XIX, um incêndio consumiu o arquivo da Junta dos Três Estados, privando-nos assim de informações preciosas sobre as bandeiras, estandartes e guiões utilizados durante a Guerra da Restauração pelo exército português. O que existe, tanto em fontes escritas como iconográficas, é muito fragmentado. Tanto quanto conheço, resta apenas uma relíquia do período, provavelmente um guião de capitão-general do exército – e nesse caso seria o do Marquês de Marialva, ostentado na batalha de Montes Claros em 1665. Foi oferecido à Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Vila Viçosa, e aí se mantém em exposição.

Apesar das ambivalências dos termos, podemos tentar discernir, através da frequência com que são empregues, algumas diferenças no uso: o guião, apesar de Diogo do Couto (séc. XVI) se lhe referir como “pequena bandeira”, designava no século XVII uma bandeira principal, destinada a guiar o exército, ou a assinalar a presença de um general. Apresentava forma rectangular. A bandeira era de uso regulamentar em cada companhia de infantaria, fosse do exército pago (profissional) ou da milícia de auxiliares ou de ordenança. Tinha forma quadrada. Do mesmo formato, mas mais pequeno, era o estandarte das companhias de cavalaria. Por norma, só as companhias de couraceiros (cavalos couraças) deviam ter direito a estandarte (e portanto, incluírem um alferes na sua composição) mas, na prática, era vulgar as companhias de cavalos arcabuzeiros também os terem. Curiosamente, D. Luís de Meneses, 3º Conde de Ericeira, refere que, enquanto general da artilharia do exército do Alentejo em 1663, se fazia acompanhar de dois estandartes (em rigor, seriam guiões) – um com as armas reais (provavelmente semelhante ao que se conserva em Vila Viçosa) e outro com as suas próprias armas, “e ao pé delas uma peça de artilharia [bordada ou pintada], entre as quais se viam umas letras de ouro, que diziam: Sine qua non” (História de Portugal Restaurado, 1946, vol. IV, pg. 212).

Este tema continuará a ser abordado nas próximas entradas.

Bibliografia:

MATOS, Gastão de Melo de, Bandeiras militares do século XVII e a bandeira da Aclamação, sem local, sem nome, 1940.

SALES, Ernesto Augusto Pereira de, Bandeiras e Estandartes Regimentais do Exército e da Armada e outras Bandeiras Militares, Lisboa, Centro Tipográfico Colonial, 1930.

Foto: Guião de capitão-general do exército, batalha de Montes Claros (1665), preservado em Vila Viçosa. Note-se que era esta a configuração do guião – a haste à qual se prendia ficava do lado esquerdo da presente foto. As armas reais apareciam “sobre o lado”.