O Regimento do Vedor Geral (29 de Agosto de 1645) – parte 4

22. E quando se fizer reformação de algumas companhias, se lançarão os soldados que se reformarem nas listas daqueles a que se agregarem, declarando-se em seus assentos as companhias reformadas de que passaram a elas, e nas listas das companhias reformadas se porão notas em que declare que se reformaram, por que ordem, e que as praças delas passaram a tais companhias, e guardar-se-ão estas listas das companhias reformadas para que se achem quando por elas se queira ajustar alguma coisa, ou passar-se alguma certidão.

23. E porque convém muito que as companhias não andem notavelmente diminutas por muitas causas, tanto que uma não chegar a ter oitenta soldados, e houver outras também diminutas, lembre logo o vedor geral ao governador reforme das mais modernas as que bastem para inteirar o número das mais antigas, e não o fazendo ele pontualmente, me avisará com relação das praças que têm as companhias diminutas, e de quais são as mais modernas para que eu as mande reformar; e se o vedor o não fizer, me darei por mal servido dele, e mandarei proceder contra ele como me parecer.

24. E feita a reformação, se não dará vantagem nem entertenimento a nenhum dos oficiais reformados sem que primeiro assentem praça singela na infantaria, e com certidões dos oficiais de como o têm feito, e informação dos governadores das armas com ela. Requererão provisões minhas das vantagens que como a reformados lhe toca, e levando-as, se notarão as vantagens em seus assentos para as ficarem vencendo, porque sem as tais provisões as não poderão vencer, e tornarão a vagar estas vantagens quando os tais capitães e oficiais tornarem a servir em outras companhias os postos que tiveram nas que se reformaram, ou outros, e nem eles gozando desta vantagem poderão gozar de outra alguma, nem outra pessoa alguma poderá ter duas vantagens.

25. E porque convém que o número dos reformados não cresça, terá o vedor geral muito particular cuidado de lembrar ao governador das armas os reformados que houve nas ocasiões dos provimentos para que cessem os soldos que gozam com a ocupação que se lhe[s] der.

26. E porque todos os soldados e mais pessoas que servirem na guerra possam requerer seus melhoramentos ou satisfação dos serviços que houverem feito, se lhes darão pelo contador do exército suas fés de ofícios assinadas por ele, e rubricadas pelo vedor geral, as quais serão tiradas das listas de todo o tempo que houverem servido, e nelas se declararão as companhias e terços em que serviram, desde quando assentaram praça, que cargos ocuparam, quando entraram nelas [companhias] e quando as largaram, as ausências que fizeram e com que licença, e porque causa; e também se pelos livros constar que cometeram alguns crimes, se lhes declararão nas mesmas fés de ofícios para que quando eles se apresentem no Conselho aonde se houver de tratar do despacho de quem o pretender, conste ao certo de tudo o que se deve saber para se lhe deferir, e se não passe fé de ofícios a nenhuma pessoa que se ausentar da guerra sem licença do governador das armas; e aqueles que as pedirem para seus requerimentos, ficando actualmente no serviço, se lhe poderão passar com despacho do governador das armas, e aos que dentro de seis meses depois da licença não tirarem as fés de ofícios se lhe não poderão dar sem nova licença.

27. E por que não tenham necessidade de vir a esta corte a pretender suas provisões de vantagens, deixando meu serviço, e embaraçando com estes e outros requerimentos os conselhos, depois de regulados os papéis mos remeterá o governador das armas com carta sua ao Conselho de Guerra para lhe mandar deferir, e o vedor geral e contador que assentarem vantagem alguma a algum reformado sem concorrerem nele os requisitos referidos, e sem provisão minha assinada por minha mão, incorrerão em perdimento de ofício para nunca mais entrar nele, e pagarão em dobro à minha fazenda tudo o que tiverem pago aos tais reformados.

28. E a quaisquer pessoas destes Reinos que me forem servir às fronteiras à sua custa, se assentará a sua praça na companhia em que servirem, declarando-se-lhes no seu assento que servem sem soldo, e da mesma maneira se porão nas folhas que me vierem assinar para que eu veja o como me servem as tais pessoas, e tenha lembrança de as premiar a seu tempo, e quando fizerem ausência com licença se notarão em seus assentos da mesma maneira que se faz aos que servem com soldo, para quando for tempo se passem suas fés de ofícios ajustadas com o tempo que serviram.

Fonte: Arquivo Histórico Militar, 1ª divisão, 2ª secção, caixa 3, nº 1.

Imagem: Piqueiros e mosqueteiros franceses do período da Guerra dos 30 Anos (1618-1648). Gravura de 1635.

Regimento do Vedor Geral (29 de Agosto de 1645) – parte 3

16. O que houver de ser eleito para alferes seja pessoa que tenha partes para o poder ser, e terá servido quatro anos efectivos, de que há-de constar por certidões  de meus oficiais de soldo das partes aonde tiver servido, sem que nisto possam dispensar os governadores das armas, nem o Conselho de Guerra, porque só para mim reservo esse suprimento; e os ditos governadores não deixarão prover as bandeiras em quem não concorrerem estas qualidades com declaração que se assim o não fizerem, não hão-de ser tidos nem tratados os providos como alferes, nem admitidos com esse nome em tribunal algum, nem os oficiais de soldo os assentarão por tais nos livros de seus ofícios. E mando que se não admita nos Conselhos de Estado, e Guerra, ou outro tribunal algum, apresentação alguma de serviços a alferes que haja servido debaixo de seus cargos, que além da licença ordinária não trouxer fés de ofícios do soldo dos anos de serviço, e requisitos que mando tenham para serem providos em bandeiras, e que esta fé não seja geral, senão particular das companhias em que serviu, que tempo em cada uma, e de que quando se lhe deu a bandeira concorriam nele as qualidades referidas, porque de outra maneira quero que não seja havido, nem tratado por alferes, nem recebidos seus papéis em que assim se intitular.

17. Os que houverem de ser elegidos por sargentos hão-de ter os mesmos anos de serviços que os alferes, de que há-de constar na mesma forma, com as circunstâncias e particularidades que no capítulo antecedente se refere, e devem ser diligentes, porque são o governo ordinário das companhias [todo o trabalho de adestramento dos soldados com as armas individuais cabia aos sargentos].

18. Aos capitães de infantaria toca nomear os alferes e sargentos para suas companhias, e não devem escolher pessoas em que não concorram as qualidades que ficam referidas, e para que o provimento dos tais ofícios se faça como convém a meu serviço, com a conta e consideração que se deve ter com os que servindo fazem o que devem, e se lhes não prefiram os indignos, de que resultam graves inconvenientes, mando que os oficiais de soldo não assentem praça de alferes ou sargento, ainda que tenham os anos de serviço que se requer, sem levarem aprovação do seu mestre de campo firmada por ele, em que declarem concorrerem no nomeado as qualidades da reputação e valor que convêm; e aos mestres de campo encarrego e mando que constando-lhes que em os tais nomeados não concorrem os requisitos necessários, ou que são pessoas defeituosas, dêem conta aos governadores das armas para com sua ordem ser o capitão castigado como convém, sem poder ter parte na dita eleição; e o sargento será promovido a alferes, e o cabo de esquadra mais antigo a sargento; e quando no nomeado concorram todos os requisitos referidos, o governador das armas, por seu despacho, lhe mandará assentar sua praça.

19. Mando ao vedor geral e contador e oficiais de soldo que não assentem praça de capitães de infantaria, alferes e sargentos nos quais não concorram os requisitos referidos nos capítulos antecedentes, o que lhes constará por fé de ofícios particulares, e não gerais, em que declare o dia em que cada um assentou praça, cargos, e companhias em que serviu, e que tempo em cada uma, e quando foram promovidos aos tais cargos concorriam neles as qualidades referidas, e declaro que os despachos dos governadores das armas para se assentarem as praças aos tais alferes e sargentos serão somente sobre as qualidades e suficiência das pessoas promovidas, e não sobre os anos de serviço, que fica declarado devem ter, porque neles ninguém poderá dispensar, nem suprir, como fica dito, e o vedor geral e contador que fizerem o contrário no disposto neste capítulo e nos antecedentes serão privados de seus cargos, e ficarão inábeis para tornarem a entrar em meu serviço.

20. E porque o inconveniente de pretender muitos soldados companhias, e o alcançá-las com intenção de as deixar para gozarem o entretenimento de reformados é grande, e prejudicial à minha fazenda, mando que não possam os capitães, nem os que tiverem cargo daí para cima fazer deixação de tais cargos sem licença minha por escrito, assinada por minha mão, precedendo primeiro informação do governador das armas das causas que o obrigam a fazer a deixação, e dos oficiais de soldo do anos que houverem servido e o ocupado o cargo que querem deixar, a qual informação há-de vir com informação do vedor geral, declarando como faço que as pessoas que fizerem a dita deixação sem preceder o referido, não só fiquem excluídos do título e soldo que poderiam pretender por haver servido os tais cargos, mas ficarão privados de poderem entrar em meu serviço, salvo eu mandar o contrário por ordem assinada de minha mão, com derrogação expressa deste capítulo.

21. Ninguém poderá servir em duas praças, nem vencer dois soldos, salvo os mestres de campo, que além do seu tem o de capitão de uma companhia das do seu terço [este é um pormenor burocrático que só aqui aparece explicado, pois o soldo do mestre de campo e o dos oficiais que a seguir são referidos era sempre declarado no seu todo, sem qualquer referência ao comando de qualquer companhia], e o general da cavalaria, em cujo soldo se inclui o de uma companhia de couraças, e o tenente-general outra, e o comissário da cavalaria , na qual se inclui também o soldo de capitão de clavinas, e nenhuma companhia de clavinas se assentará praça de alferes, pelo risco que nelas correm as bandeiras, e nenhum capitão que servir com soldado de clavinas tenha título de capitão de couraças [a prática mostraria ser muito diferente do que aparece estipulado neste capítulo, apesar de pontualmente surgirem decretos proibindo a existência de alferes (e bandeiras) nas companhias de carabinas – também designadas por cavalos arcabuzeiros].

(continua)

Fonte: Arquivo Histórico Militar, 1ª divisão, 2ª secção, caixa 3, nº 1.

Imagem: “Combate de cavalaria” (pormenor), pintura de Peter Snayers (1592-1667).

Regimento do Vedor Geral (29 de Agosto de 1645) – parte 2

5. E fazendo-se assentos de pão de munição, os quais muitas vezes sobem e abaixam no preço, se fará declaração em uma folha branca no princípio da lista a como sai cada pão, e o dia em que começou a correr aquele preço, e nos assentos dos soldados se notará os que os recebem para que sirva também para o remate de contas.

6. E se alguns soldados se amotinarem, e se lhes riscarem suas praças por esta causa, se lhes notará em seus assentos, para que sempre conste do crime que cometeram, porque estes, ainda nos casos que são perdoados não podem subir a postos, e por isso é necessário que nos livros haja sempre notícia disto.

7. E quando algum soldado fugir, se notará também em seu assento, dizendo-se que fugiu de tal mostra, para que daí por diante lhe não corram com o soldo; e para o pão de munição se deve notar o dia em que foge, o mais pontual que pode ser para a conta de quem toca.

8. E de qualquer outro crime grave que o soldado cometer, que lhe possa ser impedimento para subir a postos, se fará nota em seu assento pela maneira que fica dito, e o vedor geral pedirá ao auditor geral do exército, e a todas as justiças que conhecerem de semelhantes crimes dos soldados e neles derem sentenças que se possam executar, que lhe dêem cópias delas para as notar nos assuntos dos soldados, e eles serão obrigados a dar-lhas dentro de três dias depois das sentenças dadas.

9. E quando o general der licença a algum soldado ou oficial do exército para fazer ausência dele, será por escrito, e se tomará razão da dita licença na Vedoria Geral, e Contadoria, e se notará no assento do tal soldado ou oficial para se fazer baixa do soldo, porque nunca a licença se poderá dar com retenção dele, e só vencerá o soldo na ausência quando o general mandar alguma das sobreditas pessoas a coisa de meu serviço [quer dizer, do Rei, em cujo nome é suposto estar o Regimento], e isto mesmo se notará como se tomou razão na Vedoria Geral, e Contadoria, porque sendo o soldado sem esta licença com estas declarações será preso e castigado, como quem fugiu do exército e da guerra.

10. E quando algum soldado morrer no hospital ou fora dele, se notará o dia em que morreu, assim para se fazer baixa no soldo, como para se lhe fazer remate de contas do que se lhe estiver devendo; e quando algum morrer na guerra e for tão pobre que não tenha coisa alguma para se lhe fazer bem por sua alma, se lhe mandará pagar um mês de soldo, e se se lhe dever alguma coisa do que se reserva para remate de contas, se pagará por aquela conta, e se notará em seus assentos, mas quando se lhe não deva nada, se lhe pagará de minha fazenda.

11. E aos que por sentença forem desterrados do exército, se fará baixa em virtude dela, que procederão dos treslados das sentenças, mas quando algum soldado for preso por algum caso por mandado de seus superiores, se lhe correrá com os seus socorros como de antes, até à sentença, e se por ela for condenado a desterro, então se lhe fará a dita baixa.

12. E se a Relação desta cidade [Lisboa] ou do Porto condenarem a alguma pessoa a servir no exército ou em alguma fronteira à sua custa, não se lhe correrá com o soldo, salvo se for tão pobre que de nenhuma maneira tenha com que se sustentar, e o vedor geral terá cuidado de que estes condenados apareçam nas mostras como os mais soldados, para o que se lhes formará assento nas listas, com declaração da forma em que servem, que será conforme a sentença.

13. Não se assentarão nos livros da Vedoria Geral, e Contadoria, soldos de capitães, assim de infantaria como de cavalaria, nem de posto algum daí para cima, que não tiver patente minha assinada por minha mão, e o vedor geral o fará guardar inviolavelmente, não consentindo que se pague soldo a quem não tiver patente no modo referido, e fazendo-o se haverá por seus bens tudo o que se pagar.

14. E porque não se tem declarado até ao presente os anos de serviço que hão-de ter os que forem nomeados para estes cargos, o que nasceu de se não terem feito as Ordenanças Militares, aonde direitamente pertencem, havendo respeito ao grande dano que tem resultado à minha fazenda, e à boa disposição da milícia de se não ter declarado, principalmente nos ofícios, e praças de capitães de infantaria e cavalaria, alferes, sargentos, mando que enquanto se não fizerem as Ordenanças Militares se guarde nesta parte o que vai disposto nos capítulos seguintes [as Ordenanças Militares foram compostas em 1643, tendo sido o manuscrito delas comentado por Joane Mendes de Vasconcelos; mas nunca chegaram a ser impressas, apesar da evidência mostrar, por fontes diversas, que boa parte do seu conteúdo foi seguido na prática].

15. Não se elegerá capitão de infantaria pessoa em que não concorra o haver sido seis anos soldado debaixo de bandeira, e três de alferes, ou dez anos efectivos soldado, ainda que com licença se hajam interrompido, contanto que o tempo da licença e ausência não se inclua neles; e se houver alguma pessoa de muita qualidade em que concorra virtude, ânimo e prudência, se poderá admitir a eleição de capitão, contanto que haja servido na guerra seis anos efectivos, ou que pelo menos cinco, sem que em maneira alguma se possa dispensar em menos tempo de serviço, porque desde logo é minha vontade excluí-lo, como excluo em uns e outros todo o géneros de suprimentos e maior moderação, e a que se faz com as tais pessoas se funda em que com razão se deve pressupor neles maior capacidade, mais antecipadas notícias e indubitável valor, e por estes respeitos é bem não dilatar neles tanto como nos mais.

(continua)

Fonte: Arquivo Histórico Militar, 1ª divisão, 2ª secção, caixa 3, nº 1.

Imagem: Dispondo o exército. Gravura de Jacques Callot, do período da Guerra dos 30 Anos (1618-1648).

Postos do exército português (21) – O gentil homem da artilharia e o condestável

O gentil homem da artilharia era o responsável por um determinado número de peças de artilharia do respectivo trem na marcha do exército, ou tinha a seu cargo uma bateria constituída por um número variável de peças, quando estas eram dispostas em campanha ou num cerco. Segundo se pode ler  no título 23 da proposta de Ordenanças Militares de 1643,

Os gentis homens da artilharia hão-de ser eleitos de capitão de gastadores ou sargentos reformados; e hão-de exercitar o meneio e carruagem de seis peças, e assistir no marchar, alojar e plantar as baterias, fazendo que se conduza e haja tudo o necessário para elas.

Note-se que a as seis peças por gentil homem acima referidas não eram necessariamente uma dotação fixa, sendo a composição da artilharia num exército variável de acordo com os fins pretendidos e as disponibilidades materiais. Isso mesmo é observado num comentário por Joane Mendes de Vasconcelos a propósito de um outro título das Ordenanças, o 47, que pretendia regulamentar a distribuição da artilharia em proporção ao efectivo total de infantaria e cavalaria. Conforme apontou o reputado general, a artilharia se regula com as facções [ou seja, com a natureza das operações], e não com o número, e assim não é matéria para Vossa Majestade decidir em Ordenanças Militares. A propósito dos gentis homens da artilharia e do título 23, Joane Mendes mostrou algumas reservas a propósito da intenção régia (ou de quem aconselhou em privado o Rei nesse ponto) de fazer ascender ao posto os capitães de gastadores e sargentos reformados:

Se (…) tiverem suficiência para ocupar este cargo (…), se poderá eleger deles, quando não de condestáveis práticos e autorizados, sendo este um dos postos que se deve prover mais pela prática que por outro algum merecimento.

O posto de condestável não tinha nada que ver com o prestigioso cargo militar do período medieval. Era o chefe de peça, sendo também um deles o ajudante do gentil homem da artilharia.

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 65 e 83-84.

Imagem: Artilheiros em acção. Reconstituição histórica do período da Guerra Civil Inglesa. Kelmarsh Hall, 2007. Foto de Jorge P. Freitas.

Postos do exército português (20) – o preboste geral

A sentinela Carl Fabritius 1654

O termo preboste deriva do latim proepositus. A designação corresponde ao oficial responsável pelo policiamento, aplicação e execução da justiça militar. Conforme escrevia Bartolomé Scarion de Pavia na sua Doctrina Militar… (1598), es cargo muy odioso y poco ó nada honroso. Esta afirmação releva das obrigações pouco simpáticas do preboste geral, que tinha de mandar enforcar, por vezes, os soldados que infringiam a disciplina militar. Em certos casos, nem os oficiais escapavam ao cumprimento da ordem de detenção levada a cabo por este seu camarada. Ascendia-se a preboste geral a partir do posto de capitão de infantaria, de acordo com o projecto de Ordenanças Militares de 1643, embora Joane Mendes de Vasconcelos, nos seus comentários, advertisse que considerando o humor dos portugueses [ou seja, o carácter], me parece bastará serem eleitos de ajudantes de infantaria. Referia ainda o general português que o preboste geral tem uma companhia de cavalos com patente de arcabuzeiros, dois tenentes e um capelão, que o acompanham com o verdugo, porque tudo é necessário para a breve execução da justiça. A companhia do preboste geral (uma das que, depois da reforma da cavalaria portuguesa de 1664, se manteve independente, isto é, não enquadrada em troços semi-permanentes) devia compreender um mínimo de 40 soldados. As Ordenanças Militares de 1643, no título 36, explicitavam que o exercício do cargo implicava a verificação da execução das ordens e bandos (editais militares), policiamento dos caminhos e atribuição dos lugares dos vivandeiros no acampamento. Estas funções não são totalmente estranhas às que passaram a ser desempenhadas pelas unidades de polícia militar em épocas posteriores.

Bibliografia:

AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pg. 78.

ALMIRANTE, José, “Preboste”, in Diccionario Militar, Madrid, Ministerio de Defensa, 1989, vol. II, pg. 871.

Imagem: “A sentinela”, quadro de Carl Fabritius (1654). Vencido pelo sono, o mosqueteiro estará metido em grandes sarilhos se calha o preboste geral passar por ali…

Postos do exército português (19) – o capitão de gastadores

Acampamento militar

O termo gastador deriva do latim vastator, a partir do verbo vastare, devastare, e nesta forma arcaica indicava aquele que talava, assolava, destruía ou devastava uma região. No século XVII referia-se aos homens que tinham como função desbravar caminhos, construir e reparar pontes, abrir valas e minas, cavar trincheiras e de um modo geral proceder a todo o trabalho braçal de preparação do terreno para a progressão, a defesa ou o assalto do exército a uma posição fortificada inimiga. Foram os antecessores dos sapadores.

As referências a taladores ou gastadores integrando ou acompanhando os exércitos remontam ao século XV. Na época da Guerra da Restauração constituíam um elemento necessário a qualquer força militar, embora a crónica falta de efectivos  fizesse com que os soldados – pagos ou milicianos – não se pudessem, muitas vezes, eximir aos trabalhos que em princípio estariam destinados aos gastadores. O recrutamento destes elementos não-combatentes do exército (a sua única arma era a pá, o machado ou a picareta) fazia-se entre a população masculina mais habituada aos duros labores do campo – e de entre esta, recaía sobre os de mais baixo estatuto socioeconómico. Conforme refere uma consulta do Conselho de Guerra, a respeito do levantamento de um contingente de gastadores destinados ao Alentejo,  estes homens são todos jornaleiros, pessoas que comumente são pobres (ANTT, Consultas, 1644, maço 4-A, nº 191, consulta de 25 de Maio de 1644). Ou seja, eram pessoas que trabalhavam à jorna (ao dia), fazendo uma itinerância sazonal pelo país consoante a época fosse da ceifa, das vindimas, da apanha da azeitona, etc., num quadro rural que em muitos casos se estendeu até bem dentro do século XX, a troco de um pagamento miserável, muitas vezes apenas um mínimo sustento diário de vinho e pão. Homens habituados a um trabalho árduo e desgastante.

No exército português havia o posto de capitão de gastadores. Segundo a proposta de Ordenanças Militares de 1643, um capitão de gastadores devia comandar uma companhia de 50 gastadores, e assistir na fortificação, fazendo obras nela, conforme a ordem dos engenheiros, e acodem a fazer caminhos, pontes e o mais que a este respeito se lhes encomenda, e tem cuidado da guarda e distribuição das ferramentas. Joane Mendes de Vasconcelos, nos seus comentários às Ordenanças, acrescenta que [e]ste cargo se deve prover em pessoas que tenham notícia do modo de trabalhar em trincheiras, e que conheçam os gastadores, e que tenham autoridade com eles, e experiência dessa gente, para poderem formar as suas companhias e conservá-las na ocasião.

Bibliografia:

AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 65-66.

ALMIRANTE, José, “Gastador”, in Diccionario Militar, Madrid, Ministerio de Defensa, 1989, vol. I, pgs. 506-507.

Imagem: Acampamento militar junto ao rio Guadiana, perto de Moura, 1657. Planta de Nicolau de Langres, in Desenhos e Plantas de todas as praças do Reyno de Portugal pelo Tenente General Nicolao de Langres Francez, que servio na guerra da Acclamação (BNL, secção de Reservados, F2359). A construção de acampamentos temporários deste género ficava a cargo, sempre que possível, dos gastadores.

Postos do exército português (18) – o general da cavalaria

Wouwerman

O posto de general da cavalaria correspondia a um dos quatro principais postos de qualquer exército provincial. A designação original, capitão-general da cavalaria, quase nunca era referida, acabando por impor-se definitivamente, com o passar do tempo, a designação abreviada de general da cavalaria.

Nem sempre o comandante supremo da cavalaria de uma província era o general. Quando os efectivos eram pouco numerosos, como sucedeu nos primeiros anos da guerra nas províncias do norte de Portugal, o comando podia recair num tenente-general, num comissário geral ou mesmo num capitão. Houve ocasiões em que esse cargo específico de comando, exercido com patente inferior a general, recebeu a designação de governador da cavalaria.

Sendo um posto de tanta importância, estranhou Joane Mendes de Vasconcelos que a proposta de Ordenanças Militares de 1643 não previsse, no capítulo respeitante ao general da cavalaria, que a este posto pudessem ascender imediata e preferencialmente os tenentes-generais da cavalaria. Uma lacuna de monta – passe a brincadeira semântica – a que o experiente Joane Mendes fez pronta referência e correcção no seu comentário:

Não se faz memória neste título [capítulo] dos que houveram sido tenentes-generais da cavalaria, para serem consultados em generais dela, sendo certo que estes devem nas consultas preferir a todos os outros [ou seja, ter precedência sobre os outros postos – o capítulo dava os capitães de cavalos e mestres de campo como postos a partir dos quais se poderia ascender a general, omitindo inclusive o posto de comissário geral], assim pelo conhecimento que devem ter mais próprio daquele exercício, como porque na cavalaria este é o posto imediato ao general dela, e também os generais da artilharia, em quem de ordinário [ou seja, habitualmente] concorrem grandes serviços.

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pg. 53.

Imagem: Philips Wouwerman, “O assalto a Coevorden”. Note-se a cavalaria dando cobertura às tropas de infantaria que se lançam, com escadas e outros apetrechos, ao assalto das fortificações.

Postos do exército português (17) – o mestre de campo general

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O mestre de campo general era o segundo na hierarquia entre os quatro principais cabos de guerra de um exército provincial, logo a seguir ao governador das armas. Cabia-lhe, entre outras funções, o comando supremo da infantaria do exército da província. De acordo com o proposto nas Ordenanças Militares de 1643 por D. João IV, as qualidades esperadas de um mestre de campo general eram as seguintes (textos vertidos para português corrente, como é hábito neste blogue de divulgação):

O cargo de mestre de campo general convém que se me consulte, não somente de qualidade virtuosos, afáveis, magnânimos e desinteressados, mas que hajam tido os demais postos de guerra, e procedido em todos com assinalado valor e sagacidade, particularmente teóricos e práticos; e aqueles em cujas pessoas mais destas partes concorrem preferirão, nas consultas para eu aprovar, os que forem mais idóneos (…).

Nos seus comentários à proposta de Ordenanças Militares de 1643, ajudando a clarificar e corrigir todos os pontos necessários, Joane Mendes de Vasconcelos acrescentou:

Deve-se declarar neste título os postos que estão mais próximos à consulta deste cargo de mestre de campo general, ordenando Vossa Majestade que sejam preferidos os maiores; e entre os iguais, aqueles que mais hajam tratado a infantaria [ou seja, com mais experiência no comando da infantaria].

Toca-lhe, ao mestre de campo general, tomarem-lhe as armas [quer dizer, apresentar armas, no modo de expressão seiscentista] assim nas praças de armas como nos esquadrões, e lhe devem entrar de guarda um alferes com trinta soldados, e em campanha no seu quartel, uma companhia sem bandeira, e terão sempre uma companhia de arcabuzeiros a cavalo para guarda de sua pessoa, e as bandeiras e estandartes se lhe devem arvorar.

Também parece que deve fazer nomeações de ajudantes de tenente [de mestre de campo general], preboste geral, tambor geral [ou seja, tambor-mor], capitão de guias, furriel da corte [ou seja, furriel-mor], e aprovar os oficiais de justiça nomeados pelo auditor geral; mas só o general do exército lhes mandará assentar as praças ou passar as patentes que Vossa Majestade não reservar para si.

Note-se que o general (capitão-general) do exército era um cargo supremo que durante a maior parte do tempo da Guerra da Restauração não teve ocupação operacional, pelo que as prerrogativas referidas por Joane Mendes de Vasconcelos a propósito daquele posto passavam para o governador das armas de cada província.

Fonte: “Ordenanças Militares de 1643″, tit. 13º, in AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 59-60.

Imagem: Combate de infantaria na batalha do Ameixial,  8 de Junho de 1663. Pormenor de um painel do “Biombo dos Viscondes de Fonte Arcada”, fotografia da secção de Iconografia da Biblioteca Nacional de Lisboa, EA62V.

Postos do exército português (16) – o tenente de mestre de campo general

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Dando sequência à série sobre os postos do exército português (já passaram três meses desde que foi publicado o último artigo), cabe hoje a vez do tenente de mestre de campo general. Como o nome indica, era o auxiliar do comandante supremo da infantaria de uma província ou de um exército provincial, e tinha, por sua vez, um ou mais ajudantes. Nos comentários às Ordenanças Militares de 1643, Joane Mendes de Vasconcelos refere-se a este posto nos seguintes termos:

Os tenentes de mestre de campo general se devem consultar sempre de sargentos mores, capitães de cavalos ou tenentes de general da artilharia, e nunca de capitães de infantaria, por não ficarem iguais com seus ajudantes, que de capitães sobem a este posto.

As funções do tenente de mestre de campo general eram exercitar e distribuir todas as ordens recebidas do mestre de campo general e fazer o reconhecimento, no terreno, dos postos que o exército deveria ocupar.

Fonte: “Ordenanças Militares de 1643″, tit. 14º, in AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 60-61.

Imagem: Pormenor do painel de azulejos representando a Batalha das Linhas de Elvas, 14 de Janeiro de 1659. “Sala das Batalhas”, Palácio dos Marqueses de Fronteira.

Postos do exército português (15) – o ajudante de tenente de mestre de campo general

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O ajudante de tenente de mestre de campo general era um oficial colateral, o de mais elevada patente entre os desta categoria. Segundo o disposto nas Ordenanças Militares de 1643

Os ajudantes de tenente de mestre de campo general hão-de ser eleitos de capitães de infantaria de mui particular talento e expediente; exercitam repartir e levar as ordens, e assistirem sempre na sala dos generais, repartidamente por dias.

Segundo Joane Mendes de Vasconcelos, a nomeação de sujeitos para aquele posto cabia ao mestre de campo general. Os ajudantes de tenente de mestre de campo general podiam ser nomeados para qualquer vaga de sargento-mor de um terço (de tropas pagas) do exército da sua província.

Fonte: “Ordenanças Militares de 1643”, tit. 18º e 19º, in AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 62-63.

Imagem: Representação de infantaria portuguesa no chamado “Biombo dos Marqueses de Fonte Arcada”, séc. XVII.  Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.

Postos do exército português (14) – o tenente-general da cavalaria

Para tenentes-generais da cavalaria se hão-de nomear dos comissários gerais da cavalaria de melhor aprovação, e também se poderão eleger de capitães de couraças, cuja qualidade, serviços e partes obriguem a serem escolhidos [ou seja, os distingam para a promoção] para exercitarem o dito posto; são os que ajudam e hão-de dar todas as ordens que o comissário geral da cavalaria e mais oficias houverem de receber (…).

Era esta a disposição do título 15 do projecto de Ordenanças Militares de 1643. O comentário de Joane Mendes de Vasconcelos acrescentava que também deviam os tenentes-generais da cavalaria provir da infantaria, promovendo-se mestres de campo àquele posto. Seria conveniente, acrescentava, porque muitas vezes iam os tenentes-generais em operações com forças mistas de cavalaria e infantaria, e era necessário que saibam de uma e outra cousa, para mandar com acerto.

Este posto tinha a particularidade de poder ser também um cargo. Isto é, podia ser desempenhado por um oficial com outra patente, como coronel (estrangeiro) ou comissário geral. No entanto, não foram muito frequentes estes casos. Em cada exército provincial começou por haver um tenente-general da cavalaria – mas não antes de 1643, nem sequer no Alentejo, cujo exército era o maior de todos. Com o decorrer do conflito, o aumento dos efectivos da cavalaria impôs o consequente aumento do número de oficiais com aquela patente. Idealmente, o topo da estrutura hierárquica na cavalaria devia compreender um general, dois tenentes-generais e quatro comissários gerais, embora em certos casos um tenente-general pudesse bastar para assegurar o comando da cavalaria de um exército provincial pouco numeroso, podendo ser então designado como governador da cavalaria.

Nos primeiros anos da Guerra da Restauração, alguns oficiais estrangeiros obtiveram a patente de tenente-general. Na Beira, o francês Jacques Talonneau de La Popelinière morreria em combate em Março de 1644, já com aquele posto (chegara a Portugal havia dois anos e meio com a patente de capitão de cavalos). O holandês Jan Willem van Til foi tenente-general no Alentejo em 1645, embora sem grande destaque. Já o francês Achim Avaux de Tamericurt foi um do mais brilhantes naquele posto, que desempenhou no Alentejo e na Beira. Também se destacou, no Alentejo, o italiano (de Roma) João Vannicelli. Entre os portugueses, merecem destaque grandes comandantes da cavalaria como D. João de Mascarenhas (mais tarde, Conde de Sabugal), Dinis de Melo de Castro, D. João da Silva, entre vários que ocuparam aquele posto.

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pg. 61.

Imagem: Capa da edição impressa de 1707 da obra Maneio da Cavallaria escrito pello Conde Galeaço Gualdo Priorato Com annotaçoens de Dom João Mascarenhas Conde do Sabugal do Conselho de Guerra d’ElRei Dom Affonço 6º. D. João de Mascarenhas foi tenente-general e general da cavalaria do Alentejo na segunda metade da década de 1640.

Postos do exército português (13) – o mestre de campo

Os mestres de campo ou são feitos por grande qualidade [fidalguia] ou por grandes serviços [desempenhados na guerra].

(carta de Matias de Albuquerque, Conde de Alegrete, 22 de Agosto de 1644, in Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI, publicadas e prefaciadas por P. M. Laranjo Coelho, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, vol. II, pgs. 57-58).

O posto de mestre de campo tinha grande prestígio. Ao tempo da Guerra da Restauração existia também nos exércitos espanhol e francês. Encontrava-se apenas na infantaria e correspondia ao posto de coronel, designação que em épocas posteriores iria substituir por completo a de mestre de campo. Em rigor, havia coronéis no exército português em simultâneo com mestres de campo, pois por tradição as grandes unidades da ordenança de Lisboa eram designadas regimentos (e não terços, embora este nome surja de vez em quando nos documentos, um pequeno erro gerado pelo hábito).

De facto, atendendo ao que exigiam as regras militares, reflectidas no projecto de Ordenanças Militares de 1643, para se ascender ao posto de mestre de campo era necessário ter servido durante 12 anos em cenário de guerra, dos quais 4 no posto de capitão. Desta conformidade estavam isentas as pessoas de qualidade e nobreza, o que na prática significava que os terços podiam por ser entregues a elementos da fidalguia sem a necessária experiência militar. Sobre o sargento-mor recaía então uma responsabilidade maior.

De qualquer modo, se exceptuarmos os primeiros anos da guerra, esta situação foi relativamente rara. Houve fidalgos que se revelaram bons mestres de campo. Ao posto ascenderam também vários soldados de fortuna, com tirocínio feito nos escalões inferiores, vários deles estrangeiros. Isto no exército pago, pois nos auxiliares e na ordenança era frequente o sargento-mor ter de desempenhar o comando efectivo do terço, dado o absentismo dos mestres de campo, ou a sua inexperiência militar.

O mestre de campo dispunha de um cavalo, se bem que houvesse quem preferisse desmontar e munir-se de espada e rodela, combatendo a pé no calor da refrega.

Imagem: Combate de infantaria. Recriação histórica da Guerra Civil Inglesa, Kelmarsh Hall, 2007. Foto do autor. Reorganizar o esquadrão de infantaria depois da confusão do choque era uma tarefa difícil, mesmo que se rompesse o contacto com alguma ordem. A maioria dos mestres de campo confiava na experiência dos seus sargentos-mores para esse fim.

Postos do exército português (12) – o sargento-mor

O sargento-mor era o segundo-comandante de um terço de infantaria. A designação do posto mudaria para major já no século XVIII, bem como as responsabilidades de comando. Na verdade, apesar de em alguns exércitos europeus – como o inglês, por exemplo – existir o posto de major, as atribuições daquele oficial eram então diferentes daquelas que viria a ter mais tarde, quando se tornaria comandante de um batalhão (e este passaria a ser uma sub-unidade do regimento). A respeito da evolução de sargento-mor para major, veja-se este artigo de Lagos Militar.

No período da Guerra da Restauração, o sargento-mor tinha funções muito técnicas, as quais já foram abordadas neste artigo. Vejamos o que dizia o projecto de Ordenanças Militares de 1643 a respeito deste posto:

Os cargos de sargentos-mores se hão-de prover em capitães de muita teórica, prática e valor, e quando se façam de terços já formados, se há-de procurar elegê-los dos mesmos capitães que neles houver; há-de ter dois ajudantes cada um, e ajudam aos mestres de campo imediatos a eles, no governo dos terços e a quem toca formá-los, receber as ordens e dá-las, e fazer que se observem todas as mais que devem guardar os oficiais e soldados de cada terço (…). (AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 62-63).

A necessidade de haver sargentos-mores experientes nos terços (experiência que podia faltar aos mestres de campo, ou por serem de recente promoção a partir de capitães de cavalos, ou por serem providos no posto devido à sua nobreza, mas sem conhecimento profundo da guerra viva) fazia com que a maioria destes oficiais fosse de origem plebeia. Eram chamados soldados de fortuna, isto é, profissionais das armas, e como tal podiam ser estrangeiros, ainda que súbditos do rei de Portugal. Alguns destacaram-se pela sua qualidade e competência, como os espanhóis Antonio Gallo (reformado em 1643, já idoso e com pouca saúde) e Antonio Sanchez del Pozo (que morreu em combate). Muitas vezes, os terços eram comandados pelos sargentos-mores, devido à ausência dos respectivos mestres de campo. Isto era mais frequene entre as forças milicianas de auxiliares e da ordenança.

É precisamente da obra Regimiento Militar de Antonio Gallo que se retira esta passagem:

El Sargento mayor traerà un baston de quatro palmos y medio, que es el terreno, que el soldado en escuadron ocupa de costado a costado, y le puede servir quando quisiere medir un terreno justo, y no es necessario que el baston tienga hierro, que no agravia al soldado, castigandole con el, que es su insignia. (pg. 28 v)

Já perto do final da Guerra da Restauração, um relatório inglês elogiava a competência e combatividade dos sargentos-mores portugueses. O elogio é de salientar, numa época em que a apreciação (ou depreciação) dos estrangeiros era condicionada por muitos preconceitos e algum desprezo.

Imagem: Infantaria em progressão. O controlo da formação no terreno era uma das tarefas do sargento-mor. Reconstituição histórica da Guerra Civil Inglesa, Kelmarsh Hall, 2007. Foto do autor.

Postos do exército português (8) – o capitão de infantaria

O capitão de infantaria comandava uma companhia. A insígnia do seu posto era uma gineta, espontão rematado com borlas na parte superior da haste. Em combate, o capitão podia encarregar o seu pajem do transporte da gineta e armar-se com um pique, um mosquete ou (o que era mais vulgar) combater com espada e rodela. O posto de capitão de infantaria era considerado inferior ao de capitão de cavalos, todavia era um posto de grande consideração na hierarquia militar seiscentista. Sobre a maneira de prover os capitães das companhias, tanto das tropas pagas como das milicianas, esclarece o título 9 do projecto de Ordenanças Militares de 1643:

Para capitães das companhias de infantaria se elegerão alferes reformados e ajudantes, em que uns e outros hajam servido oito anos na guerra com praça assentada debaixo de bandeira, que tenham as partes necessárias para exercitarem com prática e experiência o muito que a cada um deles se oferece e encarrega cada hora que exercitar, e os que forem de mais serviços e aprovados merecimentos nas ocasiões para maiores riscos e empenhos, precederão para serem escolhidos (…).

Porém, como em muitas outras passagens das Ordenanças Militares de 1643, Joane Mendes de Vasconcelos discordou de pormenores do projecto. No caso dos capitães de infantaria, a proposta ia contra a prática assente e instituída de facto, pelo que o experiente cabo de guerra contrapôs:

Nos terços fazem vantagem aos alferes reformados e vivos [isto é, no activo] os que são actualmente da companhia do mestre de campo, porque como governam (de ordinário) a melhor companhia deles, têm maior capacidade a este respeito que os outros, escusa consultarem-se a segunda companhia, que vaga em seu tempo, como também nos esquadrões a segunda manga de bocas de fogo do corno direito se lhes entrega firme. [Note-se, na parte final deste comentário, a referência à disposição e comando táctico.]

Também se devem admitir os alferes vivos para capitães de infantaria, toca também ao alferes entrar em capitão quando em ocasião de peleja morre o capitão da companhia, achando-se o tal alferes na mesma ocasião e proceder nela conforme as suas obrigações, e em sua pessoa concorrem as partes e requisitos convenientes.

As observações de Joane Mendes de Vasconcelos foram todas dirigidas à promoção dos alferes ao posto de capitão nas companhias de infantaria, pois que as funções inerentes ao posto eram bastante claras e sabidas, nem sendo sequer focadas no projecto – excepto no que respeitava aos ditames de ordem comportamental e moral que o capitão devia seguir. Mas aí, a resposta de Mendes de Vasconcelos foi clara:

A repreensão dos vícios que contém este capítulo toca a todos os postos, e assim me parece que se devia encomendar em título particular a conta que hão-de ter os conselheiros e os generais e não proporem a Vossa Majestade para os cargos militares pessoas conhecidas perniciosas, com escândalo.

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 55-56.

Imagem: Nesta foto de uma reconstituição histórica levada a cabo pela English Civil War Society, representando uma força de infantaria do New Model Army de Oliver Cromwell, é visível em primeiro plano, à direita, com gola de aço (protecção para o peito), um capitão carregando a gineta (sem borlas). Repare-se na diferença entre a gineta e as alabardas dos sargentos que marcham na primeira fileira da formação, mais atrás.

Postos do exército português (6) – o alferes

No que respeita ao alferes, não é possível estabelecer qualquer comparação com as atribuições actuais do oficial com aquela patente. No século XVII, a função primária do alferes era a de transportar a bandeira ou estandarte da companhia, ou o guião do general – função idêntica, no essencial, à de épocas mais recuadas, até à da génese árabe do termo, introduzido na Península Ibérica com a invasão muçulmana de 711. Contudo, ao invés do alferes comandante de um pelotão nos nossos dias, o do século XVII podia comandar uma companhia. Interinamente em caso de ausência do capitão, ou mesmo por inerência de cargo quando, num terço de infantaria, era porta-bandeira da companhia do mestre de campo.

Para ser provido no posto de alferes de infantaria, segundo a apreciação de Joane Mendes de Vasconcelos ao projecto de Ordenanças Militares de 1643, título 22º,

a um homem de qualidade [quer dizer, da nobreza] podem bastar dois anos, aos demais quatro de guerra viva, ou seis debaixo de bandeira, e não devem bastar os anos de serviços, senão que também se hão-de considerar o valor e partes e procedimento do nomeado, para se haver de prover, por que se for homem vil e afrontado, ou tiver algum grande e conhecido defeito, não deve ser admitido; (…) e merecendo o sargento da companhia passar a este posto, deve ser preferido a todos.

No caso da cavalaria aconselhava D. João de Azevedo e Ataíde, a pgs. 29-31 do seu tratado, que

querendo o capitão fazer escolha de algum alferes para a sua companhia, fará entre os soldados da mesma companhia, escolhendo entre os mais nobres [termo aqui empregue com o sentido actual de honrado] o mais brioso e ambicioso da honra, e que melhor tiver provado diante dele como aquele a quem os outros devem imitar e seguir como a sua guia. Marchando, vai sempre diante da companhia, pouco atrás do capitão, mas levando estandarte se porá no meio da primeira fileira.

O alferes de infantaria tinha um pagem – o abandeirado – cujo estatuto não era o de um militar, embora constasse na orgânica dos terços. Cabia-lhe transportar a bandeira sempre que o alferes tivesse de desempenhar outras tarefas. Tratava-se do prolongamento, no universo castrense, das funções que eram esperadas da criadagem. É um conceito estranho ao mundo actual, onde o exemplo mais próximo, mas mesmo assim anacrónico e pouco correcto, porque desempenhado por um militar de facto, é o do impedido.

Havia alferes nas companhias pagas e nas milicianas de infantaria. Na cavalaria, só as companhias de cavalos couraças (do exército pago, portanto) deveriam ter alferes, mas era muitíssimo frequente encontrá-los também nas de cavalos arcabuzeiros do exército pago que não respeitavam a proibição de terem estandartes.

Imagem: Companhia portuguesa de cavalos couraças (couraceiros). O alferes transporta o estandarte. Painel representativo da Batalha do Ameixial (1663), “Sala das Batalhas”, Palácio dos Marqueses de Fronteira. Foto do Comandante Augusto Salgado.

Postos do exército português (5) – o sargento

O posto de sargento só existia nos terços de infantaria do exército pago e nos terços milicianos de auxiliares e da ordenança (que em Lisboa tinham a designação tradicional de regimentos).

Sobre o sargento especificava o projecto de Ordenanças Militares de 1643 no título 24, aqui transcrito em português actual:

Os sargentos hão-de nomear os seus capitães [entenda-se: os capitães hão-de nomear os seus sargentos] de cabos de esquadra ou soldados, de partes, e valor, e que hajam servido na guerra quatro anos, e aprovados na mesma forma que os alferes; (…) e os ditos sargentos ajudam aos mesmos capitães, em todo o governo e meneio das companhias, e neles vem a consistir a maior parte da observância das ordens militares.

Ao que Joane Mendes de Vasconcelos respondeu nos seus comentários:

Os sargentos devem ser eleitos com os mesmos anos de serviços e considerações que se disse dos alferes sobre o seu título [quatro anos de guerra viva – ou seja, servindo em zonas de combate – ou seis debaixo de bandeira, mesmo sem participar em acções militares].

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pg. 65.

Imagem: Armas de infantaria usadas pelos sargentos: na vertical, uma alabarda, arma pessoal e insígnia do posto. Vê-se também um capacete ou murrião (ambos os termos eram comuns na época e designavam qualquer tipo de protecção metálica para a cabeça), um peito de armas (peitoral, como se diria mais tarde) e um estoque. Foto do autor, Museu da Escola Prática de Infantaria, Mafra.

Os dragões na Guerra da Restauração: desfazendo um mito

Não é raro ver referências à existência de dragões como um dos dois tipos de cavalaria existentes durante a Guerra da Restauração, sendo o outro os cavalos couraças. Esta confusão entre dragões e arcabuzeiros a cavalo é um dos mitos sobre o período que mais tem persistido, em boa parte pela repetição de erros surgidos em obras de autores dos séculos XIX e primeira metade do XX, como Rebelo da Silva, Fortunato de Almeida e Carlos Selvagem (cujo Portugal Militar é uma verdadeira armadilha para quem o toma como “manual” de História Militar de Portugal).

Acontece que os dragões, nesta época histórica, eram infantaria montada. O seu emprego táctico era diferente da cavalaria: combatiam sempre desmontados, dando cobertura à infantaria e à cavalaria a partir de posições abrigadas (em pequenos bosques, atrás de muros, sebes, em casas ou ruínas, etc.) e emboscando o inimigo. Um dos exemplos célebres da utilização de uma força de dragões emboscada, surpreendendo um dos flancos do dispositivo inimigo, aconteceu na batalha de Naseby em 1645, durante a Guerra Civil Inglesa (o regimento do coronel Okey, do New Model Army de Cromwell). Além disso, ao contrário da cavalaria, estavam armados com arcabuzes de mecha e não com carabinas, o que impedia a sua utilização a partir da sela.

Dois motivos contribuíram para a origem desta confusão. O primeiro radica na origem dos genuínos dragões, surgidos no século XVI como infantaria montada – piqueiros e arcabuzeiros montados em rocins, para lhes conferir maior mobilidade. Os arcabuzeiros passaram a acompanhar regularmente a cavalaria pesada (os lanceiros e mais tarde os couraceiros, sobrevivência da cavalaria pesada medieval) e acabaram por dar origem ao tipo de cavalaria ligeira designada por arcabuzeiros a cavalo. A função táctica e o armamento foram sendo adaptados ao combate montado, e embora os dragões continuassem a ser utilizados, foram remetidos ao seu papel original de infantaria montada, separando-se dos arcabuzeiros a cavalo. Só na parte final do século XVII é que os dragões passaram a ser considerados como um tipo de cavalaria, podendo combater tanto a cavalo como desmontados.

O outro motivo tem origem em algumas fontes do período, onde se patenteiam os confusos saberes (ou melhor, a falta de conhecimentos sólidos) por parte dos conselheiros militares da Coroa portuguesa, logo após a Aclamação de D. João IV. Porventura fruto de leituras mal digeridas de tratados militares do início do século XVII e até do século anterior, o certo é que o projecto de Ordenanças Militares de 1643 preconizava a constituição (anacrónica e confusa) de companhias de lanças, couraças e dragões! Joane Mendes de Vasconcelos, nos seus comentários à proposta das Ordenanças Militares, procurou corrigir o absurdo – tratava-se de um militar com experiência de combate de cavalaria e tinha conhecimento de causa. Foi este general que aconselhou a formação de companhias de couraceiros e de arcabuzeiros a cavalo, esclarecendo que os dragões, conquanto fossem úteis, eram infantaria montada e não deviam, portanto, fazer parte da cavalaria.

O facto é que, durante alguns anos, houve uma companhia (portuguesa) de dragões no exército português e a sua organização era semelhante à das companhias de arcabuzeiros a cavalo. Além disso, houve várias ocasiões em que alguma infantaria dos terços foi montada em rocins e sendeiros, transformando-se assim provisoriamente em… dragões! Mas isso será tema para uma próxima entrada.

Imagem: Parte de equipamento de dragão – capacete, colete de couro, espada, bolsa e bandoleira com frascos. A bandoleira era idêntica à utilizada pelos mosqueteiros e arcabuzeiros da infantaria. Ilustração retirada da obra de P. H. Ditchfield, Vanishing England, London, Methuen & Co. Ltd., 1910.