A ascensão ao posto de sargento-mor de batalha: dois pedidos de 1664

Gerard_ter_Borch_-_An_Officer_dictating_a_Letter_c1655-58 National gallery London_X

O contexto da criação do posto de sargento-mor de batalha foi aqui apresentado num artigo, há cerca de três anos. Recomendo a sua leitura prévia, a fim de se entender a polémica da introdução do posto no exército português em 1663.

Polémicas à parte, o posto logo se tornou muito apetecível por oficiais desejosos de acrescentamento – ou seja, a obtenção de uma patente que os aproximasse do topo da hierarquia militar, não só em termos remuneratórios e de importância pessoal e social, como da própria integração no núcleo restrito da elite militar provincial. Todavia, o crivo era apertado. Os pedidos endereçados ao Conselho de Guerra não contemplavam a promoção a sargento-mor de batalha como uma mera recompensa, como se fazia, por exemplo, com o posto de tenente-general da artilharia, muitas vezes atribuído ad honorem. E mesmo militares com uma longa lista de serviços prestados viam recusados os seus requerimentos.

Dois desses casos foram tratados numa consulta do Conselho de Guerra de 18 de Março de 1664: as petições do tenente-general da cavalaria D. Martinho da Ribeira e do mestre de campo Manuel Ferreira Rebelo.

Na petição de D. Martinho, o requerente referia que servia desde a Aclamação de D. João IV como soldado, capitão de infantaria, de cavalos, comissário geral e tenente-general da cavalaria, tendo procedido sempre com grande satisfação dos seus generais, entrando em muitos combates e de todas as ocasiões recebendo cartas de Sua Majestade em agradecimento dos seus bons procedimentos, constando também das escritas pelos generais ao Rei o seu préstimo e valor. Tinha sido em muitas ocasiões gravemente ferido, tendo ficado prisioneiro e com um braço quebrado na retirada que o general da cavalaria André de Albuquerque tinha feito na ocasião em que o Duque de San Germán fora contra a sua cavalaria, armar à que assistia em Campo Maior e Elvas; e também, quando esta praça fora sitiada por D. Luís de Haro, saindo a cavalaria portuguesa a tomar quartéis e esperando que se juntasse o exército de socorro, fora D. Martinho trespassado com quatro estocadas. Depois, em todo o tempo que já assistia na Beira, ia sendo notório ao Rei o seu procedimento em tantas ocasiões, e porque estas eram de todo presentes a Sua Majestade e seus ministros, considerava que não podia haver causa para que Sua Majestade deixasse de o acomodar no que mais fosse de seu serviço, pois hoje está sem ocupação, por haver entregue a sua companhia (como Vossa Majestade mandou) ao tenente-general Gomes Freire; havendo ele, suplicante, servido de tenente-general de ambos os partidos da Beira, etendo no de Penamacor a sua casa e a sua companhia, sucedendo nela ao tenente-general João da Silva de Sousa (que era então sargento-mor de batalha na província do Alentejo). E rematava a petição lamentando-se, pois via ele suplicante que os outros se acrescentaram, diminuindo-lhe a ele o posto, havendo gastado nele tudo o que tinha de seu nos socorros a que continuamente assistia, tendo assitido no ano de 1663 na província da Beira, na do Minho, no sítio de Lapela e na do Alentejo na ocasião da batalha e na recuperação de Évora. Pedia assim ao Rei o posto de sargento-mor de batalha da província da Beira, pois não necessitava menos que os outros deste posto, ou em alternativa, do soldo de tenente-general da cavalaria para o Alentejo, onde pretendia servir.

O Conselho, embora tenha considerado que o requerente era muito merecedor de mercê régia, declarava não o poder provir no posto sem ordem expressa de Sua Majestade, por ser um acrescentamento novo.

Nos pareceres dos conselheiros, o Conde de Ericeira concordava com a opinião dos outros membros do Conselho, excepto no que tocava ao acrescentamento de posto, pois considerava que desde a sua primeira criação no exército do Alentejo dera parecer que não convinha que os houvesse, pelas razões que naquele tempo tinha apresentado a Sua Majestade.

O Conselho acrescentou que, estando para rubricar esta consulta, lhe tinha sido apresentada outra petição de teor semelhante, que foi também incluída.

Tratava-se da petição do mestre de campo Manuel Ferreira Rebelo, que servia há 26 anos nas guerras do Brasil, Alentejo e Beira, na ocupação de soldado, cabo de esquadra, sargento, alferes, capitão de infantaria, sargento-mor, tenente-general da artilharia, tenente de mestre de campo general e, naquele momento, de mestre de campo. Participara sempre com particular acordo e valor em todas as ocasiões, como fora na batalha do Canal (Ameixial), em que ele fora dos primeiros mestres de campo que tinham entrado a pelejar, e particular instrumento de lograrem as armas de Sua Majestade uma tão grande vitória. E depois na recuperação de Évora, tendo passado posteriormente à província da Beira, onde teve o sucesso que, entrando por cabo de um troço de gente em Castela, queimou e saqueou o lugar da Redonda e a vila de Ponteguinaldo, que tinha mais de 400 vizinhos, entrando-lhe o forte à força de armas, onde havia ido um exército ociosamente. E no presente momento se achava na Corte em serviço de Sua Majestade, procurando particulares da província da Beira, como tinha feito havia dois anos pela do Alentejo, diligências que os governadores das armas o encarregaram, por lhes constar do seu préstimo. E porque a tença de 40.000 réis que tinha na casa de Regalados não cobrava desde há em 3 anos; e uma capela que Sua Majestade lhe tinha feito mercê não lograva rendimento algum, e havendo um ano que servia de mestre de campo, não tinha cobrado mais que 23.000 réis de um mês de soldo para a jornada do Alentejo, com o que se achava impossibilitado de continuar ao serviço de Sua Majestade, por haver gastado nele toda a sua fazenda.

Também este requerente pedia o posto de sargento-mor de batalha da província da Beira, tendo-o já pedido a Pedro Jacques de Magalhães, governador das armas.

A ambos os casos respondeu o Rei, em 28 de Março de 1664, nos seguintes termos: Não há que tratar deste posto.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1664, maço 24, consulta de 18 de Março de 1664.

Imagem: Gerard Terborch, “Oficial ditando uma carta”, c. 1655-58, National Gallery, Londres.

Postos do exército português (22) – o sargento-mor de batalha

O posto de sargento-mor de batalha foi criado, no exército português, nos inícios de 1663, por insistência de D. Sancho Manuel de Vilhena, Conde de Vila Flor. Foi introduzido desde logo no exército do Alentejo, e os primeiros oficiais que para aquele posto se nomearam foram Diogo Gomes de Figueiredo e Bobadilha (filho) e João da Silva de Sousa.

D. Sancho Manuel argumentou, junto do Conselho de Guerra, a favor da criação do novo posto. A primeira razão que expôs foi a existência daquele posto nos exércitos do Imperador do Sacro Império, a cuja imitação, por se acharem grandes conveniências nestes postos, se tem criado nos de Castela (ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1663, maço 23, carta anexa à consulta de 20 de Fevereiro). A este respeito, recorde-se que ainda antes de 1653 o Marquês de Aytona tinha proposto a introdução do posto de sargento-maior de batalha nos exércitos de Espanha, com autoridade sobre todos os mestres de campo, seguindo uma solução idealizada na Flandres (MOLINET, Diego Gómez, El Ejército de la Monarquía Hispánica a través de la Tratadística Militar, 1648-1700, Madrid, Ministerio de Defensa, 2007, pg.80; o tratado era o seguinte: Discurso Militar proponense algunos inconvenientes de la Milicia destos tiempos y su reparo al Rey nuestro señor por el Marques de Aytona, Valencia, Bernardino Noguès, 1653).

Os motivos para a introdução do posto, porém, eram diferentes. Enquanto o tratadista espanhol procurava solucionar o problema da hierarquia entre os vários mestres de campo envolvidos numa operação, não considerando satisfatória a solução de os submeter ao comando de um general da artilharia ad honorem, já no caso português a questão era mais complexa. Neste caso concreto, tratou-se de  um ataque pessoal ao Conde de Schomberg, que o Conde de Vila Flor receava viesse a ser nomeado mestre de campo general do exército do Alentejo (como efectivamente o foi, por carta régia de 15 de Março de 1663). Na mesma carta em que fundamentava a criação do novo posto, D. Sancho Manuel escrevia: com este posto se escusa o de mestre de campo general, como se vê nos exércitos do Imperador [do Sacro Império], onde o não há, porque servindo os sargentos maiores de batalha às semanas, exercitam o mesmo posto estando às ordens dos generais do exército. Vila Flor não desejava ver Schomberg como seu subordinado no exército do Alentejo. De uma penada, procurou afastá-lo, através da dispensa do mestre de campo general.

Todavia, o resultado prático foi nulo e veio introduzir ainda maior complexidade na cadeia de comando. Não só continuou a existir o posto de mestre de campo general, como os sargentos-mores de batalha iriam ter funções semelhantes aos tenentes de mestre de campo general. Em teoria, um sargento-mor de batalha estaria directamente subordinado a um capitão-general ou tenente-general do exército, ou ao governador das armas – ou seja, ao comandante supremo de um exército provincial; mas na prática, acabava também por estar subordinado ao mestre de campo general.

Imagem: “A morte de Schomberg”. Gravura inglesa representando o fatídico episódio ocorrido na batalha de Boyne (12 de Julho de 1690), onde Schomberg, aos 75 anos, era o segundo-comandante do exército de Guilherme de Orange.

Postos do exército português (21) – O gentil homem da artilharia e o condestável

O gentil homem da artilharia era o responsável por um determinado número de peças de artilharia do respectivo trem na marcha do exército, ou tinha a seu cargo uma bateria constituída por um número variável de peças, quando estas eram dispostas em campanha ou num cerco. Segundo se pode ler  no título 23 da proposta de Ordenanças Militares de 1643,

Os gentis homens da artilharia hão-de ser eleitos de capitão de gastadores ou sargentos reformados; e hão-de exercitar o meneio e carruagem de seis peças, e assistir no marchar, alojar e plantar as baterias, fazendo que se conduza e haja tudo o necessário para elas.

Note-se que a as seis peças por gentil homem acima referidas não eram necessariamente uma dotação fixa, sendo a composição da artilharia num exército variável de acordo com os fins pretendidos e as disponibilidades materiais. Isso mesmo é observado num comentário por Joane Mendes de Vasconcelos a propósito de um outro título das Ordenanças, o 47, que pretendia regulamentar a distribuição da artilharia em proporção ao efectivo total de infantaria e cavalaria. Conforme apontou o reputado general, a artilharia se regula com as facções [ou seja, com a natureza das operações], e não com o número, e assim não é matéria para Vossa Majestade decidir em Ordenanças Militares. A propósito dos gentis homens da artilharia e do título 23, Joane Mendes mostrou algumas reservas a propósito da intenção régia (ou de quem aconselhou em privado o Rei nesse ponto) de fazer ascender ao posto os capitães de gastadores e sargentos reformados:

Se (…) tiverem suficiência para ocupar este cargo (…), se poderá eleger deles, quando não de condestáveis práticos e autorizados, sendo este um dos postos que se deve prover mais pela prática que por outro algum merecimento.

O posto de condestável não tinha nada que ver com o prestigioso cargo militar do período medieval. Era o chefe de peça, sendo também um deles o ajudante do gentil homem da artilharia.

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 65 e 83-84.

Imagem: Artilheiros em acção. Reconstituição histórica do período da Guerra Civil Inglesa. Kelmarsh Hall, 2007. Foto de Jorge P. Freitas.

Capitães-Generais – Espanha – Província de Extremadura

À semelhança do que foi aqui publicado a respeito dos Governadores das Armas das diversas províncias do Reino de Portugal, apresento agora a lista das personalidades que ocuparam o posto equivalente – Capitão-General – na província de Extremadura.

1641 – Manuel de Acevedo y Zúñiga, Conde de Monterrey.

1641-1643 – Juan de Garay Otañez y Rada.

1643-1644 – Conde de Santiesteban.

1644-1645 – Gerolamo Maria Caracciolo, Marquês de Torrecuso (napolitano; aparece referido em alguns documentos portugueses como “Marquês de Torrecusa”).

1645-1647 – Diego Mesía Felipez de Guzmán, Marquês de Leganés.

1647-1648 – Enrique Pimentel, Marquês de Tavara.

1648-1650 – Diego Mesía Felipez de Guzmán, Marquês de Leganés.

1650-1661 – Francisco de Tutavila y del Tuffo, Duque de San Germán.

1661-1664 – D. Juan José de Áustria.

1665-1667 – Luis de Benavides y Carrillo, Marquês de Caracena.

Bibliografia: TEODORO, Álvaro Meléndez – Apuntes para la Historia Militar de Extremadura, Badajoz, Editorial 4 Gatos, 2008, pgs. 105-123.

Imagem: D. Juan José de Áustria, filho ilegítimo de Filipe IV. Comandou o exército espanhol nas bem sucedidas campanhas do Alentejo de 1661 e 1662. Chegou a conquistar Évora em Maio de 1663, mas acabou por ser derrotado na batalha do Ameixial, em 8 de Junho do mesmo ano. Retrato de 1655-1660, Museu do Prado, Madrid.

Postos do exército português (20) – o preboste geral

A sentinela Carl Fabritius 1654

O termo preboste deriva do latim proepositus. A designação corresponde ao oficial responsável pelo policiamento, aplicação e execução da justiça militar. Conforme escrevia Bartolomé Scarion de Pavia na sua Doctrina Militar… (1598), es cargo muy odioso y poco ó nada honroso. Esta afirmação releva das obrigações pouco simpáticas do preboste geral, que tinha de mandar enforcar, por vezes, os soldados que infringiam a disciplina militar. Em certos casos, nem os oficiais escapavam ao cumprimento da ordem de detenção levada a cabo por este seu camarada. Ascendia-se a preboste geral a partir do posto de capitão de infantaria, de acordo com o projecto de Ordenanças Militares de 1643, embora Joane Mendes de Vasconcelos, nos seus comentários, advertisse que considerando o humor dos portugueses [ou seja, o carácter], me parece bastará serem eleitos de ajudantes de infantaria. Referia ainda o general português que o preboste geral tem uma companhia de cavalos com patente de arcabuzeiros, dois tenentes e um capelão, que o acompanham com o verdugo, porque tudo é necessário para a breve execução da justiça. A companhia do preboste geral (uma das que, depois da reforma da cavalaria portuguesa de 1664, se manteve independente, isto é, não enquadrada em troços semi-permanentes) devia compreender um mínimo de 40 soldados. As Ordenanças Militares de 1643, no título 36, explicitavam que o exercício do cargo implicava a verificação da execução das ordens e bandos (editais militares), policiamento dos caminhos e atribuição dos lugares dos vivandeiros no acampamento. Estas funções não são totalmente estranhas às que passaram a ser desempenhadas pelas unidades de polícia militar em épocas posteriores.

Bibliografia:

AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pg. 78.

ALMIRANTE, José, “Preboste”, in Diccionario Militar, Madrid, Ministerio de Defensa, 1989, vol. II, pg. 871.

Imagem: “A sentinela”, quadro de Carl Fabritius (1654). Vencido pelo sono, o mosqueteiro estará metido em grandes sarilhos se calha o preboste geral passar por ali…

Governadores das Armas – Portugal – Província da Estremadura

Jerónimos

1642 – João de Vasconcelos e Sousa, 2º Conde de Castelo Melhor.

1658 – D. António Luís de Meneses, 3º Conde de Cantanhede e 1º Marquês de Marialva.

1668 – D. João de Mascarenhas, 2º Conde da Torre e 1º Marquês de Fronteira.

Imagem: “Eglise et Couvent Royal á Bellem” – Mosteiro dos Jerónimos, água-forte colorida, inícios do séc. XVIII; apesar da disparidade temporal, o aspecto desta parte de Lisboa não diferia muito da que apresentava décadas antes, durante a Guerra da Restauração. Biblioteca Nacional, Iconografia, E979A.

Governadores das Armas – Portugal – Província do Alentejo

Elvas

1640-1641 – D. Afonso de Portugal, 5º Conde de Vimioso.

1641 – Matias de Albuquerque.

1641-1643 – Martim Afonso de Melo.

1643 – Joane Mendes de Vasconcelos; D. Vasco de Mascarenhas, Conde de Óbidos; Matias de Albuquerque; Francisco de Melo (general da cavalaria, governador interino).

1643-1645 – Matias de Albuquerque (desde 1644, 1º Conde de Alegrete).

1645 – Joane Mendes de Vasconcelos (interino).

1645-1646 – João de Vasconcelos e Sousa (2º Conde de Castelo Melhor).

1646 – Matias de Albuquerque (1º Conde de Alegrete).

1646-1647 – Joane Mendes de Vasconcelos.

1647 – André de Albuquerque Ribafria (interino).

1647-1650 – Martim Afonso de Melo, 1º Conde de São Lourenço.

1650-1654 – D. João da Costa, 1º Conde de Soure.

1654-1655 – André de Albuquerque Ribafria (general da cavalaria, interino).

1655-1656 – Francisco de Melo, 1º Conde da Ponte.

1656-1657 – D. João da Costa, 1º Conde de Soure.

1657 – André de Albuquerque Ribafria (general da cavalaria, interino).

1657-1658 – Martim Afonso de Melo, 1º Conde de São Lourenço.

1658 – Joane Mendes de Vasconcelos; André de Albuquerque Ribafria (general da cavalaria, interino).

1658-1659 – D. António Luís de Menezes, 3º Conde de Cantanhede.

1659-1662 – D. Jerónimo de Ataíde, 6º Conde de Atouguia.

1662 – Frederick Schomberg, Conde de Schomberg; D. António Luís de Meneses, 1º Marquês de Marialva.

1663-1664 – D. Sancho Manuel de Vilhena, Conde de Vila Flor.

1664-1665 – D. António Luís de Menezes, 3º Conde de Cantanhede.

1665-1667 – Frederick Schomberg, Conde de Schomberg.

1667-1668 – Dinis de Melo de Castro (mais tarde, Conde de Galveias).

Imagem: Planta das fortificações de Elvas, de autor espanhol, in La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

Postos do exército português (16) – o tenente de mestre de campo general

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Dando sequência à série sobre os postos do exército português (já passaram três meses desde que foi publicado o último artigo), cabe hoje a vez do tenente de mestre de campo general. Como o nome indica, era o auxiliar do comandante supremo da infantaria de uma província ou de um exército provincial, e tinha, por sua vez, um ou mais ajudantes. Nos comentários às Ordenanças Militares de 1643, Joane Mendes de Vasconcelos refere-se a este posto nos seguintes termos:

Os tenentes de mestre de campo general se devem consultar sempre de sargentos mores, capitães de cavalos ou tenentes de general da artilharia, e nunca de capitães de infantaria, por não ficarem iguais com seus ajudantes, que de capitães sobem a este posto.

As funções do tenente de mestre de campo general eram exercitar e distribuir todas as ordens recebidas do mestre de campo general e fazer o reconhecimento, no terreno, dos postos que o exército deveria ocupar.

Fonte: “Ordenanças Militares de 1643″, tit. 14º, in AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 60-61.

Imagem: Pormenor do painel de azulejos representando a Batalha das Linhas de Elvas, 14 de Janeiro de 1659. “Sala das Batalhas”, Palácio dos Marqueses de Fronteira.

O tambor-mor e o tambor

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Tal como o trombeta, também o tambor (ou atambor) não era verdadeiramente um posto, mas sim uma função especializada. Contudo, o tambor-mor era um dos elementos da primeira plana de um terço, e portanto considerado “oficial” nas listas de efectivos. Na orgânica do exército português do período da Guerra da Restauração havia um tambor-mor por terço e dois tambores por companhia de infantaria. A função destes era a sinalização sonora das ordens para a respectiva unidade, enquanto ao tambor-mor competia a instrução e exame dos tambores e a sua repartição pelas companhias.

Na escala das representações sociais da Era Moderna, o tambor não era considerado um ofício nobre, ao contrário, por exemplo, do trombeta. A razão para essa diferenciação, estranha nos nossos dias, mas enraizada no imaginário da época, era o facto do tambor usar as mãos para percutir a caixa de guerra (assim se chamava, com propriedade, o instrumento tambor). Tratava-se, deste modo, de um trabalho mecânico, tal como o de um lavrador, ou o de um criado, ou o de um artesão. Já o trombeta fazia soar o seu instrumento através do sopro, algo que vinha do interior (como a alma) – e além disso militava na cavalaria, a forma mais nobre de guerrear, de acordo com o sistema de valorações do período. Daí a diferença bem marcada entre ambos os cargos, ainda que as funções do trombeta e do tambor se resumissem, na prática, ao mesmo fim.

O tambor-mor não arrastava consigo a vileza dos tambores comuns. Bartolomé Scarion de Pavia, escrevendo na parte final do século XVI, dizia que Y aunque el oficio de atambor es oficio bajo y no de honra, y asímismo es el pífaro, con todo esto los atambores mayores de tercio deben ser hombres de bien (…) Han de entender que son necesarios para más que echar bandos generales y repartir los otros atambores caminando y en los escuadrones, y para llevar algun mandado ó embajada de un escuadron á otro. (Bartolomé Scarion de Pavia, Doctrina Militar, fl. 103, citado por José Almirante, in “Tambor”, Diccionario Militar, Madrid, Ministerio de Defensa, 1989, vol. II, pg. 1009; esta obra de Scarion de Pavia também foi editada em Lisboa, na oficina de Pedro Crasbeeck, em 1598 – na língua original, o castelhano).

Sobre os tambores muito pouco se escreveu durante a Guerra da Restauração, pois o rufar das caixas de guerra fazia parte do quotidiano militar, de uma forma tão natural que pareceria redundante demorar-se sobre esse assunto qualquer escrito. Será necessário recuar até ao século XVI e ao reinado de D. Sebastião para encontrarmos, em português, uma descrição detalhada das funções do tambor e até do próprio instrumento, pela pena de Isidoro de Almeida (texto vertido para português actual):

Os modernos, para mandarem os infantes, usam o tambor, a que outros chamam caixa. Este é um instrumento de madeira com duas bocas, como todos sabem, em cada uma das quais tem um parche de bezerro ou pergaminho, e sobre um batem com dois paus, e no outro tem dois ou quatro bordões de nervo torcidos, temperados com um temperador de pau, que os aperta e alarga, de maneira que, batendo com os paus no parche, reverberam os bordões e tornam a redobrar o golpe, e assim causam maior rumor (…).

As peles estão fixas em uns arcos, e sobre estes outros arcos, em que prendem os cordéis com que as peles se entesam e apertam (…). As peles são de bezerro, de um ano, e para serem mais fortes e durarem mais, querem-se peladas sem cal, com cinzas ou com farelos, e como derem o cabelo ficam boas, mas não querem sal, por não reverem no tempo húmido.

A madeira do tambor, se pudesse ser de um pau inteiro, seria melhor, quando não, quanto mais unida e grudada for, tanto melhor. De nogueira são muito bons, e quer que tenha grossura na madeira de meio dedo pelo menos, e algum tanto mais, se é delgada, recebendo o som em si, não o dá (quando o batem) do pergaminho dos bordões, e soa menos então.

A medida que se tem experimentada para toar mais é dois palmos e meio de vão de boca, e outro tanto de madeira, de boca a boca, e mais não, porque se a madeira é mais comprida vai no vento mais fraco ao parche, e repercutem com menos força os bordões.

O melhor dos dois couros se porá aonde se bate com os paus, os paus do bater se querem de dois palmos de comprido, e grossos por uma parte, que é a que está na mão, e delgados pela outra, com que batem. Naquela parte com que batem, por não romperem o couro, devem ter uma cabeceta pequena, menor que uma avelã; querem-se lavrados ao torno de madeira pesada, para contrapesarem nas mãos ao bater e assim com menos força de mão, dão maior golpe.

Esta é a caixa do tambor, com que o destro oficial e prático tangedor, com a ligeireza das mãos e com o compasso dos golpes, significa e declara o que quer o capitão e o que manda aos seus soldados. Este lança o bando ou pregão do que se há-de fazer, como que se juntem à bandeira, que vão a receber a paga, que tal dia é a mostra e resenha, que vão ao exercício a tal lugar, que vão tomar mantimentos ou munições, que vão ao trabalho, e deita bando de todas as mais coisas que se hão-de fazer, o qual bando é um tocar, e um som diferente de todos os outros, o qual somente significa bando.

Pelo que o tambor que tem primor não mistura com o bando outro som, como fazem os bisonhos (…). Também toca ao tambor o recolher à bandeira, com outro som diferente; e toca o marchar em ordenança, ou caminhar, ou quando caminhando se há-de fazer alto, ou estar quedo. Toca quando um esquadrão, tendo arvorado, se quer melhorar em sítio, sem calar os piques ao ombro avante avante. Toca mão em pique, mão em pique; é aproximar-se, à arma; e no tempo de combater: toca arma, arma. Toca a escaramuça, e toca carga, carga de mão em mão; e toca a retirada atrás, dizendo muito claro: retirar para trás, retirar para trás.

(…) Querem-se todos estes sons muito a compasso, e com as medidas dos tempos guardadas, precisamente, como músico de bom ouvido, e nisto está o ser bom tambor, e não em fazer rumor cegamente sem entender o que faz.

(Isidoro de Almeida, “Quarto Livro das Instruções Militares de Isidoro de Almeida”, in Alberto Faria de Morais, Arte Militar Quinhentista, separata do Boletim do Arquivo Histórico Militar, Lisboa, s.n., 1953, pp. 181-183; edição original: Évora, em casa de André de Burgos, 1573.)

Imagem: Pormenor do painel de azulejos representando a batalha das Linhas de Elvas, 14 de Janeiro de 1659. Sala das Batalhas, Palácio dos Marqueses de Fronteira. Note-se os tambores, no canto superior esquerdo. Durante a Guerra da Restauração – tal como nos diversos conflitos dos séculos XVI a XIX – rapazes muito jovens, por vezes crianças ainda, eram incorporados nos exércitos como tambores, conforme se pode ver nesta representação.

Postos do exército português (adenda) – ainda sobre o ajudante de sargento-mor

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Quando foi publicado o pequeno artigo sobre o ajudante de sargento-mor (nº 11 desta série), ficou por referir que a insígnia do militar que ocupava este posto tinha uma utilidade prática. Conforme escreveu o sargento-mor castelhano (ao serviço de Portugal) Antonio Gallo, na sua obra Regimiento Militar, que trata de como los soldados se hande governar, obedecer, y guardar las ordenes, y como los oficiales los han de governar (Lisboa, Paulo Craesbeeck, 1644):

El Ayudante hade traer una bengala de tres pies, y medio, que es la medida que hade aver de pecho a espalda de soldado a soldado en esquadron, por ser leve, y ligera: y andando en orden, para formar com facilidad, podrà ver si estan en su compaz los soldados. (pg. 52 v)

Antonio Gallo foi durante algum tempo sargento-mor do terço de Estacius Pick, até se ter reformado em 1643.

Imagem: A organização dos esquadrões de infantaria no terreno era tarefa que cumpria ao sargento-mor, coadjuvado pelo seu ajudante. Reconstituição histórica do período da Guerra Civil Inglesa, Kelmarsh Hall, 2007. Foto de J. P. de Freitas.

Postos do exército português (15) – o ajudante de tenente de mestre de campo general

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O ajudante de tenente de mestre de campo general era um oficial colateral, o de mais elevada patente entre os desta categoria. Segundo o disposto nas Ordenanças Militares de 1643

Os ajudantes de tenente de mestre de campo general hão-de ser eleitos de capitães de infantaria de mui particular talento e expediente; exercitam repartir e levar as ordens, e assistirem sempre na sala dos generais, repartidamente por dias.

Segundo Joane Mendes de Vasconcelos, a nomeação de sujeitos para aquele posto cabia ao mestre de campo general. Os ajudantes de tenente de mestre de campo general podiam ser nomeados para qualquer vaga de sargento-mor de um terço (de tropas pagas) do exército da sua província.

Fonte: “Ordenanças Militares de 1643”, tit. 18º e 19º, in AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 62-63.

Imagem: Representação de infantaria portuguesa no chamado “Biombo dos Marqueses de Fonte Arcada”, séc. XVII.  Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.

Postos do exército português (14) – o tenente-general da cavalaria

Para tenentes-generais da cavalaria se hão-de nomear dos comissários gerais da cavalaria de melhor aprovação, e também se poderão eleger de capitães de couraças, cuja qualidade, serviços e partes obriguem a serem escolhidos [ou seja, os distingam para a promoção] para exercitarem o dito posto; são os que ajudam e hão-de dar todas as ordens que o comissário geral da cavalaria e mais oficias houverem de receber (…).

Era esta a disposição do título 15 do projecto de Ordenanças Militares de 1643. O comentário de Joane Mendes de Vasconcelos acrescentava que também deviam os tenentes-generais da cavalaria provir da infantaria, promovendo-se mestres de campo àquele posto. Seria conveniente, acrescentava, porque muitas vezes iam os tenentes-generais em operações com forças mistas de cavalaria e infantaria, e era necessário que saibam de uma e outra cousa, para mandar com acerto.

Este posto tinha a particularidade de poder ser também um cargo. Isto é, podia ser desempenhado por um oficial com outra patente, como coronel (estrangeiro) ou comissário geral. No entanto, não foram muito frequentes estes casos. Em cada exército provincial começou por haver um tenente-general da cavalaria – mas não antes de 1643, nem sequer no Alentejo, cujo exército era o maior de todos. Com o decorrer do conflito, o aumento dos efectivos da cavalaria impôs o consequente aumento do número de oficiais com aquela patente. Idealmente, o topo da estrutura hierárquica na cavalaria devia compreender um general, dois tenentes-generais e quatro comissários gerais, embora em certos casos um tenente-general pudesse bastar para assegurar o comando da cavalaria de um exército provincial pouco numeroso, podendo ser então designado como governador da cavalaria.

Nos primeiros anos da Guerra da Restauração, alguns oficiais estrangeiros obtiveram a patente de tenente-general. Na Beira, o francês Jacques Talonneau de La Popelinière morreria em combate em Março de 1644, já com aquele posto (chegara a Portugal havia dois anos e meio com a patente de capitão de cavalos). O holandês Jan Willem van Til foi tenente-general no Alentejo em 1645, embora sem grande destaque. Já o francês Achim Avaux de Tamericurt foi um do mais brilhantes naquele posto, que desempenhou no Alentejo e na Beira. Também se destacou, no Alentejo, o italiano (de Roma) João Vannicelli. Entre os portugueses, merecem destaque grandes comandantes da cavalaria como D. João de Mascarenhas (mais tarde, Conde de Sabugal), Dinis de Melo de Castro, D. João da Silva, entre vários que ocuparam aquele posto.

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pg. 61.

Imagem: Capa da edição impressa de 1707 da obra Maneio da Cavallaria escrito pello Conde Galeaço Gualdo Priorato Com annotaçoens de Dom João Mascarenhas Conde do Sabugal do Conselho de Guerra d’ElRei Dom Affonço 6º. D. João de Mascarenhas foi tenente-general e general da cavalaria do Alentejo na segunda metade da década de 1640.

Postos do exército português (13) – o mestre de campo

Os mestres de campo ou são feitos por grande qualidade [fidalguia] ou por grandes serviços [desempenhados na guerra].

(carta de Matias de Albuquerque, Conde de Alegrete, 22 de Agosto de 1644, in Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI, publicadas e prefaciadas por P. M. Laranjo Coelho, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, vol. II, pgs. 57-58).

O posto de mestre de campo tinha grande prestígio. Ao tempo da Guerra da Restauração existia também nos exércitos espanhol e francês. Encontrava-se apenas na infantaria e correspondia ao posto de coronel, designação que em épocas posteriores iria substituir por completo a de mestre de campo. Em rigor, havia coronéis no exército português em simultâneo com mestres de campo, pois por tradição as grandes unidades da ordenança de Lisboa eram designadas regimentos (e não terços, embora este nome surja de vez em quando nos documentos, um pequeno erro gerado pelo hábito).

De facto, atendendo ao que exigiam as regras militares, reflectidas no projecto de Ordenanças Militares de 1643, para se ascender ao posto de mestre de campo era necessário ter servido durante 12 anos em cenário de guerra, dos quais 4 no posto de capitão. Desta conformidade estavam isentas as pessoas de qualidade e nobreza, o que na prática significava que os terços podiam por ser entregues a elementos da fidalguia sem a necessária experiência militar. Sobre o sargento-mor recaía então uma responsabilidade maior.

De qualquer modo, se exceptuarmos os primeiros anos da guerra, esta situação foi relativamente rara. Houve fidalgos que se revelaram bons mestres de campo. Ao posto ascenderam também vários soldados de fortuna, com tirocínio feito nos escalões inferiores, vários deles estrangeiros. Isto no exército pago, pois nos auxiliares e na ordenança era frequente o sargento-mor ter de desempenhar o comando efectivo do terço, dado o absentismo dos mestres de campo, ou a sua inexperiência militar.

O mestre de campo dispunha de um cavalo, se bem que houvesse quem preferisse desmontar e munir-se de espada e rodela, combatendo a pé no calor da refrega.

Imagem: Combate de infantaria. Recriação histórica da Guerra Civil Inglesa, Kelmarsh Hall, 2007. Foto do autor. Reorganizar o esquadrão de infantaria depois da confusão do choque era uma tarefa difícil, mesmo que se rompesse o contacto com alguma ordem. A maioria dos mestres de campo confiava na experiência dos seus sargentos-mores para esse fim.

Postos do exército português (12) – o sargento-mor

O sargento-mor era o segundo-comandante de um terço de infantaria. A designação do posto mudaria para major já no século XVIII, bem como as responsabilidades de comando. Na verdade, apesar de em alguns exércitos europeus – como o inglês, por exemplo – existir o posto de major, as atribuições daquele oficial eram então diferentes daquelas que viria a ter mais tarde, quando se tornaria comandante de um batalhão (e este passaria a ser uma sub-unidade do regimento). A respeito da evolução de sargento-mor para major, veja-se este artigo de Lagos Militar.

No período da Guerra da Restauração, o sargento-mor tinha funções muito técnicas, as quais já foram abordadas neste artigo. Vejamos o que dizia o projecto de Ordenanças Militares de 1643 a respeito deste posto:

Os cargos de sargentos-mores se hão-de prover em capitães de muita teórica, prática e valor, e quando se façam de terços já formados, se há-de procurar elegê-los dos mesmos capitães que neles houver; há-de ter dois ajudantes cada um, e ajudam aos mestres de campo imediatos a eles, no governo dos terços e a quem toca formá-los, receber as ordens e dá-las, e fazer que se observem todas as mais que devem guardar os oficiais e soldados de cada terço (…). (AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 62-63).

A necessidade de haver sargentos-mores experientes nos terços (experiência que podia faltar aos mestres de campo, ou por serem de recente promoção a partir de capitães de cavalos, ou por serem providos no posto devido à sua nobreza, mas sem conhecimento profundo da guerra viva) fazia com que a maioria destes oficiais fosse de origem plebeia. Eram chamados soldados de fortuna, isto é, profissionais das armas, e como tal podiam ser estrangeiros, ainda que súbditos do rei de Portugal. Alguns destacaram-se pela sua qualidade e competência, como os espanhóis Antonio Gallo (reformado em 1643, já idoso e com pouca saúde) e Antonio Sanchez del Pozo (que morreu em combate). Muitas vezes, os terços eram comandados pelos sargentos-mores, devido à ausência dos respectivos mestres de campo. Isto era mais frequene entre as forças milicianas de auxiliares e da ordenança.

É precisamente da obra Regimiento Militar de Antonio Gallo que se retira esta passagem:

El Sargento mayor traerà un baston de quatro palmos y medio, que es el terreno, que el soldado en escuadron ocupa de costado a costado, y le puede servir quando quisiere medir un terreno justo, y no es necessario que el baston tienga hierro, que no agravia al soldado, castigandole con el, que es su insignia. (pg. 28 v)

Já perto do final da Guerra da Restauração, um relatório inglês elogiava a competência e combatividade dos sargentos-mores portugueses. O elogio é de salientar, numa época em que a apreciação (ou depreciação) dos estrangeiros era condicionada por muitos preconceitos e algum desprezo.

Imagem: Infantaria em progressão. O controlo da formação no terreno era uma das tarefas do sargento-mor. Reconstituição histórica da Guerra Civil Inglesa, Kelmarsh Hall, 2007. Foto do autor.

Postos do exército português (11) – os ajudantes de sargento-mor e de comissário geral

Entramos aqui no terreno do que, à época, se designava por oficiais colaterais. Não existe um paralelo directo com a actualidade, a menos que queiramos ver nesta categoria de oficiais um ajudante de campo – algo que, neste escalão de comando, seria bastante invulgar (sargento-mor na infantaria e comissário geral na cavalaria corresponderiam, com alguma liberdade de aproximação, ao actual posto de major).

Tendo em consideração as necessidades dos postos de sargento-mor e de comissário geral, exigindo o comando e disposição no terreno das companhias, tornava-se necessária a colaboração de um – ou mais vulgarmente dois – ajudantes. Na infantaria existia uma hierarquia entre estes oficiais: o ajudante do número e o ajudante supranumerário. A raiz desta distinção estará relacionada com o facto do sargento-mor poder delegar funções num dos seus ajudantes quando tivesse de se ausentar do terço (conforme refere René Quatrefages na sua obra Los Tercios, Madrid, Servicio de Publicaciones del Estado Mayor del Ejército, 1983). Daí necessidade de se estabelecer uma hierarquia entre os ajudantes, para evitar situações de pouca clareza sobre quem teria a primazia numa situação de emergência em que o sargento-mor estivesse ausente ou incapacitado. A função habitual dos ajudantes era a distribuição das ordens pelos capitães, mas também colaboravam com o sargento-mor na demorada tarefa de preparar o esquadrão (formação táctica) a partir do terço. Ao posto de ajudante do número podiam ser promovidos os alferes de infantaria e os ajudantes supranumerários, e a este último posto os alferes de infantaria, dando sempre primazia ao da companhia do mestre de campo.

No caso da cavalaria não havia esta distinção. As funções dos ajudantes de comissário geral eram a de distribuir as ordens pelos capitães e a de auxiliar o comissário geral na disposição táctica dos batalhões. A promoção fazia-se a partir do posto de tenente de couraças ou de cavalos arcabuzeiros.

Imagem: Militares de meados do século XVII. Reconstituição histórica, Old Sarum. Foto do autor.

Postos do exército português (10) – o comissário geral da cavalaria

Fazendo uma comparação com a actualidade, poderemos ver no comissário geral o equivalente a um major. O fundamento para essa analogia reside nos atributos do posto: o comando de um conjunto de companhias. Contudo, este tipo de comparações cai facilmente no anacronismo se não atendermos às especificidades culturais da época, aos seus valores e aos modos de perceber e conceber a realidade, muito diferentes dos de hoje. Para além disso, existe a própria evolução e diferenciação do conceito militar de comissário geral de país para país durante o século XVII. Convirá, por isso, começar por definir aquele posto segundo o entendimento que dele se fazia à época – e que não era uniforme nos seus atributos, diga-se.

No exército francês, pelo menos até aos meados do século XVII, o comissário geral era um mero ajudante de campo do coronel que comandava um regimento. Não se tratava de um posto, mas de um cargo habitualmente confiado a um capitão com larga experiência na manobra e condução de companhias no terreno. Mesmo em exércitos onde o comissário geral era considerado um posto, casos do português e do espanhol, sobreviveu um certo conceito de cargo extraordinário de um capitão: por exemplo, a remuneração básica de um comissário geral era a de um capitão de couraças, acrescida de um bónus inerente à função que lhe competia, a de conduzir e dispor no terreno os troços compostos por várias companhias e chefiar em combate os vários batalhões, formações tácticas em que as mesmas companhias eram dispostas. Só nesta área tinham um poder superior ao dos capitães de cavalos. Não tinham outra jurisdição sobre qualquer companhia além da sua.

Não havendo regimentos em Portugal e em Espanha, excepto entre as forças estrangeiras que serviam em ambos os exércitos, cabia aos comissários gerais comandar os troços. Isto colocava-os quase ao nível dos coronéis. Todavia, os coronéis era geralmente proprietários dos seus regimentos, também eles formados por duas a quatro companhias cada, pelo que se consideravam superiores aos comissários gerais nos casos em que ambas as patentes se encontravam em simultâneo no terreno. Em Portugal, houve necessidade de atribuir, em 1643, a patente extraordinária de coronel a um comissário geral (o único existente na província do Alentejo), de modo a que pudesse impor a sua autoridade aos coronéis estrangeiros, que de outro modo se recusavam a obedecer-lhe.

O posto de comissário geral da cavalaria era inferior ao de tenente-general da cavalaria e, como é óbvio, ao de capitão-general da cavalaria (designação completa mas muito pouco utilizada do posto, sendo quase sempre substituída pela de general da cavalaria).

Na obra Maneio da Cavalaria, Galeazzo Gualdo Priorato ainda referia o comissário geral como um cargo que devia ser atribuído ao capitão com mais experiência e não ao de mais valor nem antiguidade, porque muito mais tem que fazer neste posto a experiência do que a valentia (pg. 72).

Bibliografia: para além da obra citada no texto do artigo, com ligação para a referência completa, e os livros que aparecem noutras partes deste blogue, gostaria de indicar também a entrada “Comisario”, in ALMIRANTE, José, Diccionario Militar, Madrid, Ministerio de Defensa, 1989, vol. I, pgs. 160-162.

Imagem: Escaramuça de cavalaria, Peter Snayers, Dullwich Picture Gallery, Londres.

Postos do exército português (9) – o capitão de cavalaria

De todos os postos militares, aquele que maior peso tinha no imaginário seiscentista era o de capitão de cavalos. Associado aos valores herdados da nobreza medieval, do capitão de cavalos se esperava, no mínimo, que servisse com a honradez que os ancestrais pergaminhos exigiam. E por isso, a ideia de que o posto devia ser confiado apenas a pessoas de nobre nascimento ainda prevaleceu nas mentes mais conservadoras de alguns, pelo menos nos anos iniciais do conflito. A realidade, todavia, encarregar-se-ia de demonstrar que era preciso muito mais do que uma ascendência fidalga para encabeçar uma companhia de cavalos. A evolução dos modos de fazer a guerra não se compadecia com alguns arcaísmos que teimavam em subsistir. Mas num aspecto o mundo material não desenganava a concepção imaginada das qualidades do posto: os capitães de cavalos eram responsáveis pelas suas companhias ao ponto de garantirem, do seu próprio bolso, a aquisição e manutenção das montadas. A Coroa nunca conseguiu cumprir pontualmente as suas obrigações com os soldos e outras despesas necessárias à manutenção das companhias de cavaria. Isto explica, em parte, o grau de autonomia dos capitães de cavalos e a não introdução do sistema de regimentos no exército português (aliás, também não o havia no exército espanhol).

Em Portugal, as companhias de cavalos do exército pago ou das milícias da ordenança, auxiliares, pilhantes ou moradores eram sempre comandadas por capitães. Exceptuavam-se as companhias dos oficiais superiores, que na prática estavam a cargo dos respectivos tenentes. Havia, no entanto, uma distinção entre os capitães de couraças e os capitães de cavalos arcabuzeiros. As disputas quanto à primazia de uns sobre outros foram motivo para quezílias e mal-entendidos. Só em 1651 ficou assente que os capitães de couraças seriam considerados superiores, na hierarquia militar, aos de cavalos arcabuzeiros, pois até essa data valia a antiguidade das cartas de patente de cada um, o que causava ressentimentos entre os capitães de couraças, cujas companhias eram mais prestigiadas.

Mas o que seria de esperar de um capitão de cavalos? Alguém que passou pelo posto sem grande experiência prévia, nem brilhantismo no desempenho, apesar de possuir a qualidade da nobreza associada à condução de uma companhia, deixou assim escrito no seu esboço de tratado:

O posto de capitão de cavalos, por ser de tanta autoridade e reputação em Espanha, foi sempre pretendido e requisitado de Príncipes e Senhores grandes, em que ainda ordinariamente e assim se devia sempre de prover, não deixando contudo de fora aos soldados de nome e de merecimentos, entendendo-se que na guerra o valor se iguala à melhor nobreza, que só por si não basta para fazer a um capitão perfeito sem ser acompanhada com alguma prática e experiência das armas (…).

Pelo que o capitão que não tiver de guerra muita experiência procurará trazer junto a si algum bom oficial ou soldado velho de suficiência, para que faça menos faltas ou lhe encubra algumas (…).

(…) Os capitães são todos livres administradores de suas companhias e provêem os cargos delas como lhes parece absolutamente, como é tenente, alferes e os outros todos, podendo-os dispor e despedir na mesma forma, dando conta ao general ou ao seu lugar-tenente em sua ausência, que devem deixar aos capitães em sua liberdade, por ser esta a sua preeminência.

Uma visão que reflecte uma noção mais assente na realidade da guerra no terreno. Foi D. João de Azevedo de Ataíde que assim escreveu, a páginas 34 até 37 do seu tratado de cavalaria, entre os anos de 1644 e 1647.

Imagem: Oficiais de cavalaria. Pormenor do painel de azulejos relativo ao último combate da Guerra da Restauração na fronteira de Trás-os-Montes. “Sala das Batalhas”, Palácio dos Marqueses de Fronteira.

Postos do exército português (8) – o capitão de infantaria

O capitão de infantaria comandava uma companhia. A insígnia do seu posto era uma gineta, espontão rematado com borlas na parte superior da haste. Em combate, o capitão podia encarregar o seu pajem do transporte da gineta e armar-se com um pique, um mosquete ou (o que era mais vulgar) combater com espada e rodela. O posto de capitão de infantaria era considerado inferior ao de capitão de cavalos, todavia era um posto de grande consideração na hierarquia militar seiscentista. Sobre a maneira de prover os capitães das companhias, tanto das tropas pagas como das milicianas, esclarece o título 9 do projecto de Ordenanças Militares de 1643:

Para capitães das companhias de infantaria se elegerão alferes reformados e ajudantes, em que uns e outros hajam servido oito anos na guerra com praça assentada debaixo de bandeira, que tenham as partes necessárias para exercitarem com prática e experiência o muito que a cada um deles se oferece e encarrega cada hora que exercitar, e os que forem de mais serviços e aprovados merecimentos nas ocasiões para maiores riscos e empenhos, precederão para serem escolhidos (…).

Porém, como em muitas outras passagens das Ordenanças Militares de 1643, Joane Mendes de Vasconcelos discordou de pormenores do projecto. No caso dos capitães de infantaria, a proposta ia contra a prática assente e instituída de facto, pelo que o experiente cabo de guerra contrapôs:

Nos terços fazem vantagem aos alferes reformados e vivos [isto é, no activo] os que são actualmente da companhia do mestre de campo, porque como governam (de ordinário) a melhor companhia deles, têm maior capacidade a este respeito que os outros, escusa consultarem-se a segunda companhia, que vaga em seu tempo, como também nos esquadrões a segunda manga de bocas de fogo do corno direito se lhes entrega firme. [Note-se, na parte final deste comentário, a referência à disposição e comando táctico.]

Também se devem admitir os alferes vivos para capitães de infantaria, toca também ao alferes entrar em capitão quando em ocasião de peleja morre o capitão da companhia, achando-se o tal alferes na mesma ocasião e proceder nela conforme as suas obrigações, e em sua pessoa concorrem as partes e requisitos convenientes.

As observações de Joane Mendes de Vasconcelos foram todas dirigidas à promoção dos alferes ao posto de capitão nas companhias de infantaria, pois que as funções inerentes ao posto eram bastante claras e sabidas, nem sendo sequer focadas no projecto – excepto no que respeitava aos ditames de ordem comportamental e moral que o capitão devia seguir. Mas aí, a resposta de Mendes de Vasconcelos foi clara:

A repreensão dos vícios que contém este capítulo toca a todos os postos, e assim me parece que se devia encomendar em título particular a conta que hão-de ter os conselheiros e os generais e não proporem a Vossa Majestade para os cargos militares pessoas conhecidas perniciosas, com escândalo.

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 55-56.

Imagem: Nesta foto de uma reconstituição histórica levada a cabo pela English Civil War Society, representando uma força de infantaria do New Model Army de Oliver Cromwell, é visível em primeiro plano, à direita, com gola de aço (protecção para o peito), um capitão carregando a gineta (sem borlas). Repare-se na diferença entre a gineta e as alabardas dos sargentos que marcham na primeira fileira da formação, mais atrás.

Postos do exército português (5) – o sargento

O posto de sargento só existia nos terços de infantaria do exército pago e nos terços milicianos de auxiliares e da ordenança (que em Lisboa tinham a designação tradicional de regimentos).

Sobre o sargento especificava o projecto de Ordenanças Militares de 1643 no título 24, aqui transcrito em português actual:

Os sargentos hão-de nomear os seus capitães [entenda-se: os capitães hão-de nomear os seus sargentos] de cabos de esquadra ou soldados, de partes, e valor, e que hajam servido na guerra quatro anos, e aprovados na mesma forma que os alferes; (…) e os ditos sargentos ajudam aos mesmos capitães, em todo o governo e meneio das companhias, e neles vem a consistir a maior parte da observância das ordens militares.

Ao que Joane Mendes de Vasconcelos respondeu nos seus comentários:

Os sargentos devem ser eleitos com os mesmos anos de serviços e considerações que se disse dos alferes sobre o seu título [quatro anos de guerra viva – ou seja, servindo em zonas de combate – ou seis debaixo de bandeira, mesmo sem participar em acções militares].

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pg. 65.

Imagem: Armas de infantaria usadas pelos sargentos: na vertical, uma alabarda, arma pessoal e insígnia do posto. Vê-se também um capacete ou murrião (ambos os termos eram comuns na época e designavam qualquer tipo de protecção metálica para a cabeça), um peito de armas (peitoral, como se diria mais tarde) e um estoque. Foto do autor, Museu da Escola Prática de Infantaria, Mafra.

Postos do exército português (4) – o furriel

Este posto só existia na cavalaria. Sobre as qualidades que devia ter o furriel e as suas funções, escreveu D. João de Azevedo e Ataíde:

O furriel de uma companhia se deve escolher entre os soldados mais práticos e entendidos que saiba[m] ler e escrever. O seu particular ofício é alojar e repartir os alojamentos quando marcha a companhia. Recebe do almoxarife a cevada e tudo o mais que aos soldados se dá de munição, para o repartir e dar conta quando se faz o pagamento.

Partindo-se diante para efeito de alojar a companhia, só por si ou em companhia do furriel-mor, pedirá ao tenente dois soldados para o ajudarem e tornarem, em recado seu, avisar a companhia de como estão os alojamentos feitos. (…)

Na companhia tem pouca jurisdição, para castigar nenhuma, contudo, sendo pessoa de respeito e soldado prático, em ausência do alferes poderá, se parecer bem ao capitão, governar a companhia, e doutro modo não, por não ser posto militar.

Regras militares…, pgs. 26-27.

Para os leitores do século XXI poderá parecer estranha esta referência ao furriel como um “posto não militar”. Na verdade, na estrutura militar seiscentista ainda não estavam completamente separadas as esferas do civil e do militar. Deste modo, o furriel estava para a sua companhia como o oficial que desempenhava o cargo de quartel-mestre geral estava para o exército provincial, ao nível das funções de organização do alojamento. Se, com o exército em campanha, o quartel-mestre geral era sempre um militar com patente de oficial superior, já numa localidade onde as tropas alojavam em permanência, constituindo a guarnição da vila ou cidade, o cargo podia ser atribuído a um civil, normalmente um elemento da burguesia local. Mas se o quadro mental da época aproximava, pela semelhança das funções administrativas desempenhadas pelos indivíduos (ainda que em escalas diferentes), o furriel do quartel-mestre geral civil, isso não deve induzir-nos em erro quanto às tarefas puramente militares que cabiam ao furriel, que era um combatente como qualquer outro.

A importância do furriel numa companhia de cavalaria, em termos administrativos, era idêntica à dos sargentos numa companhia de infantaria. Daí que o capitão pudesse confiar no furriel e até dar-lhe o comando da companhia, na ausência do tenente e do alferes. Mas seria esta possibilidade – apresentada em outros tratados militares do período, não só no esboço efectuado por D. João de Ataíde – bem vista pela oficialidade superior?

Dinis de Melo de Castro, um oficial que fez toda a Guerra da Restauração e que atingiu o posto de general da cavalaria do Alentejo e governador das armas da mesma província, para além de ter recebido o título de Conde de Galveias, tinha uma opinião crítica a este respeito. Para ele, era coisa indigna os furriéis comandarem companhias (na ausência do próprio capitão, entenda-se, o que era muito comum), pois os capitães acrescentam [ou seja, promovem] estes furriéis se lhes dão boas contas, e como estes procuram o acrescentamento por aquele caminho, não tratam de merecerem pelo ofício de soldado, e só procuram dar boa conta da palha e cevada, e quando passam a tenentes são os que menos experiência têm.

Estas palavras de Dinis de Melo surgem numa consulta ao Conselho de Guerra em 12 de Agosto de 1665. Mesmo próximo do final do conflito, parecia prevalecer a ideia do furriel como amanuense. Mas devemos ter em conta o preconceito do fidalgo em relação a deixar à frente das companhias alguém oriundo da plebe, numa função mais conotada com a administração do que com o ofício das armas. Contudo, essa opinião, um tanto extremada, desaparecerá no século seguinte. A separação definitiva entre o campo militar e o campo civil dissiparia as dúvidas quanto ao espaço do furriel – ou melhor, quanto ao conceito que se fazia do seu papel.

Imagem: Combates durante a Batalha das Linhas de Elvas (1659). Ilustração de Pedro de Santa Colomba. Biblioteca Nacional, Iconografia, E1090V.

Postos do exército português (3) – o cabo de esquadra

O cabo de esquadra comandava… uma esquadra! O equivalente, hoje em dia, a uma secção, passe o risco de anacronismo. Na infantaria e na cavalaria, correspondia a um efectivo de 20 a 25 homens – mas na cavalaria, onde as companhias registavam, com alguma frequência, quebras de efectivos, a esquadra podia não ir além de 10 homens.

Sobre as atribuições seiscentistas de um cabo de esquadra, o tratadista italiano Galeazzo Gualdo Priorato, traduzido e comentado por D. João de Mascarenhas (Conde de Sabugal) em plena Guerra da Restauração, riscou à pena conselhos que foram seguidos pelos portugueses. Vejamos:

O cabo de esquadra

Manda este cabo a sua esquadra, a qual deve doutrinar de tudo aquilo que deve saber um soldado. Tem obrigação de antever e reparar as desordens e pendências entre eles, e imediatamente que descobrir algum indício, (…) o deve advertir ao capitão, porque a ele não lhe toca o castigá-los (…). Terá um rol dos soldados da sua esquadra e quando algum falte, dará parte ao sargento (…).

Deve conhecer quais são os mais experimentados e os mais revoltosos, para pôr estes de sentinela, e para mandá-los às facções de maior importância (…).

Achando-se o cabo de guarda com a sua esquadra, estará vigilante e cuidadoso, para que não [o] surpreenda o inimigo ainda que esteja longe, e porá as sentinelas aonde lhas mandarem pôr os seus maiores, e as mudará ele mesmo, tendo juntamente cuidado com as rondas. Instruirá as sentinelas [sobre] como devem regular-se vendo o inimigo, e como devem tocar arma e advertir sem rumor, e como se não devem retirar as sentinelas dos seus postos, senão mudadas do cabo, ou bem forçadas do inimigo, no qual caso seretirarão aos corpos de guarda.

Será razão que o cabo saiba ler e escrever, para que tenha rol da sua esquadra e seja assim o serviço melhor repartido.

D. João de Mascarenhas era um veterano da batalha de Rocroi (1643), onde se bateu (ainda muito jovem) no exército de Filipe IV. Voltou pouco depois a Portugal e aderiu à causa de D. João IV, distinguindo-se como tenente-general e general da cavalaria no exército do Alentejo. Membro do Conselho de Guerra, D. João de Mascarenhas foi, acima de tudo, um dos mais brilhantes oficiais da Guerra da Restauração. A tradução da obra de Gualdo Priorato, à qual acrescentou interessantíssimos comentários, só foi impressa em 1707, em plena Guerra da Sucessão de Espanha, mas o manuscrito foi composto na década de 60 do século XVII: Maneio da Cavallaria escrito pelo Conde Galeaço Gualdo Priorato com annotaçoens de Dom João Mascarenhas Conde do Sabugal do Conselho de Guerra d’ElRei Dom Affonço 6º. O excerto acima transcrito corresponde às páginas 78 v-79 v do manuscrito.

Também D. João de Azevedo e Ataíde se refere aos cabos de esquadra, a páginas 24 a 26 do seu rascunho de tratado:

O seu ofício próprio é terem alistados os soldados das suas próprias esquadras, os quais não só hão-de conhecer todos de nome, senão também o natural [ou seja, o local de nascimento] e qualidades deles, se são frouxos ou têm indústria [isto é, se são desembaraçados] e valor para assim os acomodar e distribuir os postos conforme aos talentos que conhecerem neles (…).

Havendo de marchar a companhia [de cavalaria] em ordem, se porão nos cabos [ou seja, nos extremos] da primeira e da última fileira, donde se não podem sair, senão fora para remediar e acudir a algum erro ou desordem dos soldados, tornando-se logo ao mesmo posto.

Imagem: Duas fileiras de mosqueteiros abrindo fogo (“dando carga“, como se diria em português do século XVII). Reconstituição histórica da Guerra Civil Inglesa, Kellmarsh Hall, 2007. Foto do autor.

Postos do exército português (2) – o soldado de cavalaria

Sobre o soldado de cavalaria, trago aqui as considerações de D. João de Azevedo e Ataíde. Este oficial relativamente obscuro, apesar de referido em várias Relações propagandísticas dos feitos de armas do início da guerra, foi comissário geral da cavalaria do exército do Alentejo entre 1644 e 1647. Deixou a carreira das armas sem glória, mas com algum proveito material, na última destas datas. Deixou também um esboço manuscrito de tratado militar sobre a cavalaria, cuja transcrição estou a ultimar e que será integrada numa resenha biográfica do ex-oficial a publicar em breve. Como curiosidades adicionais, refira-se que D. João de Ataíde foi responsável pelo recrutamento do soldado e memorialista Mateus Rodrigues, o qual serviu sob seu comando nos primeiros seis anos da guerra e do fidalgo nos legou um testemunho bem mais rico que o da literatura panegírica impressa; e que D. João foi trisavô, pela parte materna, de Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras e Marquês de Pombal.

O trecho aqui transcrito para português corrente corresponde às pgs. 17 a 23 de Regras militares da cauallaria ligeira compostas per Dom João de Azeuedo e Attayde, Comissario Geral da caualaria, do exercito, e Prouincia do Alentejo [manuscrito composto após 1644, provavelmente 1644-47].

O soldado de cavalaria

O soldado que se resolver assentar praça de cavalos deve dar por entendido que há-de servir e trabalhar sem passar a vida ociosamente, como muitos cuidam, porque os trabalhos, e principalmente os da cavalaria, são contínuos, de dia ao sol, de noite ao sereno, aos rigores dos tempos, sem ter vontade própria, sofrendo as sem razões de seus superiores, as más pagas dos Príncipes, obrigados a pelejar com risco da vida todas as vezes que o seu capitão quiser, e ainda alguma vez o inimigo, contemporizando com as rigorosas leis da honra e do mundo, certo o perigo, o prémio duvidoso, ou porque o pobre soldado não chega a alcançar o favor dos que governam, ou porque sendo as coisas limitadas, não pode haver prémio para todos (…).

Convém que o soldado de cavalo seja curioso do seu cavalo, trazendo-o sempre bem pensado [isto é, alimentado – o penso era a ração de cevada para a montada], não se desprezando de o limpar por suas próprias mãos (…). Na mesma forma se deve prezar muito do conserto e limpeza de suas armas, porque além de parecerem bem na paz, no tempo da peleja as armas reluzentes metem medo e temor ao inimigo (…).

Deve saber qualquer soldado governar e moderar o seu cavalo, sem o trazer desabrigado e descomposto, correr e escaramuçar assim por terra firme como pela áspera, subir e descer desenvoltamente por um e outro lado, armado e desarmado, que suposto que esteja em uso o subir e descer pela parte esquerda do cavalo, porque por ali fica mais à mão a espada e faz menos estorvo (…), contudo será importante acostumar-se a cavalgar pelas partes ambas (…).

Saberá desenvoltamente jogar todas as armas de cavalo, na tropa [designação para companhia, ou a subdivisão táctica desta, ou a formação táctica designada por batalhão] e fora dela, donde andará com bom conserto, dobrando quanto necessário for, e sucedendo por algum caso duvidar-se, se saberá tornar a reunir e juntar na tropa em seu lugar, sem se perturbar nem confundir (…).

Acudirá dos primeiros em ouvindo que se toca as trombetas, ocupando o lugar que lhe tocar, havendo de marchar seguirá ao que direitamente for diante dele, conservando-se na sua fileira, e na ordem que o seu capitão lhe dá. E quando a não chegue a alcançar de boca, fará e guardará o que vir fazer aos outros que vão diante dele. Dando a carga [quer dizer, disparando a arma de fogo] tornará a carregar depressa, contanto que com muita pressa não acerte a não carregar como convém. Por nenhum modo dará a sua carga senão muito a tempo, e quando puder, de modo que possa fazer golpe, porque o mais é perder pólvora [e] ficar desarmado ao melhor tempo.

Imagem: Combate de cavalaria – Arronches, 8 de Novembro de 1653. Painel de azulejos seiscentistas, “Sala das Batalhas”, Palácio dos Marqueses de Fronteira. Foto do Comandante Augusto Salgado.

Postos do exército português (1) – o soldado de infantaria

 

O tema desta série de entradas, que alternará com outros temas já em curso, centrar-se-á na hierarquia do exército português da Guerra da Restauração. Não se trata somente de expor os postos, funções e cargos, tentando quando possível traçar paralelos com os actuais. O traço da mentalidade do período será aqui trazido, através das regras de conduta e conselhos presentes em manuais e tratados militares para cada um dos postos.

O soldado (pago, ou seja, profissional), bastas vezes anónimo e sacrificado combatente, o mais raso da hierarquia militar, é o primeiro a passar por aqui. E ao de infantaria, contingente mais numeroso, será dada a primazia. As linhas que se seguem foram redigidas em castelhano, nos primeiros anos da Guerra da Restauração, pelo sargento-mor António Gallo. Nascido no reino vizinho, cavaleiro professo da Ordem de Cristo, optou por tomar como seu soberano D. João IV, continuando a residir em Portugal após a Aclamação. Foi nomeado sargento-mor de um terço pago na província do Alentejo em Janeiro de 1641, quando já estava no Outono da vida. Valente militar, muito experiente, combateu em vários recontros, aposentando-se em finais de 1643, por motivos de saúde, quando era sargento-mor do terço do mestre de campo holandês Estacius Pick. No ano seguinte saiu à estampa a sua obra Regimiento Militar, que trata de como los soldados se hande governar, obedecer, y guardar las ordenes, y como los oficiales los han de governar, Lisboa, Paulo Craesbeeck, 1644. O texto a seguir apresentado foi vertido para português corrente, correspondendo ao texto das fls. 1 a 3 da referida obra:

O Soldado

Em assentando praça o soldado nas listas do Rei nosso Senhor, fica honrado e obrigado a servir bem a seu Rei e capitão-general, e a  obedecer a todos os seus oficiais, em tudo o que fôr de serviço do Rei nosso Senhor, sob pena de grave castigo (…).

E para ser honrados, e alcançar vitórias e ser providos em cargos honrados, devem ser bons Cristãos (…) os soldados, pois sua profissão é mais arriscada que outras, por trazerem, como trazem, a morte diante dos seus olhos, pelas ocasiões de guerra que se oferecem a cada hora de repente.

Pela qual causa todo o soldado se há-de confessar muitas vezes no ano, ao menos quatro, recebendo a Santa Comunhão.

E deve guardar-se com grandíssimo cuidado de cair em infâmia, como é estar amancebado, trazer consigo mulher que não seja a sua, beber de modo que se prive com o vinho do seu sentido: e a estes tais bêbados deve-se-lhes retirar a praça. Não sejam ladrões, nem encobridores, nem amotinadores, que se lhes dará morte com desonra. Não seja falador, ouvir aqui e murmurar ali, que fará inimigos, e ninguém o quererá ver.

O hábito de soldado arma a todos, e é-lhes muito necessário saber-se governar com o seu soldo, porque não há coisa neste hábito mais vil que o pedir, nem de mais grandeza, que o dar. (…)

Seja curioso de saber jogar a espada, adaga, broquel e rodela, pique, arcabuz e mosquete, que é importante a este hábito militar.

Será vigilantíssimo a fazer a sua guarda, assim de posto como de ronda, em qualquer lugar que o puserem, que é a principal obrigação que tem. (…)

Se o seu capitão, alferes, ou sargento, ou cabo de esquadra, ou sargento-mor deitarem mão à espada ou à insígnia que trazem para o castigar com cólera, ainda que não tenham razão, oiça-os e não replique (…). E aviso-o que não deite a mão à espada, nem a outra arma alguma para resistir e defender-se, que lhe custará a vida (…).

Havendo licença para saquear alguma vila ou lugar, avise-se que não toque em coisa alguma das igrejas (…).

Não há-de jogar sobre as armas [ou seja, apostando as armas], que sem elas não se pode servir a El-Rei; nem jogará vestidos (…), nem sobre palavra, que é a causa de perder o crédito.

 Foto do autor: Mosqueteiros e piqueiros; reconstituição histórica da Guerra Civil Inglesa, Kellmarsh Hall, 2007.