As mulheres e a guerra

TERBORCH

Um dos títulos mais recentes na área da História Militar da Era Moderna é Women, Armies, and Warfare in Early Modern Europe, de John A. Lynn II (New York, Cambridge University Press, 2008 – este autor assinava anteriormente apenas como John A. Lynn). Não é a melhor das obras de Lynn: uma estrutura pouco clara, um texto assente sobretudo em fontes secundárias, uma quase ausência de fontes primárias. No entanto, não deixa de ter algum interesse, pois entra num campo ainda pouco estudado: a relação das mulheres com o meio militar, numa época em que os interditos e a representação de valores eram, em grande parte, desfavoráveis ao sexo feminino, mas que se esbatiam – sem se apagarem totalmente – no seio da comunidade castrense. A mulher como companheira, legítima ou ilegítima, do militar, ganhando a vida com o comércio, incluindo o do próprio corpo, participando, por vezes activamente, nos perigos dos combates ou, no mínimo, nas actividades rotineiras dos exércitos. Em qualquer dos casos, sempre sujeita a cair vítima da violência de campanha, tal como a mulher que não se integrava na comunidade militar, mas que se deparava com a rudeza dos combatentes quando irrompiam pelas suas casas e propriedades para se alojarem ou, pior, com o intuito de pilhar e violar.

No período da Guerra da Restauração não são muito numerosas as referências à presença feminina enquanto acompanhante regular dos exércitos no terreno. A sazonalidade das operações de maior envergadura e, por outro lado, a especificidade das pequenas operações de saque e pilhagem, não davam azo a que a mulher se encontrasse com frequência ao lado dos militares no terreno, ao contrário do que sucedia, por exemplo, com os exércitos da Guerra dos Trinta Anos. Todavia, no que concerne a situações em que a mulher se podia encontrar no teatro de operações, sob os mais variados aspectos, as fontes não são tão escassas. Respigo aqui algumas passagens de dois casos diferentes: a mulher que participa activamente na guerra e a mulher que é vítima acidental das operações militares. Incentivos ao aprofundamento da pesquisa e análise sobre o tema, vertidas, como é habitual neste espaço, para português actual.

1. A mulher combatente (não enquadrada no exército)

Durante o ataque espanhol a Ouguela, em 1644, saiu a esta defensa uma mulher com um chuço, que pelejou nas trincheiras como qualquer soldado animoso; e se afirma que dos castelhanos mortos teve ela sua parte; foi ferida, e querendo-a um soldado retirar, o não consentiu, antes com maior ânimo se embraveceu e continuou a peleja. (ARAÚJO, João Salgado de, Successos Militares das Armas Portuguesas em suas fronteiras depois da Real acclamação contra Castella. Com a geografia das Prouincias, & nobreza dellas, Lisboa, Paulo Craesbeeck, 1644, pg. 225 v)

Há nesta vila [de Olivença] uma moça, criada no campo, chamada Maria; serve a um seu parente lavrador; esta moça, tocando a rebate, sai no campo armada de peito e espaldar e morrião, com clavina [carabina] nas mãos, em um cavalo de seu amo; vai a ele, e sendo na vila acode à trincheira com valor e bizarria.

É esta moça de tantas forças, que um capitão de pouco mais de vinte anos de idade me afirmou, que pegando-lhe ela de uma mão, para se livrar foi necessário querer ela largar-lha. (Aires Varela, Sucessos que ouve nas fronteiras de Elvas, Olivença, Campo Maior e Ouguela, o primeiro anno da Recuperação de Portugal, que começou em 1º de Dezembro de 1640 e fez fim em ultimo de Novembro de 1641, Elvas, Typografia Progresso de António José Torres de Carvalho, 1901, pg. 33)

2. A mulher enquanto vítima das operações militares

Após a tomada da vila de Oliva pelas forças portuguesas, em 10 de Janeiro de 1654, e de acordo com as capitulações acordadas entre sitiantes e sitiados, o soldado Mateus Rodrigues (Matheus Roiz) assistiu ao desfilar dos civis que abandonavam a vila, passando no meio das fileiras de soldados portugueses que ladeavam a estrada. Comoveu o soldado a situação em que muitas mulheres se encontravam: não poderei aqui encarecer as grandes lástimas que neste dia aqui vi, porque além destas mulheres se verem fora de seu natural [ou seja, da sua terra natal] para sempre, com suas fazendas perdidas, fazia tão mau tempo que não se podia bulir com a muita água que chovia, que quando elas começaram assim era logo pela manhã, em 10 de Janeiro, ao Domingo, de 1654, e até noite nunca jamais deixou de chover, que suposto que Jerez de los Caballeros estava dali duas léguas, [que era] para onde esta gente se havia de retirar, muita dela havia de ficar ainda fora (…). Estas mulheres (…) eram entre todas 704, fora meninos, que passavam de 1.000 crianças e as demais delas mui pequenas. E havia mulher que levava duas nos braços e três em o rabo (…) [ou seja, envoltas num xaile às costas], uns gemendo e as mais chorando. Que como iam carregadas de fato à cabeça e levavam muitas delas muitos mantéus e saias vestidas, e como chovia muito, enchia[m]-se-lhe os fatos de água e não podiam bulir, e a tudo isto nós ali parados (…) esperando a água a pé quedo, (…) que ainda que quiséssemos fazer algum bem áquelas mulheres, não podíamos. (…) E trazia o bom velho [o governador de Oliva] consigo diante as suas duas filhas donzelas, que eram bizarras [quer dizer, bonitas]. Mas vinham elas tão enfadadas, que vinham muito cobertas, e não davam lugar a que víssemos bem suas partes, que não era o tempo para elas se deixarem ver. (Manuscrito de Matheus Roiz, pgs. 385-386).

Imagem: “Homem oferecendo moedas a uma mulher”, 1660-1663, por Gerard Terborch, Museu do Louvre. Um militar (de cavalaria), uma jovem mulher, e a expectativa de uma transacção não inocente.