O contrato com os capitães de cavalos da província da Beira (1663-1664)

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A introdução do contrato com os capitães de cavalos em 1647 foi uma medida destinada a reorganizar e a conferir maior operacionalidade à cavalaria do exército português. Sobre este assunto foram já publicados artigos aqui, aqui e aqui. Inicialmente só abrangeu a cavalaria do exército da província do Alentejo, por ser aí mais numerosa e mais necessária. Após a chegada do Conde de Schomberg a Portugal, o contrato foi alargado aos outros exércitos provinciais. A medida foi tomada para travar uma reorganização mais profunda que o Conde tinha pretendido: a implementação do sistema regimental, que poria fim aos privilégios dos capitães de cavalaria, principalmente à sua ampla autonomia na condução da guerra de saque e pilhagem. No caso vertente, o contrato com os capitães de cavalos da Beira foi objecto de uma consulta ao Conselho de Guerra em 1664, retomando as propostas e contra-propostas do ano anterior.

Em 21 de Março de 1663, uma carta régia dirigida ao mestre de campo general Pedro Jacques de Magalhães mandava aplicar o contrato às companhias de cavalos do exército daquela província, à semelhança do que se fazia com as do Alentejo. Os capitães e o comissário geral D. António Maldonado protestaram, tendo lavrado uma petição ao Rei, em 22 de Setembro de 1663, que foi vista pelo Conselho de Guerra, juntamente com outras cartas particulares, incluindo a do próprio comissário geral. É sobre este conjunto de cartas que se pronuncia o Conselho de Guerra em 19 de Fevereiro de 1664, nos seguintes termos:

Dado que os capitães de cavalos e o Conselho de Guerra não concorreram com o seu consentimento neste contrato, (pois fora imposto e não negociado, ao contrário do do exército do Alentejo), não era de crer que os oficiais da cavalaria estivessem de acordo com o dito contrato sem se lhes dar palha para os cavalos e sem haver dinheiro pronto para a contribuição do contrato, como se pratica no Alentejo.

O Conselho foi de parecer que se devia procurar fazer com que, dos lugares da província da Beira, se acudisse com palha para sustento da cavalaria, que se trouxesse para as praças onde assistisse a cavalaria e às casas que servissem de depósito, despendendo-se com a conta e razão que conviesse, “porque noutra forma nunca os oficiais da cavalaria podem ser obrigados às condições dele, faltando-se-lhe com estas”. Já quanto ao pedido de que se levasse em conta os cavalos que morressem nas marchas, o Conselho deu parecer negativo, devendo ser indeferido para que não se desse exemplo que poderia ser muito prejudicial ao serviço de Sua Majestade; “porém os que constar aos oficiais da fazenda que, respeito das largas marchas de Alentejo, Minho e Trás-os-Montes, morreram, e não por culpa de seus oficiais e soldados, sempre será justo se lhe levem em conta, ou faça toda a equidade, como aponta a contadoria geral na sua informação, e o Conde do prado na carta junta, como também o fez por outra o Conde de São João”.

Dando despacho à consulta, o Rei escreveu “Como parece” em 7 de Março de 1664.

Anexa à consulta e datada de 22 de Setembro de 1663, a carta dos capitães de cavalos do exército provincial da Beira é do seguinte teor:

O comissário general e capitães de cavalos da Província da Beira, que Vossa Majestade foi servido mandar por carta de vinte e um de Março de 1663 ao mestre de campo general Pedro Jacques de Magalhães, a cujo cargo está o governo das armas da dita Província, fizesse dar à execução a entrega das tropas, por arca e contrato, a eles, oficiais, na forma em que as têm os capitães da Província do Alentejo, e porque eles, suplicantes, sem serem ouvidos e perguntados para aceitarem o dito contrato, foram obrigados à dita entrega, que aceitaram por ser em tempo que estavam para marchar à província de Alentejo e não perturbarem o socorro com dilações de réplicas.

Pedem a Vossa Majestade, em consideração do amor e bom zelo com que servem, lhe faça Vossa Majestade mandar ver as razões que apontam em o papel que oferecem e remediar o dano que recebem em o contrato.

Em os últimos de Abril acodem os socorros da Província da Beira à do Alentejo, com que ficam os oficiais da cavalaria sem dar verde às suas tropas [colocar os cavalos das companhias em pastagens], e não só perdem o lucro que podiam tirar em lho dar por sua conta, e como o não comem, lhe morrem de enfermidades e com o trabalho de socorrer as Províncias aonde os mandam a melhora dos cavalos. Por que [pelo que] Vossa Majestade deve mandar se lhe levem em conta os que morrerem nestas marchas, derrogando o capítulo tantos do regimento, ou dando-se-lhe cada ano uns tantos cavalos mortos.

A falta do assento da palha diverte a condição do contrato e estilo que se guarda no Alentejo, porque Vossa Majestade foi servido mandar se fizesse a entrega das tropas, o que vem a ser em prejuízo deles, oficiais, por lhe faltar grande parte do ano a palha, com que enfraquecem os cavalos e ficam nisto incapazes de serviço.

A consignação de dinheiro à província nem é bastante para trigo e cevada e primeiras planas, com que lhe não podem pagar a contribuição do contrato, e faltando esta não é possível que eles, oficiais, metam cavalos nas tropas, e diminuindo o valor da entrega nem poderão vencer a dita contribuição da arca e contrato, nem crescerá o número da cavalaria. Por que Vossa Majestade deve de mandar fazer assento de palha como se estila na Província do Alentejo, e nomear consignação certa de dinheiro para satisfação do vencerem com contrato, porque em outra forma não poderão eles, oficiais, faltando-lhe com as condições do contrato, observá-lo.

Espera pelo bem que servem da Real grandeza de Vossa Majestade que, informando-se Vossa Majestade da verdade, lhe faça mercê de mandar compor e tomar meio capaz nesta matéria como mais convier ao serviço de Vossa Majestade. Guarde Deus a Católica e Real Pessoa de Vossa Majestade como todos havemos mister. Almeida, em 22 de Setembro de 1663.

E assim também os mantimentos que correm por conta dos capitães da Província de Entre Douro [e Minho] o ofereciam até agora.

(assinaturas de capitães): João Soares de Almeida, Fernão Cabral, Paulo Homem e mais dois ilegíveis.

Fonte: ANTT, CG, Consultas, 1664, mç. 24, consulta de 19 de Fevereiro de 1664, com anexos relativos a 1663.

Imagem: Pieter Meulener, dois óleos com temas de cavalaria seiscentista.

Breves biografias (1) – um açoriano na batalha de Ameixial: o mestre de campo Sebastião Correia de Lorvela

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Quando comandou o terço de Cascais na batalha de Ameixial em Junho de 1663, o mestre de campo Sebastião Correia de Lorvela era já um veterano nas lides da guerra. Ainda no tempo da Monarquia Dual, em 1638, fora provido no posto de capitão de infantaria de uma companhia que ele próprio levantara nas ilhas dos Açores, e com ela partiu para o Brasil na armada do Conde da Torre (D. Fernando Martins de Mascarenhas), na demonstração de força contra a ocupação holandesa.

Entre 1642 e 1643 andou embarcado, continuando a comandar a sua companhia de infantaria. Na campanha de 1643 é referido como capitão de uma companhia de cavalaria durante os combates que ocorreram no Alentejo e Extremadura espanhola, participando nas acções de Villanueva del Fresno e Alconchel, entre outras. Seria uma promoção em relação ao posto que ocupava anteriormente, todavia regressou ao comando de uma companhia de infantaria a bordo da Armada.

A promoção a mestre de campo viria em 1657, sendo provido no comando de um terço de infantaria que recrutou nas ilhas dos Açores. No cerco de Badajoz em 1658 caiu prisioneiro dos espanhóis, tendo permanecido 8 meses cativo em Madrid. As ocasionais trocas de prisioneiros trazem-no de novo a Portugal. Em 1662 é mestre de campo do terço de Cascais, que durante as épocas de campanha no Alentejo se alojava em Estremoz. Participou na inglória campanha de 1662, durante a qual muitas praças de armas foram tomadas pelo exército espanhol comandado por D. Juan de Áustria. Em 1663 comandou o seu terço na batalha de Ameixial. Foi general da artilharia do Brasil ad honorem, uma patente que acumulava com a de mestre de campo, mas que era meramente honorífica.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Secretaria de Guerra, Livro 27.º, fls. 81 v- 82 v, registo de 10 de Outubro de 1663.

Imagem: Cena de combate, óleo de Pieter Meulener (pormenor).

Há 350 anos… Notas sobre a campanha do Alentejo de 1663 – 4 de Junho

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No dia 4 de Junho, Vila Flor e Schomberg ficaram a saber que as tropas enviadas a Alcácer eram já recolhidas e as outras vinham pelo caminho de Montemor, a fim de se desviarem do exército, sendo impossível interceptá-las. Assim, nesse dia foi o exército português tomar quartel a Vale de Gramaxo, da outra parte do rio Degebe, contra Montoito, a 1 légua de Évora, sítio com comodidades para dispor um exército.

 Na tarde de 4 de Junho saiu de Évora o exército inimigo em batalha, nesta forma:

Vanguarda, 9 esquadrões, o 1º a cargo dos mestres de campo D. Anielo de Guzmán e D. Luís de Frias; o 2º a cargo de D. Gonzalo de Córdova e do Conde de Escalante; o 3º ao de D. Pedro da Fonseca e D. Juan Barbosa; o 4º ao de D. Rodrigo Moxica; o 5º ao de D. Ignacio de Alatriva, Rui Pires da Veiga e D. Joseph de Pinóz; o 6º ao Conde de Charni e D. Francisco Franqui; o 7º ao Barão de Carandolet e ao Conde de Losestain; o 8º ao Conde de Sartirana e D. Fabrizio Rosin; o 9º ao de D. Camilo de Dura e D. Márcio Origlia.

A 2ª linha repartia-se em 8 esquadrões. Destes, os comandantes eram: o 1º, os mestres de campo D. Lopo Gomes de Abreu e D. João Henriques; o 2º, D. Diego de Alvarado e Bracamonte e o terço de D. Francisco Tello, que não veio nesta campanha; o 3º de D. Juan de la Carrera; o 4º, D. Baltazar de Orbina e D. Diego Fernandez de Vera; o 5º de D. Francisco de Araújo, D. Gil de Villalva e os franceses de D. Jacques de Gomin; o 6º, Barão de Casestain; e por fim, o do Marquês de Cazin (um dos esquadrões é omitido). Total da infantaria: 15.612 oficiais e soldados.

 Os lados desta infantaria cobriam 20 batalhões por cada costado da 1ª linha, e 19 da segunda. A reserva constava de 12, quatro por cada lado e quatro atrás da bagagem. As companhias das guardas estavam entre as alas da infantaria. No corno direito as de D. Juan de Áustria, no esquerdo as do Duque de S. German. Governava a cavalaria da 1ª ala do corno direito o general D. Diego Caballero de Velásquez, o tenente-general da cavalaria D. Diego Correa e os comissários gerais D. Miguel Ramona, D. Luís de Sey e D. António Montenegro. O corno esquerdo da 1ª linha estava a cargo dos comissários gerais Juan Angelo Valador e D. Francisco de Aguiar, à ordem do tenente-general da cavalaria D. Alexandre Moreira. À 2ª ala do corno direito assistia o tenente-general da cavalaria D. Belchior Portocarrero, com os comissários gerais D. Juan de Novales, D. Joseph de la Reatagui e D. Juan de Ribera. A 2ª ala do corno esquerdo tinha a seu cargo o tenente-general da cavalaria D. Juan Jacome Mazacan e o comissário geral D. Hierónimo Garcia. As reservas estavam a cargo dos comissários gerais D. Carlos Tasso e D. Juan Cortés de Liña. Eram 94 batalhões com 6.300 cavalos. Havia 15 peças de artilharia.

O exército espanhol não fez mais do que avistar o português nos altos do Degebe, em cujas colinas colocou a sua artilharia e quebrou o sossego da noite com os seus tiros.

Fonte: António Álvares da Cunha, Campanha de Portugal pella provincia de Alemtejo, na Primavera do anno de 1663, Lisboa, Officina de Henrique Valente de Oliveira, 1663, pgs. 36-39.

Imagem: “Escaramuça de cavalaria”, óleo de Pieter Meulener.

A situação militar na província da Beira em Junho-Julho de 1645

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Em 10 de Julho de 1645, o Conselho de Guerra era informado acerca da situação militar na província da Beira, através de um conjunto de cartas enviadas pelo governador das armas, D. Fernando Mascarenhas, 1º Conde de Serém, e do tenente de mestre de campo general João Lopes Barbalho. Na verdade, pelo menos uma das cartas foi colocada no maço em data posterior à data da consulta, visto ter sido remetida de Penamacor em 8 de Julho.

Vejamos como relatava o Conde a situação na província que governava, transcrevendo a sua carta de 25 de Junho de 1645, remetida de Salvaterra do Extremo:

(…) O tenente de mestre de campo general me disse havia de fazer a Vossa Majestade a relação da entrada do inimigo em Portugal, e da festa que ontem nos veio fazer com grande quantidade de cavalaria e duzentos e sessenta infantes; eu estou informado de eles haverem trazido pouca pilha [o Conde quer dizer que levaram para Espanha pouca pilhagem], e ainda essa que trouxeram têm seus donos a culpa, porque tendo aviso de que o inimigo juntava poder, os avisámos que estivessem alerta, e em que tirando uma peça e fazendo facho era sinal que o inimigo estava em Portugal. Assim que chegou aviso, que era uma para as duas, depois da [sic] com grande cuidado tirou e fez facho e nem tanto daí a meia hora, pela manhã, tirámos outra peça a que nos respondeu Idanha, com que fiquei descansado e imaginando que tudo havia recolhido. Na mesma manhã nos trouxeram duas línguas e soubemos delas haverem passado as tropas de Alentejo a noite de sexta-feira e naquela haverem vindo duas para a Zarza, bem entendi eu a peça, vieram-nos tocar arma (…) de que eu zombei bem, e não houve lugar de lograrem os zarzos seu desejo. Dizem estes homens que dizem em Alcântara que temos grande governo, se nós nos víramos com poder não haviam eles de fazer tantas pilharias, por mais que a sua gente cobrisse estes campos, que pela conta eram mais de seiscentos homens de cavalo, afora os que iam com a tropa da pilha que era de dragões. E dizem uns muchachos, que vinham tangendo as ovelhas, que vinham desarmados, dizendo que os haviam enganado os sarcenhos [naturais de Zarza la Mayor] que não levam nada, o que eu posso assegurar a Vossa Majestade é que se nós tivéramos boa artilharia, que lhe havíamos de fazer muito dano, mas não deixámos de lhe fazer algum, de um tiro dou eu fé, que derrubou um do cavalo, e também uma emboscada que lhe tinha o tenente-general feita lhe houvera de matar alguns, se antes de eles chegarem a tiro uma pessoa, que ele deve dizer a Vossa Majestade, não mandara disparar e descobrir a gente, alguns lhe haviam de ficar, como na refrega passada ficaram, que dizem esses línguas que lhe matámos na refrega passada muita gente, e entre eles um capitão de cavalos e um tenente e dois dos principais da Zarza; eles não podem ter aqui muito esta gente e devem ir dando por todas as nossas fronteiras, vendo se podem fazer algumas pilhas [isto é, pilhagens], e não era mau avisar Vossa Majestade a Castelo Rodrigo e a Alfaiates e a Almeida que recolham os gados, que nunca a prevenção fez mal (…).

Na mesma data, o tenente de mestre de campo general João Lopes Barbalho enviou de Salvaterra uma outra carta, com teor muito semelhante à do governador, mas num português mais escorreito. Dois dias mais tarde, o Conde de Serém expedia outra carta, dando conta de que Salvaterra do Extremo se encontrava cercada pelo inimigo. Uma outra carta, remetida de Penamacor em 1 de Julho, dava conta da situação militar na província e referia que o tenente de mestre de campo general se encontrava em Idanha-a-Nova com 200 infantes pagos e 200 cavaleiros. A quinta e última carta, incluída no lote dos anexos em data posterior à da consulta, refere que o inimigo, devido à superioridade numérica da sua cavalaria, se encontrava senhor da campanha e não se lhe podia impedir as pilhagens, tendo realizado algumas entradas.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1645, maço 5, doc. nº 81, consulta de 10 de Julho de 1645 e cartas anexas.

Imagem: Combate de cavalaria (pormenor), óleo de Pieter Meulener.

Relação da tomada do forte de Telena e recontro dos exércitos junto ao mesmo lugar (Setembro 1646) – um documento inédito, 2ª parte

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Concluindo a transcrição da relação da campanha do forte de Telena, apresenta-se agora a segunda e derradeira parte:

Rendido o forte, nos retirámos todos ao quartel e o Conde de Alegrete, general, se resolveu em desmantelá-lo sem parecer de nenhum cabo, que era o que nos prejudicava a retirada, porque com o forte guarnecido não tinha a retirada nenhum perigo. Enfim desmantelou-se e trouxe-lhe tudo o que tinha, que de tudo tinha muito, em que entravam duas peças de artilharia de bronze muito boas, de doze libras, uma que havia sido nossa da ponte [de Nossa Senhora da Ajuda; ou de Olivença, como era então mais conhecida] e outra sua. E passado aquele dia em que o inimigo se havia aquartelado com o seu exército pouco mais de tiro de canhão do nosso, pareceu a todos que nos retirássemos, pois se havia feito a facção que nos obrigava a passar daquela parte, e que o exército não era capaz de passar adiante, nem havia sido nossa tenção outra que render Telena e tornar a Portugal; além de que também nos obrigava a fazê-lo termos o inimigo tão vizinho e tão poderoso na sua terra.

Sobre a marcha e a hora de marchar houve vários pareceres, e enfim se ajustou que se fizesse a retirada de dia com toda a bizarria, por reputação das armas de Sua Majestade. Marchou toda a bagagem aos 18 deste pela manhã com os terços que lhe tocou, ficando de retaguarda os mesmos que haviam vindo de vanguarda, sem mais diferença que levar Dom Sancho Manuel o corno esquerdo, e o direito Diogo Gomes [de Figueiredo, pai] e Francisco de Melo no meio. Marchava também de retaguarda toda a artilharia e cavalaria, e vendo-nos o inimigo retirar, suposto que já tão tarde que só os da retaguarda estavam para pelejar, por[que] tudo o demais ia já junto do rio, e muitos passando-os, saiu logo com sua cavalaria, e atacando com algumas tropas as nossas de escaramuça ainda antes de se descer a colina que baixa para o rio, com alguns tiros que se lhe fizeram com a artilharia, se retirou vergonhosamente, sem fazermos até então nada com a infantaria.

Era a tenção do inimigo entreter-nos para se vir chegando com a sua infantaria e com a artilharia, mas como se lhe entendeu, ainda que tarde, se resolveu o Conde de Alegrete no que todos os oficiais lhe gritavam, mas já em tempo que o inimigo vinha marchando com todo o cuidado por nos alcançar, porque reconhecia que estavam só daquela parte os três terços da retaguarda com a cavalaria e parte da artilharia. Marchávamos nós também em boa ordem, mas com cuidado a chegar-nos à ribeira, e chagados a ela virámos as caras, incorporando-se os três terços a tempo que o inimigo investia com toda a sua vanguarda a nossa cavalaria e a vinha atropelando, trazendo-a mais que de passeio até onde estavam os terços, de quem o inimigo recebeu tão bizarras cargas que tornou a voltar com perda de muitos. Assistia o mestre de campo general, persuadindo aos de cavalo que car[re]gassem ao inimigo, e nessa volta o fizeram alguns muito honrados, mas não tantos como eram necessários, e tornando, como eram poucos, a ser rebatidos e car[re]gados do inimigo que se vinha avançando com tudo, lhe tornaram a dar os nossos terços outras tão vivas rociadas que nem mais nem menos os tornaram a fazer desistir do intento. Caminhavam e pelejavam as usas mangas, mas sempre largaram o campo às nossas. Neste tempo sempre o general da artilharia andou valorosíssimo, porque sempre se achou muito empenhado, e da mesma maneira o mestre de campo general. Estavam os terços com notável firmeza e não se lhe[s] arrimava poder que não rechaçassem, até que da quarta vez que o inimigo deu com sua retirada lugar nos mandaram retirar, o que se fez com mais pressa do que os mestres de campo queriam. Contudo o inimigo não tornou a carregar, e passado todo o nosso exército desta parte sem perdo, nos pusémos então a canhonearmo-nos com a artilharia de parte a parte, despropositadamente, porque nos havíamos retirado até então com muito pouca gente morta, e então nos mataram alguma sem ser necessário. Dali marchámos até estes olivais em boa forma, e daqui passámos a Juromenha e tornámos para este posto, e para quê não sei eu nem o alcanço. Do que resultar ao diante darei conta. Em 26 de Setembro de 1646.

Como se pode ver, a relação – ou relatório, mais propriamente – está incompleta, embora trate do essencial da acção. Pela maneira como está redigida, a capacidade de comando de Matias de Albuquerque, Conde de Alegrete, não sai nada prestigiada, em contraste com os seus rivais, o mestre de campo general Joane Mendes de Vasconcelos e o general da artilharia André de Albuquerque Ribafria. De qualquer modo, a narrativa de Mateus Rodrigues sobre os acontecimentos, bem mais viva e pormenorizada e que já aqui foi publicada (veja-se a hiperligação para a série na primeira parte deste artigo), corrobora a fraca apreciação que os subordinados de Matias de Albuquerque tinham do seu comandante.

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Relações manuscriptas de Portugal, desdo anno de 1643 athe 1646″, fls. 76 v – 78.

Imagem: Combate de cavalaria, óleo de Pieter Meulener.

Relação da tomada do forte de Telena e recontro dos exércitos junto ao mesmo lugar (Setembro 1646) – um documento inédito, 1ª parte

(c) Royal Armouries Museum, Leeds; Supplied by The Public Catalogue Foundation

Entre Julho e Agosto de 2010 foi aqui publicada uma série de artigos acerca da tomada de Telena pelo exército do Alentejo, comandado por Matias de Albuquerque. Embora composta a partir de várias fontes, a série privilegiava a narrativa do soldado Mateus Rodrigues, que participou naquela campanha. Veja-se aqui o prólogo, a primeira, a segunda e a terceira partes dessa série.

O documento manuscrito português que a seguir se trancreve diz respeito à mesma campanha e faz parte do acervo da Biblioteca Nacional de Madrid, com o códice mss. 8187. Tem por título Relação da tomada do forte de Telena e recontro dos exércitos junto ao mesmo lugar e trata-se de uma relação da operação, provavelmente feita por um oficial ou clérigo que integrou ou acompanhou o exército.

Entrámos em Castela para sitiarmos o forte de Telena com tão poucas notícias do inimigo, que o imaginávamos com três até quatro mil infantes e mil e oitocentos cavalos. Persuadimo-nos que o inimigo nos viria a impedir a passagem de Guadiana, e assim marcharam de vanguarda, para tomarem o passo, mil mosqueteiros de todos os terços à ordem dos sargentos-mores dos terços dos mestres de campo Dom Sancho Manuel e Francisco de Melo. Acompanhava-os toda a cavalaria, e nesta forma se tomou o passo, e chegado o exército que marchava bem formado em batalha, passou todo. Levava o corno direito da vanguarda o terço do mestre de campo D. Sancho Manuel, e o esquerdo o de Francisco de Melo, e o de Diogo Gomes [de Figueiredo, pai] no meio, todos três aparelhados, e nesta forma seguindo os demais onde cada um lhe tocou. Marchámos aquele dia até aquartelarmos, que se fez com boa ordem, formados na mesma batalha. E ao seguinte dia, formados na mesma ordem nos fomos sobre o forte. Aquartelou-se o exército em bom sítio e forte, suposto que distante mas de tiro de canhão, mandaram-se-lhe tomar os postos por uns dos quinhentos mosqueteiros a cargo de D. Francisco de Castelo Branco com o general da artilharia, e vendo que, ou por poucos não eram de grande efeito, ou por serem de vários terços e não terem consigo seus oficiais não faziam nada, se ordenou a D. Sancho Manuel que avançasse com o seu terço, com que se lhe deu tão boa manhã, e se lhe fez tão boa diligência, que quando amanheceu se achavam as mangas de Dom Sancho no fosso, quebrando a estacada. Pelejava o inimigo bastantemente, mas as cargas da mosqueteria de Dom Sancho o reduziu a que nehum ousava a chegar à muralha, e vendo que lhe fazíamos brecha, e que pela parte de Dom Sancho se andava já com as espadas à sua vista, se resolveu a render-se, fazendo uma chamada. Os partidos [ou seja, condições de rendição] foram: que sairiam com suas armas e bagagens e que estariam em Portugal até nos recolhermos. Não estavam ainda acabadas as capitulações quando o inimigo vinha saindo de Badajoz com o seu exército para socorrer o forte, que não havia ainda vinte e quatro horas que o tínhamos atacado, e que lhe tínhamos posto as baterias não havia seis horas. Reconheceu o inimigo, como não [a]tirávamos, que estávamos senhores da praça, e reconhecemos nós o engano com que ali nos meteramos, porque víamos muitos esquadrões de infantaria e de cavalaria ao inimigo, mais do que lhe imaginávamos, e julgámos logo por coisa milagrosa o haver-se-nos rendido o forte, porque a não o fazer naquela hora, não o fizera vendo que era socorrido, e se o não fizera, não sabemos como nos fora possível o retirarmos, porque reconhecíamos ao inimigo nove mil infantes e três mil cavalos, que é o com que se achava, com sete peças de artilharia.

(continua)

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Relações manuscriptas de Portugal, desdo anno de 1643 athe 1646″, fls. 76 v – 78.

Imagem: Artilharia e infantaria, óleo de Pieter Meulener, período da Guerra dos 30 Anos (1618-1648).

Material de guerra existente nas praças de Riba Coa em Março de 1657

Duas cartas de D. Rodrigo de Castro para o Conselho de Guerra, datadas de 4 e de 11 de Março de 1657, dão conta da situação das praças do partido de Riba Coa, que o futuro Conde de Mesquitela governava, e do material de guerra aí existente.

Havia à época 42 peças de artilharia naquele partido militar, com o seguinte detalhe:

Artilharia para sair em campanha:

– 5 meios-canhões de bronze que necessitavam de reparos, com suas guias e carros matos. Com a ferragem que havia nos velhos, podiam ferrar-se três reparos com dois pares de rodas, e podiam consertar-se, com pouco custo, as rodas para as guias e um carro. Faltavam demais sobressalentes e tabuões para as respectivas esplanadas (posições preparadas onde eram colocadas as peças) e calabreses grossos e miúdos para serem tiradas em campanha.

– 4 quartos de canhão de bronze, para os quais eram necessários 4 reparos com guias e outros tantos carros matos. Havia reparos nos velhos para três reparos com rodas, e havia dois pares delas sem ferragem. Faltavam-lhe sobresselentes, tabuões para as esplanadas e calabreses miúdos e grossos para estas peças serem tiradas em campanha.

– 4 falconetes de bronze. Havia ferragem para os reparos, rodas e guias, era necessário sobressalente, tabuões para as esplanadas e calabrês para saírem em campanha.

A artilharia que não estava prevista sair em campanha também era referida em detalhe:

– Para 2 colubrinas de bronze, faltava tudo o que não fosse ferragem para um reparo com as respectivas rodas.

– Para 1 colubrina de bronze faltavam rodas e ferragem.

– Para 1 meio-canhão de bronze, havia ferragem para o reparo e rodas.

– Para 6 sacres de bronze, havia somente ferragem para três reparos com as respectivas rodas.

– Para 2 meios-canhões de ferro havia ferragem para um reparo e rodas.

– Para 17 peças de ferro, havia ferragem para 5 reparos e rodas.

Necessitava-se, para as peças que haviam de estar na muralha, de madeira para guaritas, e de cocharas, lanadas e soquetes para todas.

Material de guerra existente nos armazéns

Nos armazéns da província havia 117 arcabuzes consertados, 770 piques, 230 forquilhas, 720 frascos, 630 bandolas de mosquete e arcabuz, e 30 de carabinas. Alguns dos frascos estavam desconsertados, e havia 144 arcabuzes e 333 mosquetes desconcertados (ou seja, avariados ou truncados). Para a infantaria havia 104 corpos de armas, mas nenhuns para a cavalaria, nem carabinas e pistolas, do que estava a cavalaria muito necessitada. Por isso, D. Rodrigo de Castro solicitava o envio de 200 carabinas, 150 pares de pistolas e 200 corpos de armas.

Outras necessidades: 1.513 quintais e 116 arráteis de pólvora, 25.200 balas, e para os 9.000 homens que haviam de guarnecer as praças, à razão de meio arrátel por dia, e a dois arráteis por todo o tempo dos dois meses que haviam de sair em campanha, eram precisos 1.210 quintais e 76 arráteis de pólvora; e de balas sorteadas de outros tantos, e o mesmo de morrão, para o que só havia nos armazéns 211 quintais de pólvora, 116 de balas sorteadas, 225 de morrão, 2.011 balas de artilharia. Destas, escrevia D. Rodrigo, havia no Fundão grande quantidade, embora ainda não soubesse ao certo o número de balas.

Na segunda carta, de 11 de Março, dá conta D. Rodrigo de Castro que se preparava para reunir os 3.000 infantes e 200 cavalos que a Coroa mandou estarem a postos para acudir ao Alentejo, dos quais infantes, no entanto, não poderiam ir só os pagos e auxiliares, porque todos juntos não perfaziam os 3.000 necessários. Seriam necessários 4.500 infantes para guarnecer as 9 praças principais, acasteladas, que havia na raia, com fortes e artilharia, e de um pé de exército de 3.000 ou 4.000 homens.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, mç. 17, cartas anexas à consulta de 28 de Março de 1657.

Imagem: “Combate de cavalaria” (pormenor), pintura de Pieter Meulener.

Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645) – parte 2


Boa parte das terras que no século XVII serviram de palco à incursão que aqui é relatada estão hoje submersas, devido à construção da barragem do Alqueva, como se pode verificar pela imagem retirada do Google Earth que acima se reproduz. Mas retornemos à narrativa, interrompida no momento em que 80 infantes e 17  cavaleiros da ordenança montados em éguas saíram de Monsaraz.

Se foram detrás da serra de Gaspar Dias, aonde estiveram com determinação de esperar o inimigo (se por ali viesse). Depois de um bom espaço de tempo se tornaram todos a subir a serra, porque lhe chegou um corredor nosso novo, que o inimigo vinha marchando pela estrada de Évora para passar entre a serra e as vinhas e que eram muitos, no que se certificaram com a vista e temeram com muita razão, porque vinham cinco ou seis castelhanos para cada infante nosso. E assim se foram retirando pelo cume da serra para pé da atalaia, aonde fizeram alto, e ouviu-se uma voz de um soldado bisonho, e disse “senhores, o poder do inimigo é muito grande, mostremo-nos neste alto espalhados para que pareçamos muitos”, o que se executou com tão bom acerto que foi total perdição do inimigo e remédio nosso. Neste tempo vinha o inimigo passando pelo Monte do Duque com três tropas de vanguarda e seus corredores diante, e contra o Monte do Cazevel e a aldeia dos Moinhos. Fizeram alto as três tropas, aonde estiveram grande espaço de tempo indecisos, porque seus corredores lhe levaram a nova que haviam visto da aldeia (onde haviam estado) muita gente na serra e ao pé da atalaia que era nossa. Na detença que fizeram deviam de mandar aviso às quatro tropas que vinham de retaguarda na acumada do Monte do Duque, donde pareciam os campos cobertos de gado, que era muito. Deviam tomar resolução de virarem com temor da nossa gente, parecendo-lhe que era muita e que seria ali vinda de Olivença, porque perguntavam a um prisioneiro quantas léguas havia daqui àquela praça; e dada a resposta pelo prisioneiro, viraram todo o gado e a cavalaria pela de Mísia Nunes, e pelo Barrocal da Morgada, e Santa Margarida, vindo sair ao Monte do Caminho e ao de Gaspar Pereira, aonde chegaram Baltasar Limpo, Manuel Tenreiro e Fernão Rodrigues e o Garção, e o João Nunes e o Tourillo, e Diogo Mendes dos Abandeiros, soldados de cavalo da ordenança desta vila e termo, que iam em seguimento do inimigo. E no dito Monte de Gaspar Pereira tiveram um[a] gentil escaramuça com uma pouca de gente que ali estava, dando-se muito boas cargas por espaço de muito tempo, e saíram também os castelhanos a dar-lhas, até que largaram o posto e se foram seguindo os mais, e não pararam ainda aqui porque se foram [a]trás [d]eles, e nas matas tiveram outra mais travada. E é certo que os desviaram da adega e horta do Licenciado Marcos Esteves, sendo os castelhanos mais de vinte e os nossos os sobreditos.

Os nossos da serra, vendo o muito poder do inimigo, estavam perplexos, sem saberem o que haviam de fazer na parada que o inimigo fez à vista deles. Disse então um dos mais atentados soldados  dos nossos, que era grande temeridade estarem ali com tão pouca gente, porque se o inimigo se resolvesse a vir por aquela parte e os [a]cometesse, que mal lhe poderiam resistir. Que o acerto era com grande brevidade retirarem-se para a vila, porque ficaria nela muito pouca gente, e que poderiam lá ser necessários. O capitão António Pereira de Oliveira, parecendo-lhe bem o conselho, despachou logo um de cavalo ao capitão-mor, dando-lhe conta do poder que era muito superior ao nosso, que se lhe parecesse retirarem-se para a vila o fariam. Partido este recado, viram que o inimigo virava para baixo, e sem esperarem resposta do capitão-mor se veio a nossa infantaria, com alguns de cavalo, pelo caminho da vila, e dela mandou segundo recado o dito capitão ao capitão-mor, que o inimigo ia virado para passar o rio de Guadiana por baixo desta vila, que lhe desse sua mercê licença para vir ocupar um porto, por onde se entendia havia de passar o inimigo. E logo, sem esperar resposta, se pôs a caminho com grandíssima pressa por chegar ao dito porto primeiro que o inimigo. E o dito capitão-mor lhe mandou recado, que fosse em boa hora.

(continua)

Fonte: Relação da entrada dos Castelhanos no termo de Monçaras (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 45 v-49)

Imagem: Em cima, “Escaramuça de cavalaria”, pintura de Pieter Meulener, com permissão para reprodução para fins não comerciais a partir deste site. Em baixo, a região onde se desenrolou parte da acção aqui narrada, hoje em dia (imagem Google Earth).

A campanha do forte de Telena em 1646 – prólogo: a emboscada na Atalaia da Terrinha (Março de 1646)

A campanha de 1646, executada a partir da província do Alentejo, foi a última a ser levada a cabo em vida de D. João IV. Seria preciso esperar mais de 10 anos, e muito por força da iniciativa espanhola, para que a fronteira de guerra alentejana fosse, de novo, palco de grandes acções militares.

Dessa campanha de 1646 ficou célebre o assalto ao forte de Telena. Um episódio bélico frequentemente recordado no historial de cada indivíduo que nela participou, em especial entre os oficiais. Sempre que alguém era proposto para a ocupação de um posto ou cargo, invariavelmente apresentava na resenha da sua carreira o assalto ao forte de Telena. Do mesmo modo, em cartas patentes mais alongadas, o oficial promovido via ser mencionado esse acontecimento que, à época, foi considerado muito relevante. É do assalto ao forte de Telena que esta pequena série de artigos se ocupará. Mas, em jeito de prólogo, principiaremos por tomar conhecimento de um episódio corriqueiro da guerra de fronteira, igual a tantos outros e tantas vezes repetidos. Este, todavia, teria implicação na alteração do comando da cavalaria para campanha que se avizinhava.

A ideia de atacar o forte que os espanhóis tinham construído em Telena, localidade que os portugueses haviam atacado e queimado em 1643, surgira em finais de 1645. Francisco de Melo escrevera em Novembro desse ano ao Rei uma carta onde referia o episódio de Alcaraviça (já aqui tratado numa série de artigos, os principais dos quais da autoria do Sr. Santos Manoel), e nela dizia que depois deste encontro, veio o Castelhano ao seu lugar chamado Telena, légua e meia desta praça [de Elvas], que estava arrasado por nós, e nele fez um forte onde tem perto de 100 infantes e artilharia, e uma tropa de cavalos; depois deste feito, se retirou à nossa vista e nos derrubou uma atalaia nossa, depois dos defendentes, que eram só 12, pelejarem o que puderam e matarem alguns do inimigo, com esta facção se retirou, e nós agora queremos ir, e cuido que permitirá Deus nos paguemos em dobro. (Cartas dos Governadores da Província do Alentejo…, vol. II, pg. 103, carta de 22 de Novembro de 1645). Entre os objectivos da campanha de 1646 estaria, pois, o recém-construído forte de Telena.

Passou o Inverno, cujo rigor impedira a realização de muitas incursões predatórias. Em Março de 1646, quando se já se amanhavam as terras e os rios estavam capazes de ser vadeados, veio o inimigo armar emboscada à cavalaria que fazia a ronda habitual a partir da praça de Elvas. Conforme refere D. Luís de Meneses, à cavalaria que se alojava em Badajoz se uniram algumas companhias dos quartéis vizinhos, e juntos mil cavalos se emboscaram no rio Caia, na parte em que entra no Guadiana. Foi sentido o rumor das tropas das vigias que de noite ficavam sobre os portos dos rios; vieram com diligência dar parte a Joane Mendes [de Vasconcelos, governador das armas]. Logo que amanheceu, mandou sair o comissário geral da cavalaria D. João de Ataíde, com 400 cavalos que assistiam em Elvas. (Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, edição on-line (facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro IX, pg. 162).

A partir daqui, espreitemos as memórias de Mateus Rodrigues, o soldado da companhia de D. João de Ataíde que participou nessa operação.

(…) Naquele tempo estavam poucas tropas [portuguesas em Elvas], que estavam muitos em Vila Viçosa e em Estremoz dando verde aos cavalos, e não havia cabo nenhum da cavalaria na cidade mais que o comissário, que era Dom João de Ataíde, que na paz não há ninguém que tenha melhor voto para a disposição da guerra, mas lá na campanha, à vista do inimigo, era outra coisa. (…) Assim como o inimigo teve junta a sua cavalaria, se veio de Badajoz uma noite até à ponte do Caia onde estavam as duas sentinelas nossas. (…) [O inimigo formou] uma partida de 20 cavalos com um cabo e [o seu comandante] mandou que entrasse pela ponte e que se fosse emboscar dentro dos olivais de Elvas. (…) Assim que os nossos vigias da ponte sentiram passar os vinte cavalos, que logo os contaram, (…) metidos [os vigias] num bosque notável debaixo da ponte, (…) logo veio um deles dar aviso à cidade. (MMR, pgs. 125-126)

O objectivo da cavalaria espanhola era atrair a cavalaria da ronda portuguesa a uma emboscada. Dez outros cavaleiros deviam passar a ponte, prevendo (e bem) que outro vigia que por ali estivesse iria  rapidamente até Elvas dar o alarme. E foi isso precisamente que aconteceu. Já sem sentinelas portuguesas para dar conta da movimentação das tropas inimigas, passou o inimigo a ponte sem haver quem o sentisse, e marchou às vinhas da Terrinha, que ficam junto do Guadiana duas léguas de Badajoz, e como se viu nos barrancos, deixou-se estar ali com suas sentinelas à vista de toda a campanha, que se punham em cima de uns álamos mui altos que estão junto do Guadiana (…). (MMR, pg. 127)

Logo que Joane Mendes recebeu os avisos sobre a presença inimiga, mandou que D. João de Ataíde saísse com as tropas de cavalo, de forma a proteger à distância a companhia da ronda. Deviam ir até à Atalaia da Terrinha, naquela altura já destruída pelo inimigo, e se não houvesse nada de anormal, que regressassem a Elvas.

E assim como amanheceu saímos todos (…), e a companhia da ronda diante, fazendo o que era costume. E já estávamos todas as tropas em atalaia, que não eram mais de oito e mui pequenas, que não tinham mais de 200 cavalos, quando vem um batedor nosso, correndo, dizendo que uma partida do inimigo de 30 cavalos avançava aos batedores (…), mas que já já vinha pelo campo acima em retirada. (MMR, pg. 127) D. João de Ataíde mandou então o tenente Lopo de Sequeira, militar natural de Elvas com reputação de muito valente, que tomasse 40 cavaleiros escolhidos entre todas as companhias, e que com eles tentasse cortar a retirada à força inimiga; mas que a não seguisse por muito tempo, se visse que a não conseguia alcançar.

Assim fez Lopo de Sequeira, e em pouco tempo estabeleceu contacto visual com o inimigo. Impetuoso, o tenente lançou os seus homens na perseguição, mas a pequena força intrusa foi tomando o caminho das vinhas da Terrinha, onde o grosso da cavalaria espanhola estava emboscado. Segundo Mateus Rodrigues, os soldados começaram a recear que se tratasse de uma armadilha, mas não ousaram dizer nada ao tenente. Só o furriel-mor da cavalaria, Afonso Rodrigues Tourinho, outro grande soldado, conterrâneo e amigo do tenente, levantou a voz para advertir o oficial: “Homem, que fazes, estás doido? Não vês que o inimigo nos foge para onde não tem porto nem saída? Não está bem claro que aquela partida nos leva de fio à sua emboscada? Não sigamos tal partida, que nos perdemos!” (MMR, pg. 128) Mas era Lopo de Sequeira homem de pouco miolo, segundo a expressão de Mateus Rodrigues, e vendo o inimigo quase alcançado, não quis passar por fraco dando ordem de volver. E respondeu ao furriel-mor que não lhe desse conselhos e que seguisse a partida do inimigo.

O inevitável acabou por acontecer. Já perto das vinhas, os 30 cavaleiros inimigos suspendem a fuga e voltam-se para enfrentar os seus perseguidores. Esta manobra acicatou ainda mais Lopo de Sequeira, que se lançou desenfreadamente para a armadilha. Com efeito, ao mesmo tempo que a pequena força fazia volte-face, a restante cavalaria espanhola saía do seu esconderijo e atacava  os 40 portugueses. Para Mateus Rodrigues – um dos escolhidos para integrar o destacamento de Lopo de Sequeira – e seus camaradas, foi tempo de debandar:

(…) Não fizemos mais que volver cada qual podia correr mais pelo campo acima, para a atalaia onde estava Dom João de Ataíde com as tropas, mas como os nossos cavalos iam muito cansados e a campanha atolava muito, (…) assim como voltámos logo o inimigo nos foi apanhando pouco a pouco, que quando chegámos à atalaia onde estava a nossa gente  não vínhamos mais de treze homens dos 40; só algum que tinha cavalo forte e aturador, esse escapou. (MMR, pg. 129)

Mateus Rodrigues acusa o comissário geral de tudo ter visto a partir da posição segura onde estava, e nada ter feito para ajudar quando a emboscada do inimigo se revelou. Com ironia, escreveu que D. João de Ataíde fez então o que podia fazer, que foi deixar-se estar ao pé da atalaia para nos dar calor [isto é, para dar apoio]. E assim se esteve até que o inimigo averbou com ele. E assim como lhe deu uma carga, virou à rédea solta para Elvas, pois não tinha outro remédio. E dali à cidade é uma légua, que toda ela nos foi o inimigo seguindo bem até dentro dos olivais, tomando ainda alguns soldados. E à entrada dos olivais houve muita bulha, em razão que caiu o cavalo a Dom João numa azinhaga. E porque o inimigo o não cativa[sse], se fizeram ali cava uns poucos nossos, onde se assinalaram grandemente o mesmo Lopo de Sequeira, que havia escapado lá de baixo e já havia feito na retirada milagres. E ali os fez muito maiores o meu alferes, que então era um Tomé Gomes de Carvalho, que por estar em casa do mesmo Dom João e o ver no perigo, fez o que se esperava dele e trouxe uma cutilada pelas costas. E assim mais fez grandes coisas o meu furriel (…) Agostinho Ribeiro, que foi o assombro dos soldados, que não há dúvida que, se não foram estes homens e outros mais, que Dom João se [haveria de] ver em grande risco.

(…) Assim como ele estava já em seguro, se foram retirando todos os mais para a cidade, porquanto o inimigo vinha já com o grosso, chegando-se muito, e desta vez entraram pelos olivais dentro sobre nós, bem até o meio deles, que lá lhe matámos ainda um cavalo, contudo o inimigo se volveu levando-nos 60 cavalos, e mui bons, e bons soldados. Mataram ali então a um bizarro soldado da minha companhia, por nome Gaspar Rodrigues, natural de Elvas. E mais, mataram-no depois de rendido, a sangue -frio. De sorte que toda esta perda e aperto em que nos vimos foi causa o dito Lopo de Sequeira, por não admitir os conselhos de quem tanta experiência e mais que ele tinha. E não deixou de levar mui boas repreensões, assim de D. João de Ataíde como do governador. (MMR, pgs. 129-130)

O próprio D. João de Azevedo e Ataíde não escapou a uma apreciação negativa por parte de Joane Mendes de Vasconcelos, o que corrobora a crítica à indecisão e à incapacidade como comandante que o soldado Mateus Rodrigues lhe faz nas memórias. D. Luís de Meneses narra assim o sucedido: Empenhou-se com tão pouca cautela, (…) que deu tempo ao inimigo a sair da emboscada e a se avançar, de sorte que, quando D. João se quis retirar, foi preciso ser com tanta pressa, que se lhe deu nome menos decoroso. (…) Sentiu Joane Mendes tanto a pouca prudência de D. João de Ataíde, e o receio dos soldados, e pedindo remédio a El-Rei para atalhar este dano, resolveu El-Rei que se passasse patente de governador da cavalaria a D. Rodrigo de Castro, com o mesmo soldo de oitenta mil réis cada mês que levava o Monteiro-mor general dela [Francisco de Melo], que se havia desobrigado daquele posto a respeito da sua muita idade; e foi juntamente provido no posto de tenente-general da cavalaria D. João de Mascarenhas, hoje Conde de Sabugal, que tinha chegado de Castela por França, e servido em Flandres de capitão de cavalos [tinha participado na batalha de Rocroi, em 1643]. (Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, edição on-line (facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro IX, pgs. 162-163).

Mudava-se, assim, o comando da cavalaria do Alentejo, empalidecendo a reputação militar de D. João de Ataíde, que receberia a definitiva machadada no ano seguinte, precisamente no mesmo cenário da Atalaia da Terrinha. Mas nesse ano de 1646 ainda haveria muita peleja. Sobre a campanha e o assalto ao forte de Telena nos ocuparemos nas partes seguintes.

Imagem: “Escaramuça de cavalaria”, pintura de Pieter Meulener.

A captura do tenente-general Gregorio de Ibarra nos campos de Badajoz, 25 de Maio de 1652 (3ª e última parte)

A entrada seguinte seria a definitiva, o lançar da armadilha que fora cuidadosamente preparada nos dias anteriores.

De modo que ordenaram os nossos generais que haviam de mandar (…) uma partida de 100 cavalos para que obrigasse o inimigo a sair com todas as 14 tropas que na cidade [de Badajoz] tinha, e na mesma noite que eles entrassem, havia de ir o nosso general da cavalaria André de Albuquerque, com toda a cavalaria, a emboscar-se em Matos de Cantilhana, que estão por cima de Badajoz uma légua e meia. E a nossa partida havia de entrar às portas de Montijo, e quando fosse de manhã (…) havia de ser retirada (…) para Portugal. E como o inimigo havia de sair em busca deles e não os achasse, era força retirar-se por onde o nosso general havia de estar com a nossa cavalaria. (MMR, pg. 291)

No dia combinado, as companhias que participavam na acção concentraram-se em Elvas e daí partiram para Campo Maior, onde chegaram ao anoitecer. Todas as companhias da vila estavam formadas no exterior, aguardando o general. A força de 100 cavalos já havia saído para as partes de Montijo, e André de Albuquerque ordenou ao soldado que  preparara a traição que fosse a Badajoz, avisar acerca da entrada da cavalaria portuguesa.

Chegou este soldado à ponte de Badajoz já depois da meia-noite, e dando o sinal combinado, com ele foi ter o general D. Álvaro de Viveros. Depois de ser informado sobre a entrada dos portugueses e de ter recompensado o soldado, Viveros mandou montar as 14 companhias de cavalaria de Badajoz, que perfaziam 700 cavalos.

E assim como estiveram juntos mandou com eles o seu tenente-general, o Ibarra, que é um grande soldado, o qual saiu logo pela cidade fora com as tropas como um raio, e quando ele ia pela campanha acima não poda saber da nossa cavalaria, visto passar de madrugada, que se fora dia era força que haviam de dar nela os seus batedores (…). (MMR, pg. 292)

Deste modo, a força de Gregorio de Ibarra ficou com os 1.500 cavalos comandados por André de Albuquerque Ribafria nas suas costas . A armadilha estava preparada.

Não avistou Ibarra a cavalaria portuguesa, mas deu com o trilho por ela deixado no regresso a Campo Maior. Verificando que já não era possível interceptar aquela entrada, o tenente-general deu ordem para volver a Badajoz. Porém, não o fez tomando o rumo que o levaria onde estava emboscada a cavalaria de André de Albuquerque. Decidiu dar verde aos cavalos, isto é, aproveitar para os colocar a pastar, visto que era época de haver muita erva pelos campos, o que possibilitava às montadas uma alternativa mais saudável às habituais rações de cevada. Esta decisão levou a que as companhias de Badajoz seguissem junto ao rio Guadiana, onde havia melhores pastagens, por locais onde vales e barrancos os protegiam da vista das sentinelas portuguesas.

Enquanto os soldados castelhanos desmontavam e segavam erva para levarem, o general André de Albuquerque impacientava-se no local onde se encontrava emboscado, não tendo notícias da cavalaria de Badajoz. Até que chegou o aviso, dado por uma sentinela, de que havia soldados inimigos desmontados junto ao Guadiana a meia légua dali (cerca de 2,5 Km) – com efeito, alguns soldados haviam deixado o abrigo dos barrancos e subido a alguns altos, onde a erva era melhor, e só por este acaso foram detectados pelos batedores portugueses.

André de Albuquerque mandou logo montar toda a cavalaria, e mandou avançar diante dois batalhões à rédea solta, que ia por cabo de um o capitão D. Fernando Henriques, filho de D. Henrique Henriques, senhor das Alcáçovas, e no outro batalhão ia por cabo o capitão João da Silva [de Sousa] (MMR, pg. 293). Estes dois batalhões deviam interceptar o inimigo e aguentá-lo enquanto o general da cavalaria conduzia o grosso da força, mais atrás, para o contacto.

Assim que os soldados que andavam segando erva viram a cavalaria portuguesa, montaram apressadamente e foram dar o alarme. O tenente-general Ibarra ainda subiu a um alto para ver qual era o efectivo da força portuguesa, mas verificando que era muito superior ao seu, deu ordem de retirada às suas tropas. Fizeram-se à ribeira de Xévora, que atravessaram com os cavalos já estafados da correria. Perto da outra margem, mas ainda dentro de água, fez Gregorio de Ibarra formar dois batalhões com 150 cavalos, supondo que seria suficiente para desmotivar as tropas portuguesas que corriam na vanguarda. Porém, tanto D. Fernando Henriques como João da Silva de Sousa não se atemorizaram, sabendo que o general André de Albuquerque os seguia com considerável reforço, e assim atravessaram a ribeira e lançaram-se sobre o inimigo, que mais não fez do que disparar uma salva de pistolas e carabinas antes de se pôr em fuga, já misturado com os batalhões portugueses da vanguarda.

A perseguição durou até às proximidades do forte de São Cristóvão, em Badajoz. Quando os últimos cavaleiros se recolheram à segurança do forte, as tropas portuguesas reagruparam-se e retiraram. Foi então que se verificou que, para além de 6 capitães e 80 cavalos, o próprio tenente-general Ibarra tinha caído prisioneiro. André de Albuquerque Ribafria ficou “doido de contente”, segundo a expressão de Mateus Rodrigues, pois valia mais aquela captura do que se tivessem apanhado 500 cavalos (uma afirmação exagerada, mas que reflecte bem a reputação de que gozava Gregorio de Ibarra).

Após o incidente, os espanhóis pediram para ser reatadas as trocas, processo que não teve o seu começo senão por alturas da Páscoa do ano seguinte. Tanto o tenente-general como os 6 capitães foram transferidos para Lisboa, por se terem tentado evadir de uma das torres de Elvas, onde tinham ficado inicialmente sob prisão. Esta tentativa de fuga causou uma perna partida a um dos capitães, de uma queda que deu da torre onde estava. As trocas de prisioneiros ficaram então de novo abertas, segundo Mateus Rodrigues devido à grande importância de Gregorio de Ibarra. Quando chegaram os primeiros prisioneiros portugueses, na Primavera de 1653, quase todos soldados de infantaria, alguns contavam já dezanove meses de cativeiro e não traziam cor de gente viva, senão de fomes desenterrados… (MMR, pg. 296)

Imagem: “Escaramuça de cavalaria”, pintura de Pieter Meulener, Groeninge Museum, Brugges.

Um desaire a caminho de Juromenha – Março de 1646

Regresso ao blogue com um episódio do quotidiano bélico seiscentista, respigado das memórias de Mateus Rodrigues, mas sobre o qual não localizei ainda outras fontes que possam corroborar, contradizer ou complementar o que o soldado de cavalos deixou escrito. Tratou-se de uma escaramuça que não correu bem para a companhia onde servia Mateus Rodrigues. A data do acontecimento é incerta – sabe-se que que ocorreu no mês de Março, mas o último algarismo do ano é ilegível; optei por 1646, tendo em conta o encadeamento na narrativa. No entanto, há diversas imprecisões nas memórias de Mateus Rodrigues, no que diz respeito a datas. Sigamos, com a devida reserva, o que nos conta o memorialista, aproveitando para realçar que o principal interesse deste episódio reside nos pormenores da pequena guerra, quase sempre ausentes das grandes sínteses.

Mateus Rodrigues começa por referir que a sua companhia, então comandada pelo comissário geral D. João de Azevedo e Ataíde, estava aquartelada em Olivença. O comissário geral tinha à sua responsabilidade as oito companhias de cavalaria daquela praça onde, por ser a planície circundante muito perigosa, não entrava nada que pertencesse a El-Rei que não fosse escoltado pela cavalaria desde o rio Guadiana, a cerca de duas léguas da vila. Foi assim que aconteceu com um comboio de 200 cavalgaduras, carregadas de munições, farinha e outros abastecimentos.

E logo quis a fortuna que o inimigo tivesse notícia deles, e foi a minha companhia tão mal afortunada que lhe tocou [n]aquele dia ir ao comboio [ou seja, fazer a escolta dos animais de carga] (…) logo pela manhã (…). E assim como esteve a companhia junta à porta do capitão [o termo capitão é aqui usado no sentido generalista de comandante da companhia], chamou (…) um cabo de esquadra, por nome Francisco Cabral Barreto, e lhe disse que tomasse dez cavalos da companhia e fosse diante [com] duas ou três horas [de avanço] da companhia a descobrir a campanha. E lhe advertia que vinha um comboio mui grosso; que descobrisse muito bem a campanha (…).

Logo que o cabo de esquadra recebeu a ordem, partiu com os dez cavalos para fazer o reconhecimento, cumprindo escrupulosamente o que era hábito fazer, que era uma boa légua fora da estrada para todas as partes. No último posto, situado num outeiro de onde se descortinava toda a campina, ficou postada uma sentinela, e daí até ao local onde a companhia devia aguardar pelo comboio de abastecimentos – uma ermida a meia légua do Guadiana – foram sendo colocadas sentinelas, em locais altos e todas à vista umas das outras.

O tenente que comandava a companhia nesta operação (não cumpria ao comissário geral fazer serviço de comboios ou rondas, ainda que disso a sua companhia não estivesse dispensada), chegando ao local combinado com o restante dos seus homens, mandou que estes desmontassem e dessem de comer aos cavalos. Não faltava erva e assim o fizemos todos até que o comboio veio chegando, que como ainda não havia porto em Guadiana passava tudo nas barcas, que são duas. A longa coluna de animais foi atravessando o rio nas barcas, bem devagar. Assim que chegavam à outra margem, punham-se em marcha para Olivença, pois não havia tempo para esperarem até que todos tivessem passado o rio.

A cavalaria inimiga tinha muitas vezes atacado e tomado comboios de abastecimento na estrada de Olivença, e desta vez montou uma emboscada perfeita. Como aquela campanha é meia rasa e tem muitos vales e covas onde o inimigo se pode esconder à sua vontade, como não chegam onde ele estiver, logo fica bem. A cavalaria de Badajoz, num total de 14 companhias com 700 homens, foi emboscar-se um quarto de légua mais adiante de onde tinha ficado a sentinela mais avançada do dispositivo de segurança português, montado previamente pelo cabo Francisco Cabral Barreto. Desse local não podiam ver a coluna de abastecimento aproximar-se, mas como soldados experientes que eram, calcularam bem a hora do dia em que o comboio atravessaria o Guadiana.

Assim como lhe pareceu horas, tomaram uma partida de 20 cavalos e mandaram-na avançar com [ou seja, contra] a nossa sentinela, que estava junto deles um tiro de mosquete (…). Assim como a nossa sentinela viu vir os 20 cavalos correndo, vem fugindo para onde estava a companhia, tocando arma. As demais sentinelas também abandonaram os seus postos, correndo a avisar o tenente da aproximação da força inimiga. Quando a companhia portuguesa se preparou para enfrentar os 20 cavalos inimigos, a restante cavalaria espanhola revelou a sua presença e atacou, dividida em duas partes. Uma lançou-se sobre as cavalgaduras da vanguarda que já estavam na estrada para Olivença. A outra correu sobre a parte do comboio que estava ainda junto do Guadiana.

Entre os portugueses gerou-se a confusão. O tenente tinha consigo 40 homens; os 15 que faltavam estavam espalhados pelos postos que lhes tinham sido atribuídos. Confiantes quanto a derrotarem a vintena de cavalo que inicialmente se aproximara, deram consigo cercados pelo muito mais numeroso dispositivo inimigo. Não tivemos outro remédio senão tratar cada um de seu livramento. A fugida para Olivença não podia ser, porque além de ser légua e meia, estava era muito mais perto, que não era (…) meia légua. Mas também o inimigo nos tinha tomado a dianteira o inimigo lá adiante. Foi para Juromenha que resolveram os portugueses fugir. Mas o inimigo, assim como nos viu, se veio a nós como um raio, contudo fomos-lhe fazendo nossas diligências, cada um o que podia. E quem tinha melhor cavalo, melhor livrava.

Assim como de Juromenha viram o inimigo, logo tiraram duas peças para aviso de Olivença, que saíssem as tropas; e também mandou o capitão-mor de Juromenha duas mangas de mosqueteiros muito depressa em as barcas, para defenderem o comboio que estava a maior parte dele já passado. Mas estava ainda por carregar tudo em os barrancos, e assim como os almocreves viram que vinha o inimigo, descarregaram mui depressa algumas bestas que tinham já carregadas e deixaram-se estar mui caídinhos e agachados ao pé dos barrancos.

Assim como nós chegámos a Guadiana, já não íamos muito mais 15 ou 16 soldados com o nosso alferes, que era Agostinho Ribeiro (…), e não tínhamos nenhum remédio senão passar o pego a nado ou entregar[mo]-nos aos castelhanos. E disse o nosso alferes aos que ali iam que todos o acompanhassem a passar a nado o pego (…), que nenhum se rendesse ao inimigo, que os cavalos nos haviam de botar fora mui bem. De sorte que assim o fizemos, mas com grande risco nosso, em razão que iam os cavalos mui cansados de correr meia légua à rédea solta, e metê-los a um pego connosco em cima deles (…) não havia de salvar nenhum homem (…). Apenas nós nos botámos ao pego a nado, já o inimigo chegava aos barrancos do Guadiana (…) e logo começaram aos tiros a nós, dos quais ainda nos mataram um soldado no meio do pego, que lhe deram com uma bala pelas costas (…) Mas os demais saímos fora, ainda que com trabalho, que também outro soldado nosso esteve quase afogado, andando debaixo do cavalo um pouco de tempo, até que saiu arriba e pegou-se ao rabo do cavalo e saiu fora, mas muito cheio de água, que o tomámos com as pernas para cima e a cabeça para baixo e botou muita água da barriga.

De modo que o nosso tenente foi Guadiana abaixo com tenção de passar pelo porto que já levava pouca água. (…) Fiava-se em o bom cavalo que levava, mas sempre o seguiram três castelhanos até entrarem com ele pela água dentro às pancadas, que ainda lhe deram uma cutilada na cabeça, mas livrou[-se], que assim como os castelhanos viram que os seus cavalos se iam metendo muito na água deixaram-no ir, que o seu cavalo era muito valente e tomou sempre pé (…).

Entretanto, a cavalaria inimiga regressava a Espanha com a presa que tomara, sensivelmente metade das cavalgaduras do comboio. As outras 100 não foram detectadas, porque fazem ali os barrancos uma grande altura com o rio, e estando alguém a cavalo ao pé deles não pode ver quem está em baixo, e como o inimigo fez ali pouca detença, não lhe ficou lugar de saber. Nove soldados portugueses foram também levados prisioneiros e dois morreram na escaramuça.

As restantes companhias de Olivença, ouvido o alarme dado pelas peças de Juromenha, saíram da praça sob o comando de D. João de Ataíde, mas já o inimigo ia muito afastado. O comissário geral ficou muito zangado com o cabo de esquadra a quem ordenara o reconhecimento e a quem atribuía as culpas pelo insucesso, mas não pôde descarregar a sua ira no sujeito, pois este fora um dos prisioneiros que a cavalaria inimiga levara para Badajoz. Como as trocas de prisioneiros estavam então suspensas, Francisco Cabral Barreto ficou 18 meses cativo. Mateus Rodrigues refere que o cabo não teve culpa alguma no desaire, pois não foi por erro seu que a força portuguesa sofreu a emboscada. (…) Ele é e foi sempre tão bizarro soldado, que assim como D. João se ausentou das fronteiras [em 1647], logo subiu em breves tempos [a] ajudante da cavalaria, que é o posto em que ficava quando me ausentei das fronteiras [em Fevereiro de 1654].

Fonte: MMR, pgs. 139-145.

Imagem: “Choque de cavalaria”, pintura de Pieter Meulener.

Uma escaramuça em terras de Riba Coa, 1642 – por Juan Antonio Caro del Corral

Enquanto os afazeres profissionais não me deixam actualizar o blogue com a regularidade desejada, aqui vos deixo mais uma interessante colaboração de Juan Antonio Caro del Corral – originalmente um comentário a esta entrada, mas que merece o devido destaque em artigo próprio. Os meus agradecimentos ao Juan Antonio, especialista na investigação histórico-militar da fronteira da Beira. Em breve darei mais um contributo sobre esta fronteira, com a colaboração do estimado leitor JCPort, que teve a amabilidade de me endossar alguns documentos, e a quem aproveito para agradecer.

UNA ESCARAMUZA EN TIERRAS DEL RIBACOA

1642 fue un año muy pródigo en sucesos militares. Salvo en algunas ocasiones puntuales, que obligaron a que el número de tropa reclutada alcanzase notabilidad, la mayor parte de los acontecimientos no fueron más que pequeñas incursiones enmarcadas en la denominada “guerra de frontera”, dónde el pillaje primaba sobre cualquier otro objetivo. Así, las pretensiones no eran conquistar pueblos y aldeas, sino que lo verdaderamente interesante era obtener un cuantioso botín, el cual se repartiría posteriormente entre todos los implicados en el ataque, atendiendo, como es lógico, a su categoría dentro del estamento militar.

Estas acciones, llamadas unas veces “de course”, en otras “escaramuzas”, o simplemente “de castigo”, al desarrollarse con frecuencia, producían un doble efecto en quienes más directamente las sufrían: los vecinos de los lugares atacados.

Por una parte éstos veían mermadas sus pertenencias, que eran robadas e incendiadas por los agresores; y en segundo lugar, la moral también decaía considerablemente, pues apenas había tiempo de recuperación entre un ataque y el siguiente. En definitiva, consecuencias físicas y psicológicas.

Un claro ejemplo de estas incursiones y sus resultados negativos,  fue la realizada sobre Villanueva del Fresno en el citado 1642, cuyo desarrollo ha sido debidamente tratado en uno de los capítulos de este blog histórico-militar. Pero, como dijerá párrafos atrás, ése no fue el único acontecimiento de aquel año.

Bajo las pautas que caracterizaban a las escaramuzas y que ya han quedado expuestas anteriormente, poco después del suceso de Villanueva, tuvo lugar un hecho que causó gran conmoción al ser debidamente publicitado tras su conclusión. Tuvo lugar en tierras de la Beira Alta, concretamente en la comarca llamada popularmente Ribacoa.
Limitaba esta zona con la frontera mirobrigense, gobernada por el Excelentísimo señor Duque de Alba. Este general llevaba ya un tiempo meditando una entrada en campo enemigo, sobre todo porqué, en los meses precedentes, los lugares de su jurisdicción más próximos a la Raya divisoria (Aldea del Obispo, Fuentes de Oñoro, La Fregeneda….)  habían sido objeto de duras acciones represivas por parte de los portugueses de la mentada región beirense.
Así pues, era opinión del Duque lanzar un ataque en venganza del daño recibido.

Combinando sus movimientos con los realizados por otras tropas de la frontera pacense, que a su vez tenían intención de atacar en la frontera sur al objeto de dividir a las posibles fuerzas defensoras lusitanas y facilitar con ello el éxito del de Alba, mándo éste reunir un potente ejército poniendolo a las órdenes de sus dos mejores oficiales: Juan Suárez de Alarcón, más conocido por su noble título de Conde de Torresvedras, y Alvaro de Vivero, mano derecha principal del Duque.

Así, con 1200 infantes y 500 caballos, más otras gentes procedentes de Valladolid y Salamanca, se pusieron en camino ambos comandantes el día 17 de octubre de 1642.

Cruzaron la frontera por los vados situados junto a la localidad de San Felices de los Gallegos, encontrándose frente a su posición una vasta campiña cuajada de alquerias, aldeas y villas que, desconociendo el peligro que sobre ellas se cernía, tenían sus campos, ganados y haciendas totalmente descuidadas. Sin duda un inmejorable botín para los castellanos.

Comenzo la escaramuza sin hallar oposición. Dividióse al efecto en dos grupos el ejército invasor. Uno atacó la banda derecha y el restante la izquierda.

Escarigo, lugar de apenas 200 vecinos y con sólo un retén de 60 soldados, fue el primero en conocer la rapiña de los hombres comandados por el Marqués de Creche, comisario general de la caballería castellana. Del incendio se salvó unicamente la iglesia.

Siguieron la estela de Escarigo las villas de Vermiosa, Almofala, Colmeal y Torre dos Frades. En esta última hicieron noche para descansar y reponer fuerzas la gente de Torresvedras y Vivero.

A la mañana siguiente, 18 de octubre, continuó la cabalgada saqueándose el poblado llamado Mata de Lobos, dónde dieron muerte a ocho vecinos que huían cargados de ropa, pan, vino, trigo y otros enseres.

Para entonces los únicos que se habían atrevido a detener la invasión fueron unos jinetes procedentes de la plaza amurallada de Castel Rodrigo, aunque no tuvieron fortuna en su intento, teniendo que retirarse al galope.

El ejército castellano, pese a todo, no se detuvo, y se presentó al mediodía ante las puertas de Escalhao, sin equivoco la población más importante y rica de cuantas se habían hallado en su avance.

Toda la vecindad (más de 600 personas), ante el aviso de que llegaba el invasor, estaba recogida en la iglesia, convertida en una auténtica fortaleza. Fue responsable de la defensa de la misma el sargento Joao da Silva Freio, al mando de 35 soldados.

Soportaron el asedio castellano muchas horas; incluso acabaron con la vida de varios militares. Cuenta la tradicción escalonense que un hombre del lugar, de nombre Janeirinho, armado de valor y coraje, enfrentándose a un capitán que pretendía entrar en el reducto religioso, logró acabar con la vida del agresor al tiempo que gritaba enardecido”… Viva o Janeiro com a sua porra…”.

Leyendas aparte, lo cierto, según los documentos conservados, es que los castellanos, viendo la imposibilidad de tomar la iglesia y faltándoles munición y víveres para seguir su correría, optaron por finalizarla, regresando aquella misma tarde a sus cuarteles de Ciudad Rodrigo.

Consigo llevaron muchas cabezas de ganado, gran bulto de ropa, utensilios varios y otras menudencias que la soldada obtuvo en los saqueos de los pueblos atacados.

Habían vengado de esta forma las afrentas recibidas, satisfaciendo los planes del Duque de Alba. Objetivo cumplido.
Así fue y así terminó una de las muchas acciones de guerra que tuvieron como escenario a la frontera extremeña-portuguesa. Era sólo el segundo año de conflicto, y quedaban aun por cumplirse veintiséis campañas más.

Pero eso es otra historia.

JUAN ANTONIO CARO DEL CORRAL

Imagem: “Escaramuça de cavalaria”, por Pieter Meulener.

“O Conselho de Guerra como lugar de poder: a delimitação da sua autoridade” – artigo de Fernando Dores Costa

Não sendo propriamente um especialista da História Militar, é neste campo – e na área da Guerra da Restauração, em particular – que o Dr. Fernando Dores Costa tem desenvolvido parte da sua investigação. Confesso que nem sempre estou em sintonia com as suas interpretações, mas como académico e autor merece todo o meu respeito. Um dos seus mais recentes estudos é este artigo de 2009, originalmente publicado na revista Análise Social, que aqui fica disponível em ficheiro pdf através desta ligação.

Imagem: “Escaramuça de cavalaria”, pintura de Pieter Meulener.