Acerca dos terços pagos do período da Guerra da Restauração

caballerc3ada (post)

Os terços pagos de infantaria do período da Guerra da Restauração eram unidades permanentes, como já aqui foi referido em vários artigos. Ainda que não impossível, é tarefa difícil traçar a sua evolução, dada a natureza dispersa e incompleta das fontes primárias (por exemplo, os Livros de Registo e as Consultas e Decretos do Conselho de Guerra) e a imprecisão das referências a determinadas unidades nas narrativas avulsas de combates ou mesmo na História de Portugal Restaurado, fontes impressas nem sempre fiáveis. Gastão de Melo de Matos, no já longínquo ano de 1940, traçou um esboço de história orgânica para os terços da província de Entre-Douro-e-Minho, que no entanto não teve continuidade (veja-se a ligação para a referida obra aqui).

É possível seguir a evolução das unidades se a pesquisa for orientada para o nome dos respectivos mestres de campo, já que os terços eram habitualmente designados pelo nome dos comandantes. Contudo, mesmo a emissão de uma carta patente não garante que determinado oficial tenha ocupado o posto no terço para o qual fora nomeado. Sobretudo nos primeiros anos da guerra, é possível encontrar o registo de várias cartas patente (a segunda parte dos Livros de Registo do Conselho de Guerra era dedicada exclusivamente a este tipo de documentos) cujos postos os titulares nunca chegaram a exercer. Outra das dificuldades é a ocasional troca de unidades entre oficiais por mútuo acordo, depois de já terem estado no comando dos terços por um período mais ou menos longo de tempo. Não sendo muito comum, podia no entanto acontecer, como se encontra reportado pelo menos numa ocasião.

Na consulta do Conselho de Guerra de 22 de Abril de 1664 foi analisada uma petição do mestre de campo Manuel Lobato Pinto, no sentido de lhe ser atribuído o comando de outro terço. Manuel Lobato Pinto fora nomeado para o terço comandado anteriormente por D. Pedro, o Pecinga, mas não tinha patente daquele posto por ter estado na praça de Monforte a reparar as ruínas dela. Daí fora para Vila Viçosa, por necessidade de assistência na fortificação daquela localidade. Razão pela qual entendia que se lhe devia passar patente de mestre de campo do terço que ali estava, que fora de D. Diogo de Faro, ainda que naquela ocasião o comandante do terço fosse o mestre de campo D. Francisco Henriques. Este concordava em efectuar a troca. O Conselho de Guerra deu parecer favorável à pretensão, por estarem de acordo nisso os mestres de campo e por não prejudicar o serviço das armas reais. O próprio monarca deu o consentimento em 30 de Abril de 1664.

Deste modo, o terço que fora do napolitano D. Pedro, o Pecinga e que devia ter sido comandado por Manuel Lobato, passou a ter como comandante D. Francisco Henriques, e o que este comandava e que anteriormente tinha sido de D. Diogo de Faro, passou a ser comandado por Manuel Lobato Pinto. Estas pontuais alterações tornam por vezes difícil traçar com precisão o percurso de uma unidade no âmbito da história orgânica.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1664, mç. 24, consulta de 22 de Abril de 1664.

Imagem: Combate do período da Guerra dos 30 Anos, pormenor de um quadro de Pieter Post.

A troca de prisioneiros (1ª parte) – o costume e as excepções

Já aqui foi referido o modo como usualmente se procedia à troca de prisioneiros (veja-se o sucedido a Mateus Rodrigues em Julho de 1651), ainda que sem aprofundar muito o assunto. As normas assentavam no costume e eram bem conhecidas do universo castrense:

– Em primeiro lugar, a libertação de um prisioneiro de guerra podia fazer-se através do resgate, comprando a liberdade a troco de dinheiro: de acordo com o posto de cada militar, entregava-se um mês de soldo e um determinado montante por dia.

– O segundo método era a troca directa de acordo com os postos: soldado por soldado, capitão por capitão, etc. Ficavam geralmente isentos deste estilo os oficiais generais de cada exército.

– O terceiro, e o mais praticado na Guerra da Restauração, deixava ao livre arbítrio dos vencedores o que fazer nas trocas de prisioneiros. A prioridade era dada aos que eram capturados em acções de guerra, e aqui, aos que o tinham sido com maior demonstração de valor e bravura, bem como aos de maior categoria social e postos na hierarquia militar; sem admitir que enquanto estes se não trocassem, pudesse haver quaisquer outras permutas. Em caso algum se devia permitir que se trocassem militares por civis, ou mesmo por outros militares que tivessem sido capturados fora das ocasiões de guerra. No entanto, havendo reféns de parte a parte por mútuo acordo (prática que não era invulgar na época, nomeadamente enquanto decorriam as negociações sobre as condições de rendição de uma praça cercada), essa troca tinha precedência sobre todas as outras.

O único entrave a esta prática, pelo menos durante os anos iniciais da guerra, era uma certa relutância da parte espanhola em aceitar a igualdade – em termos de estatuto beligerante – com os portugueses, considerados meros rebeldes. De resto, algo que já havia sucedido em relação aos holandeses, também nas etapas iniciais da Guerra dos 80 Anos. Com o tempo e a continuidade do conflito, porém, essa relutância foi desaparecendo.

Havia, no entanto, uma zona de sombra que acabava por escapar a todas estas “leis consuetudinárias da guerra”, e onde o livre arbítrio dos captores mais se sentia. Era o caso dos “traidores”, ou seja, portugueses ou espanhóis que tinham passado para o lado inimigo, renunciando ao seu soberano “natural” e passando a servir o outro. Pior ainda se serviam de guias nas incursões ao território vizinho. A captura, nestes casos, trazia sempre consigo o risco de condenação à morte e execução para o militar em causa, mas de parte a parte era usual uma certa cautela, com receio de uma escalada de actos de retaliação.

Um destes casos é tratado numa curta série de consultas e envolve três indivíduos capturados pelo exército do Alentejo durante o governo das armas do 2º Conde de Castelo Melhor. A primeira dessas consultas, datada de 27 de Julho de 1645, aborda o destino a dar aos prisioneiros, cuja detenção em Elvas, pela proximidade da fronteira, não era aconselhável. A transcrição é a seguinte:

O Conde de Castelo Melhor, governador das armas da província do Alentejo, escreveu por este Conselho a Vossa Majestade a carta inclusa, na qual diz que por outra do auditor geral que com ela remete a Vossa Majestade e também vai junta, ficará Vossa Majestade entendendo quanto convém que os prisioneiros nela declarados não estejam na cadeia da cidade de Elvas, nem tão pouco se troquem para Castela, ainda que os castelhanos nos asseguram que não hão-de trocar nenhum soldado nosso, senão entrando estes piratas no troco. Contudo, em sabendo que estão mandados trazer por ordem de Vossa Majestade a esta Corte se desenganaram, como têm feito com Sebastião Correia da Silva, que está no Limoeiro, e se da parte de Castela não exceptuaram no troco que nos propõem os prisioneiros que estão em Granada, Sevilha e Utreta, fora justo que lhes déssemos aos três declarados na carta do Auditor, pelo benefício que recebíamos em virem para este Reino os fidalgos e soldados que foram presos na batalha de Montijo; porém como os reservam, deve Vossa Majestade ser servido que de nossa parte se faça também esta demonstração.

Na carta do auditor geral que também escreveu a Vossa Majestade, de que a do Conde faz menção, diz que na prisão daquela praça de Elvas estão reteúdos há muitos dias João de Chaves, natural de Badajoz, Barnabé Martins, português, natural da Guarda, morador e casado em Telena, donde se foi para Badajoz, e Simão Antunes, português, natural de Elvas, casado em Badajoz, todos soldados de cavalos conhecidos por grandes piratas, que como naturais e práticos nos lugares daquelas fronteiras, serviam de guias para as pilhagens. A estes pediram por muitas vezes de Badajoz a troco de outros soldados, mas nunca os governadores das armas o Conde de Alegrete, Joane Mendes de Vasconcelos, e ora o Conde de Castelo Melhor, deferiram a seus trocos pelas informações que deles dava. E ultimamente se resolveram da parte de Badajoz em não admitirem trocas, como neles não entrassem os sobreditos, e assim têm por ora cessado as trocas. E por não convir ao serviço de Vossa Majestade que estes homens tornem a Castela pelo muito dano que causariam, se resolveu o Conde governador das armas mandá-los a Vossa Majestade com esta notícia, para que deles se não trate, e se desenganem da parte de Badajoz que com eles se não há-de praticar a troca, com que ficará cessando o inconveniente para os mais que não forem desta qualidade, sabendo que por ordem de Vossa Majestade estão exceptuados, com de sua parte tem feito com outros portugueses.

Sobre o que propõem nas cartas referidas o Conde de Castelo Melhor, governador das armas, e o auditor geral da província do Alentejo, para se haverem de trazer da cadeia de Elvas uns três prisioneiros que ali estão prejudiciais, e guias contra nossas praças, para a desta cidade, e instarem os castelhanos por eles de maneira que se resolvem a não haver de admitir mais troca alguma enquanto se lhes não conceder a destes três por eles nomeados. Pareceu ao Conselho dizer a Vossa Majestade que os ditos três prisioneiros, e quaisquer outros que haja desta qualidade, se mandem vir logo para o Limoeiro [prisão em Lisboa, perto da Sé], e que Vossa Majestade se sirva de mandar que os governadores das armas tenham forma geral com que devem proceder nas trocas de uns com outros prisioneiros.

(continua)

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1645, maço 5, consulta de 27 de Julho de 1645.

Imagem: “O ataque ao comboio”, óleo de Pieter Post.

Cavalaria da ordenança da província da Beira (1650)

pieter-post-soldiers-plundering-dutch-haarlem-1630s

Em artigos anteriores sobre as categorias militares do exército português e os tipos de cavalaria, foi já referido o modo de constituição das unidades da ordenança. As companhias desta categoria de milícia compreendiam homens de várias localidades de uma comarca. Nas zonas mais atingidas pela guerra, junto à fronteira, cedo se constituíram companhias da ordenança, para complementar a defesa levada a cabo pelas tropas pagas. Em outras regiões, menos sujeitas às incursões de depredação, tardaram a ser formadas estas companhias.

Na Beira, por exemplo, os habitantes das localidades mais afastadas da raia foram durante algum tempo poupados ao serviço na cavalaria da ordenança. A partir da década de 50, em particular durante o governo de D. Rodrigo de Castro, futuro Conde de Mesquitela, a preocupação com a força montada foi crescendo, de modo que novas unidades foram surgindo. Assim, em 7 de Janeiro de 1650, havia em formação quatro novas companhias da ordenança, a saber:

– Companhia do capitão Gaspar de Seixas de Almeida. Tinha perto de 40 efectivos, com gente de Trancoso e seus termos.

– Companhia do capitão António Veloso do Amaral. Devia ter 50 cavalos, mas só alguns estavam então operacionais. Os soldados vinham das localidades de S. João da Pesqueira, Távora, Sendim, Trevões, Nagozelo, Vilarouco, Riodades, Paredes, Ranhados, Ervedosa, Valença, Penela, Lousa, Valongo, Castanheiro, Soutelo, Souto e Cedovim.

– Companhia do capitão Diogo Pereira de Figueiredo. Devia ter  50 cavalos, mas só tinha alguns operacionais. Formada nas vilas de Fonte Arcada, Pena Verde, Fornos, Penedono, Casais do Monte, Carapito, Algodres, Matança, Aguiar da Beira e Sernancelhe.

– Companhia do capitão Manuel de Andrade Freire. Tal como as outras, dos 50 cavalos, só alguns estavam em condições de operar. Incluía gente das vilas de Pinhel, Marialva, Moreira, Aneloso, Casteição, Numão, Longroiva, Muxagata, Vila Nova, Horta,  Touça, Castelo Mendo, Lamegal e Meda.

Um dos problemas que afectavam a capacidade operacional das unidades era a falta de selas. Em Fevereiro de 1650, D. Rodrigo de Castro queixava-se de não lhe terem sido ainda entregues as selas pedidas e prometidas havia já meio ano. Por outro lado, advertia que o serviço continuado com selas velhas acabava por destruir os cavalos. Apesar de todas as dificuldades, nesse mesmo ano D. Rodrigo de Castro levou a cabo algumas operações onde a cavalaria da ordenança participou em número superior ao da cavalaria paga, e com sucesso.

Fontes: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1650, maço 10, nº 16, 36 e 46; e Secretaria de Guerra, Livro 14º, fls. 78-78 v.

Imagem: Soldados pilhando, quadro de Pieter Post, década de 30 do século XVII.