O contrato com os capitães de cavalos da província da Beira (1663-1664)

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A introdução do contrato com os capitães de cavalos em 1647 foi uma medida destinada a reorganizar e a conferir maior operacionalidade à cavalaria do exército português. Sobre este assunto foram já publicados artigos aqui, aqui e aqui. Inicialmente só abrangeu a cavalaria do exército da província do Alentejo, por ser aí mais numerosa e mais necessária. Após a chegada do Conde de Schomberg a Portugal, o contrato foi alargado aos outros exércitos provinciais. A medida foi tomada para travar uma reorganização mais profunda que o Conde tinha pretendido: a implementação do sistema regimental, que poria fim aos privilégios dos capitães de cavalaria, principalmente à sua ampla autonomia na condução da guerra de saque e pilhagem. No caso vertente, o contrato com os capitães de cavalos da Beira foi objecto de uma consulta ao Conselho de Guerra em 1664, retomando as propostas e contra-propostas do ano anterior.

Em 21 de Março de 1663, uma carta régia dirigida ao mestre de campo general Pedro Jacques de Magalhães mandava aplicar o contrato às companhias de cavalos do exército daquela província, à semelhança do que se fazia com as do Alentejo. Os capitães e o comissário geral D. António Maldonado protestaram, tendo lavrado uma petição ao Rei, em 22 de Setembro de 1663, que foi vista pelo Conselho de Guerra, juntamente com outras cartas particulares, incluindo a do próprio comissário geral. É sobre este conjunto de cartas que se pronuncia o Conselho de Guerra em 19 de Fevereiro de 1664, nos seguintes termos:

Dado que os capitães de cavalos e o Conselho de Guerra não concorreram com o seu consentimento neste contrato, (pois fora imposto e não negociado, ao contrário do do exército do Alentejo), não era de crer que os oficiais da cavalaria estivessem de acordo com o dito contrato sem se lhes dar palha para os cavalos e sem haver dinheiro pronto para a contribuição do contrato, como se pratica no Alentejo.

O Conselho foi de parecer que se devia procurar fazer com que, dos lugares da província da Beira, se acudisse com palha para sustento da cavalaria, que se trouxesse para as praças onde assistisse a cavalaria e às casas que servissem de depósito, despendendo-se com a conta e razão que conviesse, “porque noutra forma nunca os oficiais da cavalaria podem ser obrigados às condições dele, faltando-se-lhe com estas”. Já quanto ao pedido de que se levasse em conta os cavalos que morressem nas marchas, o Conselho deu parecer negativo, devendo ser indeferido para que não se desse exemplo que poderia ser muito prejudicial ao serviço de Sua Majestade; “porém os que constar aos oficiais da fazenda que, respeito das largas marchas de Alentejo, Minho e Trás-os-Montes, morreram, e não por culpa de seus oficiais e soldados, sempre será justo se lhe levem em conta, ou faça toda a equidade, como aponta a contadoria geral na sua informação, e o Conde do prado na carta junta, como também o fez por outra o Conde de São João”.

Dando despacho à consulta, o Rei escreveu “Como parece” em 7 de Março de 1664.

Anexa à consulta e datada de 22 de Setembro de 1663, a carta dos capitães de cavalos do exército provincial da Beira é do seguinte teor:

O comissário general e capitães de cavalos da Província da Beira, que Vossa Majestade foi servido mandar por carta de vinte e um de Março de 1663 ao mestre de campo general Pedro Jacques de Magalhães, a cujo cargo está o governo das armas da dita Província, fizesse dar à execução a entrega das tropas, por arca e contrato, a eles, oficiais, na forma em que as têm os capitães da Província do Alentejo, e porque eles, suplicantes, sem serem ouvidos e perguntados para aceitarem o dito contrato, foram obrigados à dita entrega, que aceitaram por ser em tempo que estavam para marchar à província de Alentejo e não perturbarem o socorro com dilações de réplicas.

Pedem a Vossa Majestade, em consideração do amor e bom zelo com que servem, lhe faça Vossa Majestade mandar ver as razões que apontam em o papel que oferecem e remediar o dano que recebem em o contrato.

Em os últimos de Abril acodem os socorros da Província da Beira à do Alentejo, com que ficam os oficiais da cavalaria sem dar verde às suas tropas [colocar os cavalos das companhias em pastagens], e não só perdem o lucro que podiam tirar em lho dar por sua conta, e como o não comem, lhe morrem de enfermidades e com o trabalho de socorrer as Províncias aonde os mandam a melhora dos cavalos. Por que [pelo que] Vossa Majestade deve mandar se lhe levem em conta os que morrerem nestas marchas, derrogando o capítulo tantos do regimento, ou dando-se-lhe cada ano uns tantos cavalos mortos.

A falta do assento da palha diverte a condição do contrato e estilo que se guarda no Alentejo, porque Vossa Majestade foi servido mandar se fizesse a entrega das tropas, o que vem a ser em prejuízo deles, oficiais, por lhe faltar grande parte do ano a palha, com que enfraquecem os cavalos e ficam nisto incapazes de serviço.

A consignação de dinheiro à província nem é bastante para trigo e cevada e primeiras planas, com que lhe não podem pagar a contribuição do contrato, e faltando esta não é possível que eles, oficiais, metam cavalos nas tropas, e diminuindo o valor da entrega nem poderão vencer a dita contribuição da arca e contrato, nem crescerá o número da cavalaria. Por que Vossa Majestade deve de mandar fazer assento de palha como se estila na Província do Alentejo, e nomear consignação certa de dinheiro para satisfação do vencerem com contrato, porque em outra forma não poderão eles, oficiais, faltando-lhe com as condições do contrato, observá-lo.

Espera pelo bem que servem da Real grandeza de Vossa Majestade que, informando-se Vossa Majestade da verdade, lhe faça mercê de mandar compor e tomar meio capaz nesta matéria como mais convier ao serviço de Vossa Majestade. Guarde Deus a Católica e Real Pessoa de Vossa Majestade como todos havemos mister. Almeida, em 22 de Setembro de 1663.

E assim também os mantimentos que correm por conta dos capitães da Província de Entre Douro [e Minho] o ofereciam até agora.

(assinaturas de capitães): João Soares de Almeida, Fernão Cabral, Paulo Homem e mais dois ilegíveis.

Fonte: ANTT, CG, Consultas, 1664, mç. 24, consulta de 19 de Fevereiro de 1664, com anexos relativos a 1663.

Imagem: Pieter Meulener, dois óleos com temas de cavalaria seiscentista.

A situação militar na província da Beira em Junho-Julho de 1645

Meulener

Em 10 de Julho de 1645, o Conselho de Guerra era informado acerca da situação militar na província da Beira, através de um conjunto de cartas enviadas pelo governador das armas, D. Fernando Mascarenhas, 1º Conde de Serém, e do tenente de mestre de campo general João Lopes Barbalho. Na verdade, pelo menos uma das cartas foi colocada no maço em data posterior à data da consulta, visto ter sido remetida de Penamacor em 8 de Julho.

Vejamos como relatava o Conde a situação na província que governava, transcrevendo a sua carta de 25 de Junho de 1645, remetida de Salvaterra do Extremo:

(…) O tenente de mestre de campo general me disse havia de fazer a Vossa Majestade a relação da entrada do inimigo em Portugal, e da festa que ontem nos veio fazer com grande quantidade de cavalaria e duzentos e sessenta infantes; eu estou informado de eles haverem trazido pouca pilha [o Conde quer dizer que levaram para Espanha pouca pilhagem], e ainda essa que trouxeram têm seus donos a culpa, porque tendo aviso de que o inimigo juntava poder, os avisámos que estivessem alerta, e em que tirando uma peça e fazendo facho era sinal que o inimigo estava em Portugal. Assim que chegou aviso, que era uma para as duas, depois da [sic] com grande cuidado tirou e fez facho e nem tanto daí a meia hora, pela manhã, tirámos outra peça a que nos respondeu Idanha, com que fiquei descansado e imaginando que tudo havia recolhido. Na mesma manhã nos trouxeram duas línguas e soubemos delas haverem passado as tropas de Alentejo a noite de sexta-feira e naquela haverem vindo duas para a Zarza, bem entendi eu a peça, vieram-nos tocar arma (…) de que eu zombei bem, e não houve lugar de lograrem os zarzos seu desejo. Dizem estes homens que dizem em Alcântara que temos grande governo, se nós nos víramos com poder não haviam eles de fazer tantas pilharias, por mais que a sua gente cobrisse estes campos, que pela conta eram mais de seiscentos homens de cavalo, afora os que iam com a tropa da pilha que era de dragões. E dizem uns muchachos, que vinham tangendo as ovelhas, que vinham desarmados, dizendo que os haviam enganado os sarcenhos [naturais de Zarza la Mayor] que não levam nada, o que eu posso assegurar a Vossa Majestade é que se nós tivéramos boa artilharia, que lhe havíamos de fazer muito dano, mas não deixámos de lhe fazer algum, de um tiro dou eu fé, que derrubou um do cavalo, e também uma emboscada que lhe tinha o tenente-general feita lhe houvera de matar alguns, se antes de eles chegarem a tiro uma pessoa, que ele deve dizer a Vossa Majestade, não mandara disparar e descobrir a gente, alguns lhe haviam de ficar, como na refrega passada ficaram, que dizem esses línguas que lhe matámos na refrega passada muita gente, e entre eles um capitão de cavalos e um tenente e dois dos principais da Zarza; eles não podem ter aqui muito esta gente e devem ir dando por todas as nossas fronteiras, vendo se podem fazer algumas pilhas [isto é, pilhagens], e não era mau avisar Vossa Majestade a Castelo Rodrigo e a Alfaiates e a Almeida que recolham os gados, que nunca a prevenção fez mal (…).

Na mesma data, o tenente de mestre de campo general João Lopes Barbalho enviou de Salvaterra uma outra carta, com teor muito semelhante à do governador, mas num português mais escorreito. Dois dias mais tarde, o Conde de Serém expedia outra carta, dando conta de que Salvaterra do Extremo se encontrava cercada pelo inimigo. Uma outra carta, remetida de Penamacor em 1 de Julho, dava conta da situação militar na província e referia que o tenente de mestre de campo general se encontrava em Idanha-a-Nova com 200 infantes pagos e 200 cavaleiros. A quinta e última carta, incluída no lote dos anexos em data posterior à da consulta, refere que o inimigo, devido à superioridade numérica da sua cavalaria, se encontrava senhor da campanha e não se lhe podia impedir as pilhagens, tendo realizado algumas entradas.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1645, maço 5, doc. nº 81, consulta de 10 de Julho de 1645 e cartas anexas.

Imagem: Combate de cavalaria (pormenor), óleo de Pieter Meulener.

Gil Vaz Lobo Freire – herói e vilão

Gil Vaz Lobo Freire, filho de Gomes Freire de Andrade e de D. Luísa de Moura, foi um dos mais incensados nomes do período da Guerra da Restauração. Participou com o seu pai no 1º de Dezembro de 1640, tendo sido um dos nobres insurrectos que procurou no Paço a Duquesa de Mântua, para a obrigar a abdicar do cargo de Vice-Rainha de Portugal. Tivesse a Duquesa o dom da premonição, teria razões de sobra para ficar muito preocupada com o jovem espadachim que lhe saíra ao caminho, cujas atitudes no futuro – durante a Guerra da Restauração – demonstrariam uma profunda indiferença pela vida humana. A par da bravura e valor no campo de batalha, Gil Vaz Lobo (é assim que é referido em quase todos os documentos) deixaria um rasto de crimes, que a sua posição social e influência na Corte conseguiriam, todavia, deixar impunes, livrando-se de condenações que pareciam tão severas como certas.

O nobre beirão cedo iniciou a sua carreira militar. Em Fevereiro de 1642 recebeu a patente de capitão de infantaria, passando a servir em Campo Maior com o seu pai. Em Novembro de 1645 foi promovido a capitão de cavalos, continuando a servir no Alentejo. A par das referências elogiosas às qualidades militares do oficial, surgem alusões ao seu carácter violento e criminoso. Os exemplos que aqui trago dizem respeito ao ano de 1652, onde num curto período Gil Vaz Lobo se viu a contas com a justiça por causa de vários crimes. No início desse ano, um grupo de mulheres de Campo Maior, encabeçado por uma Catarina Gomes, enviou uma carta ao Príncipe D. Teodósio, queixando-se da conduta de Gil Vaz Lobo e de outros militares. Quando, em carta datada de 21 de Março de 1652, o Príncipe ordenou ao mestre de campo general do Alentejo, D. João da Costa, e ao auditor geral do exército da mesma província, que abrissem um inquérito (uma devassa, como então se dizia) aos motivos da queixa, já era tarde demais. No livro de registos, à margem da cópia da carta, surge um acrescento recomendando que se iniciasse uma devassa à morte de Catarina Gomes.

Em Abril já Gil Vaz Lobo se encontrava na província da Beira, onde o governador das armas do partido de Penamacor (ou de Castelo Branco, como também era referido) D. Sancho Manuel pretendia nomeá-lo para o posto de comissário geral da cavalaria. A carta de 20 de Abril propondo o nome de Gil Vaz Lobo, enviada ao Príncipe D. Teodósio e observada no Conselho de Guerra, acabou por trazer à discussão os crimes recentes do oficial, que não se resumiam ao acontecido em Campo Maior. No entanto, os próprios conselheiros pareciam dispostos a fechar os olhos à conduta do capitão de cavalos e inclinavam-se para a aceitação da promoção, deixando à Coroa a última palavra. Segue-se a transcrição da consulta:

Nesta carta apresenta Dom Sancho Manuel a Vossa Alteza a grande necessidade que a cavalaria do seu partido tem de oficial maior que a governe porque, por falta dele, tem sucedido e sucedem muitas desordens com a liberdade que os soldados tomam, e pouco respeito com que procedem por não terem cabo maior a quem temam, arriscando-se por esta causa muitas vezes a mesma cavalaria e a reputação das armas de Sua Majestade e Vossa Alteza quando sucede ir buscar ao inimigo, ou em nossa defensa, ou em ofensa sua. E por todas estas razões pede Dom Sancho à Vossa Alteza se sirva de nomear para o posto de Comissário geral da cavalaria do seu partido a Gil Vaz Lobo porque, por seu valor e pelo conhecimento que tem daquela campanha, e por suas partes merece que Vossa Alteza o honre e lhe faça mercê, porquanto a Dom João Flux [capitão de cavalos alemão], a quem Sua Majestade foi servido de encarregar o governo dela, lhe sobrevieram tantos achaques que está impossibilitado por razão deles para exercitar o governo dela, e incapaz para montar a cavalo, havendo pouco de um ano que o não faz.

Vendo-se em Conselho a carta de Dom Sancho, pareceu fazer presente a Vossa Alteza a resolução que Sua Majestade tem tomado, de que os criminosos, enquanto não estiverem livres dos crimes que se lhe imputam, não possam ser providos em postos. E que Gil Vaz Lobo se livra de alguns crimes no juízo da assessoria deste Conselho em três processos, um deles sobre a morte de um homem sucedida em Estremoz, pela qual está sentenciado em final em pena de cinco anos de degredo para o Brasil e guerra de Pernambuco, e em duzentos mil réis para a parte com pregão em audiência. Esta sentença se não tem tirado do processo até agora, nem executada por não haver parte que o requeira.

Os outros dois processos são sobre o ferimento feito ao corregedor Sebastião Vieira de Matos e morte do seu escrivão; estes estando conclusos a final, se mandou acabar de tirar em Campo Maior certa devassa de outros casos em que também é culpado, e correr folha em Elvas, esta diligência há dias que se cometeu por cartas de Sua Majestade ao mestre de campo general e ao auditor geral em segredo, e até agora se não tem satisfeito a ela, e por se esperar resposta, se não acabam de sentenciar estes dois feitos.

Por ser este o estado em que se encontra o livramento de Gil Vaz Lobo, pareceu também ao Conselho representar a Vossa Alteza que se houver lugar de se poder dispensar no impedimento que Gil Vaz tem (conforme a resolução de Sua Majestade que fica referida) para haver de ser provido em posto, estando criminoso; e Vossa Alteza tiver por conveniente habilitá-lo para ir servir de comissário geral da cavalaria deste partido, será mui bem empregado nele todo o favor e mercê que Vossa Alteza nisto lhe fizer, por o merecer por seu valor e pelo zelo com que tem servido, e também por ter préstimo, experiência e particular génio para ocupar aquele posto. Lisboa 14 de Maio de 1652.  

Entre os crimes cometidos no Alentejo a que a consulta se reporta, um é certamente o que envolveu a morte de Catarina Gomes, e os outros, os que originaram a queixa anterior ao desaparecimento da infeliz mulher. Apesar disso, prevaleceu a influência da poderosa linhagem dos Freires de Andrade, e Gil Vaz Lobo Freire não foi muito apoquentado pelos processos em que estava envolvido. Em Agosto de 1659 foi nomeado governador da cavalaria da Corte e comarcas do Ribatejo, sendo já nessa altura tenente-general da cavalaria da Beira.

Em Maio de 1669, mais de um ano após o final da guerra, Gil Vaz Lobo foi nomeado governador das armas da província da Beira pelo regente D. Pedro (futuro D. Pedro II). Viria a falecer em Castelo Branco em 1678.

Fontes: ANTT, CG, Secretaria de Guerra, Livro 16º, fl. 15; Consultas, 1652, mç. 12, consulta de 14 de Maio de 1652.

Imagem: Jacob Duck, “Mulher e soldados jogando às cartas”.

Uma acção de pequena guerra e descoberta de traição – província da Beira, Abril de 1653

São em número considerável as cartas que os governadores das armas enviavam ao Conselho de Guerra, de forma a manter informada Coroa acerca dos sucessos das armas nas fronteiras. Na sua maior parte bastante detalhados, estes relatórios das acções de pequena guerra eram escritos de maneira a atrair a atenção régia (e a consequente recompensa, sob a promessa de mercês futuras) para o próprios comandantes ou para os seus subordinados que mais se destacavam, ou então como forma de justificar algum insucesso mais notório. Numa dessas cartas, D. Rodrigo de Castro, então governador do partido de Riba Coa, província da Beira, dá conta da descoberta casual de uma traição – algo que também fazia parte do quotidiano nas fronteiras durante o longo conflito de meados de seiscentos.

A carta, anexa à consulta onde foi apreciada, é aqui transcrita na íntegra para português corrente:

Chegando dia de Páscoa, 13 do corrente, à cidade da Guarda, dando-me o comissário geral João de Melo Feio conta do estado da província e do inimigo, com as mais pessoas práticas resolvemos que antes de ter notícia de minha chegada seria favorável, armando emboscada à cavalaria de Ciudad Rodrigo, entrar nela. E com o desejo de dar bons sucessos às armas de Vossa Alteza [a carta é dirigida ao príncipe D. Teodósio], sem descansar da jornada, me parti logo e entrei em Castela à derradeira oitava, 16 do mesmo, com quatro tropas de cavalos e 150 infantes bocas de fogo [ou seja, todos armados de mosquete e arcabuz, sem piqueiros]. Emboscando-me junto ao rio Alzava, duas léguas de Ciudad Rodrigo, mandando por doze cavalos correr às portas daquela Cidade tomar língua, com ordem de não pegarem em gado, salvo até dez, ou doze reses, para melhor mostrarem era partida que ia fugida, e as quatro tropas da cidade saíssem a corrê-los como costumavam, e vindo à desfilada e cansadas à emboscada melhor pudesse rompê-las. Os doze cavalos executaram a ordem e saiu trás deles só a tropa da guarda, mas com tal vagar e cautela que vendo eu que estava em posto que a descobria, disse a todos que o inimigo infalivelmente havia por algum traidor sido avisado. Fez alto da outra banda do rio e por um só cavalo me mandou reconhecer, como quem sabia estava eu ali; o que, vendo-me descoberto, deixando a infantaria no bosque, investi com a cavalaria o inimigo e se me pôs em fugida a toda a brida, de modo que lhe tomámos somente um cavalo e matámos Andrés de las Casillas, guia que o inimigo muito estimava, e a mais tropa, vendo-se apertada, não se atrevendo chegar à cidade porque lhe íamos dando alcance, se meteu no fortim de Marialvilla. Pus-me a refrescar tempo considerável na campanha por ver se as demais tropas de Ciudad Rodrigo vinham avistar-me, tendo-me tão dentro de Castela. A que vendo o não faziam, me recolhi, trazendo também quatro prisioneiros, que asseguram se espera brevemente pelo mestre de campo Dom Francisco de Castro com 150 cavalos de remonta.

Ao seguinte dia, tomando uma partida da tropa do capitão Francisco Martins Guaião língua, com o cuidado de eu haver dito que não degolava o inimigo por ser avisado de algum traidor pelo modo com que havia armado e vira o inimigo. Perguntou o capitão à língua, que era de Villa Mel, se sabia havia alguém entre nós que fosse dar avisos a Castela, e lhe respondeu que sabia os ia dar uma sentinela paga da raia, do lugar de Quadrazais, e que pelo seu posto deixava entrar os castelhanos, e tocava arma já a tempo que haviam feito presa. O capitão Francisco Martins o mandou prender, e persuadindo-o a que se confessasse, e assim como nos vendia, nos vendesse o inimigo, faria comigo o perdoasse. E crendo-o assim a sentinela, lhe confessou que dava os avisos a Castela por dinheiro que lhe davam, que visto eu lhe perdoaria se me entregasse o inimigo, que me entregaria a tropa de Valverde. Mandou-me o capitão Francisco Martins Guaião o sentinela e o castelhano língua. E fazendo pergunta ao castelhano, me disse o mesmo que havia dito, e o sentinela de Quadrazais, que se eu lhe perdoasse, me entregaria a tropa de Valverde. E que era verdade que dava avisos a Castela, um de que a tropa de Quadrazais havia ido para Castela, e noutra ocasião toda a gente daquele lugar fora para fora que viessem a ele, mas que nunca o inimigo fizera então dano. Com o que, ou por ignorante, ou por querer Deus pagasse sua traição, entendeu livrava dela. Mandei-o ao auditor geral, que se achava achacado, para juridicamente lhe tomar a confissão, que da mesma sorte fez. Com o que o mandei meter com ferros na enxovia, e ordenei ao auditor geral que viesse a esta praça para onde fui buscar minha casa. E por não haver até o presente chegado o auditor geral, que devia continuar-lhe o achaque, não está sentenciado este traidor, que logo para exemplo determinava sentenciado mandar fazer nele justiça. Mas o auditor geral disse que a sentença de morte deve ser apelada para o Conselho de Guerra, conforme ao regimento, com que me conformarei, sem embargo que nestes casos convém prontamente demonstração, para atalhar com o temor outros, que por tais meios é grande felicidade livrar dos danos.

Desta jornada, quando não fora a reputação de ir buscar o inimigo sem dilação alguma à sua praça principal, pô-lo em fugida e no temor de não se atrever a sair dela o socorro a buscar-me, foi grande o lucro de descobrir este traidor. Conhecendo que sem havê-lo, pelo modo com que armei e pela ocasião em que era certo degolar a cavalaria inimiga, que faltando-lhe os avisos, com o favor de Deus haverá mais casos em que a rompa.

Aos cabos que nesta ocasião me acompanharam deve mandar Vossa Alteza lhes agradeça o bom coração com que se arrojaram ao empenho delas.

Guarde Deus a muito alta e poderosa pessoa de Vossa Alteza felicíssimos anos. Almeida, 21 de Abril de 1653.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, mç. 12, carta de D. Rodrigo de Castro, de 21 de Abril de 1653, anexa à consulta de 2 de Maio de 1653.

Imagem: Gerard Terborch, “Soldados na casa da guarda”.

Escaramuças na província da Beira em Maio de 1646

Continuando a transcrever alguns documentos, cujas cópias o estimado amigo Julián García Blanco me remeteu, cabe agora a vez de uma breve carta narrando escaramuças ocorridas na província da Beira. Os manuscritos pertencem ao espólio da Biblioteca Nacional de Madrid e são cópias coevas das cartas originais, para registo de arquivo, à semelhança das que se podem encontrar nos Livros de Registo da Secretaria de Guerra, em Lisboa.

As escaramuças que são descritas numa carta endereçada a um padre jesuíta de Évora não se encontram mencionadas na História de Portugal Restaurado do Conde de Ericeira. Episódios menores, em comparação às operações de maior envergadura que nesse ano ocorreram na província, são todavia de interesse para o conhecimento da vivência da guerra e seus efeitos sobre as populações da fronteira.

Carta de Francisco Leonardo a um religioso da Companhia do Colégio de Évora, em que dá novas de um sucesso que o nossos tiveram na Beira contra os castelhanos em 15 de maio de 1646

Novas da Beira têm sucedido agora muito boas. Em Alfaiates tivemos um bom sucesso, pelejou uma tropa de cavalos nossa de 40 soldados, com duas companhias de infantaria, com 150 cavalos cavalos sarcenhos [ou seja, de Zarza la Mayor] e foram derrotados, deixando no campo mortos 21 e muitos cavalos, e dezassete vivos, e a presa que levavam restituída ao lugar de Souto e Quadrazais. Se o Tejo se pudera vadear tivéramos a maior presa do mundo todo; a qual mandava o Conde [de Serém] fazer pelo tenente-general da artilharia, que passou o rio com 40 cavalos, e o resto deles ficou por se perder a barca, com que a infantaria não teve em que passar também da outra parte. E como se mal logrou esta ocasião, vendo o tenente-general da artilharia que não tinha caminho para Portugal senão marchando por Castela, o fez bizarramente com os 40 cavalos, e chegou a Carvajo de Santiago [Santiago de Carbajo], e a Membrio, e a outros lugares, e recolheu tudo o que neles achou até entrar aqui por Montalvão a salvamento, sem perda mais que de dois homens que se afogaram ao passar do rio. O forte de Zebra, que o Conde mandou fazer, está feito uma Rochella [comparação exagerada, feita pelo autor, com as defesas de La Rochelle, em França], dali se faz grandes estorvos aos danos que o inimigo fazia em algum tempo. O Bispo de Ciudad Rodrigo comete tréguas no que toca a roubos, e que se faça a guerra por termos militares; avisou-se disto a Sua Majestade, para o mandar resolver.

Francisco Leonardo

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Relações manuscriptas de Portugal, desdo anno de 1643 athe 1646″, fls. 70-70 v.

Imagem: Soldados de infantaria do século XVII. Museu Militar de Estocolmo. Foto de JPF.

Os capitães-mores nas fronteiras de guerra em 1645 – parte 2, províncias da Beira, Trás-os-Montes e Entre-Douro-e-Minho

Concluindo as listas dos capitães-mores e respectivos soldos (ou ausência deles), remetidas ao Conselho de Guerra em 1645, são agora apresentadas as respeitantes às províncias da Beira, Trás-os-Montes e Entre-Douro-e-Minho. A importância relativa de cada uma destas fronteiras de guerra pode ser observada através das listas: enquanto o Alentejo, cuja lista foi apresentada na primeira parte desta mini-série, incluía o mais extenso rol de capitães-mores remunerados, nas outras províncias os soldos eram desconhecidos ou não eram sequer auferidos pelos titulares dos cargos. Mais uma vez se recorda aqui que o capitão-mor era um cargo que podia ser desempenhado por alguém com uma patente militar já atribuída, conforme se pode ver nos quadros inclusos (basta clicar com o rato em cada uma das ligações para aceder ao respectivo ficheiro PDF).

CM Província da Beira 1645

CM Província de Trás os Montes 1645

CM Província de Entre Douro e Minho 1645

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1645, maço 5, Rellação das praças da Raya, das Prouincias de Alentejo. Beira. Tras os Montes. Entre Douro e Mynho, e do Reyno do Algarue, e nomes dos Capitães mores dellas, e os que uencem soldo e uencem a sua custa, proveniente da Contadoria Geral.

Imagem: “Soldados jogando cartas”, pintura de Simon Kick; fonte: http://www.wikigallery.org/wiki/painting_203085/Simon-Kick/Soldiers-at-Cards.

Organização do trabalho de fortificação das praças do partido de Riba Coa (província da Beira) nos inícios de 1657

Na sequência do que já aqui foi exposto sobre o partido de Riba Coa nos inícios de 1657 (material de guerra e situação das forças militares), vem a propósito referir as propostas do governador das armas, D. Rodrigo de Castro, para organizar o trabalho de fortificação das praças daquele partido.

Propunha o governador mobilizar a gente de guerra que ainda não tinha chamado aos terços de auxiliares e volantes (da ordenança, portanto, estes últimos) e que já não iam à guerra nem a outro serviço militar há mais de 8 anos, e que seriam 14.727 homens. Deviam trabalhar por turnos de 8 dias, de 400 homens cada turno, o que faria 117.816 homens de trabalho, necessários para cavar 12.515 braças cúbicas de terra, abrindo fossos para a defesa das praças. Dando a esta gente pão de munição como se estivesse em campanha, orçaria em 1.531.816 réis, o que, segundo D. Rodrigo de Castro, iria poupar à fazenda real dezoito contos, quatrocentos e noventa e seis mil, cento e dezoito réis, porque esta obra, fazendo-a os mestres e pagando-se-lhes na forma da estrutura que [se] tem feito, importa vinte contos e vinte e oito mil réis.

Para reserva de pão de munição destinado a dois meses, a nove mil rações para os que haviam de guarnecer as praças e para o pé de exército para o socorro delas, seriam necessários trezentos e trinta e três moios e vinte alqueires de trigo. O assentista não estava obrigado a dar este alimento pelo seu contrato, mas comprometeu-se a pô-lo em farinha nas praças, pelo que D. Rodrigo solicitou que o Rei lhe enviasse uma carta de agradecimento (na verdade, na menoridade de D. Afonso, seria D. Luísa de Gusmão, a Rainha regente, a fazê-lo).

Também os moradores foram persuadidos a colocar nas praças 2.400 carros de lenha sem despesa para a fazenda real. Solicitava igualmente D. Rodrigo que a Coroa mandasse colocar o que fosse necessário nas praças para alimento da gente delas. Não indo o inimigo atacar as praças, se poderia vender esse alimento, recuperando a fazenda real a despesa feita: 1.249 quintais de carne e outros tantos de peixe seco, 1.200 alqueires de legumes, 6.000 almudes de vinho, 200 de azeite, 550 de vinagre, que importariam 11.395.940 réis.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, mç. 17, carta de 14 de Março, anexa à consulta de 28 de Março de 1657.

Imagem: “Cerco de uma cidade flamenga por soldados espanhóis”, óleo de Joahnnes Lingelbach, década de 50 do século XVII.

A situação militar do partido militar de Riba Coa (província da Beira) nos inícios de 1657

Em complemento ao que foi apresentado acerca da situação nas praças do partido de Riba Coa, trago a lume um outro levantamento da situação, este referente aos efectivos e às dificuldades de pagamento, igualmente remetido ao Conselho de Guerra pelo governador D. Rodrigo de Castro e sensivelmente pela mesma altura do anterior.

Por ordem da Coroa, enviada ao governador em finais de Janeiro de 1657, devia o terço pago daquele partido ser reenchido de gente (era o termo utilizado na carta régia) até ao limite da sua dotação. E que o mesmo fizesse com os terços de auxiliares e as companhias de cavalaria da ordenança, tudo da maneira mais suave que se conseguisse – ou seja, sem levantar grandes protestos por parte da população.

Em resposta, recordou D. Rodrigo as dificuldades por que passava a província, à qual estava previsto remeter apenas seis mesadas para pagamento da gente de guerra e cobertura de outras despesas, de 5.600 cruzados cada uma (um cruzado equivalia a 400 réis), mas que na realidade se materializavam em três pagas somente, restando menos do necessário para os pagamentos de todo o ano da 1ª plana da corte, hospital, correios, artilharia, atalaias, sentinelas da raia e muitas outras despesas; e que com aquelas três pagas por ano não podia subsistir a gente de guerra sem os saques, vilas ganhas e presas feitas em Espanha. No entanto, estando toda aquela raia tão destruída de ambos lados da fronteira, não era possível aos soldados recorrerem à referida alternativa como até então faziam. Tudo isto lembrava D. Rodrigo de Castro para dizer que, se se acrescentasse gente ao terço pago, não receberia soldo mais do que duas vezes ao ano, e com os 2.140 réis que cada soldado levava nas duas pagas, seria impossível sustentarem-se, vestirem-se e calçarem-se um ano inteiro.

O terço encontrava-se com 709 infantes, e D. Rodrigo dizia que faria acrescentar os 800 que faltavam para a sua lotação sem despesa da real fazenda. Mas pedia para que se aumentasse o montante das mesadas, pois que o recrutamento se faria sem as pagas iniciais, mas se iria guarnecer a província, além das munições que se davam aos auxiliares que faziam turnos de um mês de guarnição às praças, que naquela província eram 9 na raia e 32 atalaias, as quais ficavam melhor defendidas com aquela infantaria paga. E acrescentava na carta enviada ao Conselho de Guerra que teria a infantaria sempre pronta para acudir ao Alentejo. Relembrava também que , na anterior ocasião em que governara aquele partido de Riba Coa, havia deixado os terços de auxiliares armados e com o número de gente que lhe fora ordenado pelo Rei, mas que após 3 anos de ausência da província se tinham desfeito de tal forma que, quando regressam do serviço de guarnição, nunca trazem o efectivo inicialmente destacado de soldados e nenhum deles vem armado.

Apontava uma solução para ter aquela gente pronta e capaz de servir: fazer como na cavalaria, em que se tinham dado patentes a 4 comissários gerais, um de cada comarca, e assim deveria ser com os mestres de campo de cada terço de auxiliares, que serviriam sem soldo, sendo somente pagos os sargentos-mores e ajudantes, para assim darem disciplina e instrução militar, o que não acrescentaria despesa de maior reparo. Porque sendo o mestre de campo de cada comarca, assim como a gente do respectivo terço, este marcharia mais facilmente com comodidade e confiança.

Não era somente a infantaria a preocupar o governador. Também a cavalaria da ordenança se encontrava afectada pela falta de cavalos, pois muitos tinham morrido ou ficado estropiados nos últimos 3 anos, e não havia cavalos suficientes na província para se comprarem. D. Rodrigo ordenou que os homens que fossem obrigados a ter cavalos os comprassem, adiantando dinheiro para os que não os tivessem, de modo a mandar vir alguns da comarca de Esgueira.

O Conselho de Guerra ficou satisfeito com as sugestões de D. Rodrigo de Castro e solicitou que a Regente lhe agradecesse o zelo e cuidado com que servia. Em 22 de Março, um decreto régio mandava que se cumprisse o parecer do Conselho.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, mç. 17, consulta de 19 de Março de 1657.

Imagem: “Soldados e senhoras elegantemente vestidas jogando no interior de um corpo de guarda”, pintura de Jacob Duck.

Material de guerra existente nas praças de Riba Coa em Março de 1657

Duas cartas de D. Rodrigo de Castro para o Conselho de Guerra, datadas de 4 e de 11 de Março de 1657, dão conta da situação das praças do partido de Riba Coa, que o futuro Conde de Mesquitela governava, e do material de guerra aí existente.

Havia à época 42 peças de artilharia naquele partido militar, com o seguinte detalhe:

Artilharia para sair em campanha:

– 5 meios-canhões de bronze que necessitavam de reparos, com suas guias e carros matos. Com a ferragem que havia nos velhos, podiam ferrar-se três reparos com dois pares de rodas, e podiam consertar-se, com pouco custo, as rodas para as guias e um carro. Faltavam demais sobressalentes e tabuões para as respectivas esplanadas (posições preparadas onde eram colocadas as peças) e calabreses grossos e miúdos para serem tiradas em campanha.

– 4 quartos de canhão de bronze, para os quais eram necessários 4 reparos com guias e outros tantos carros matos. Havia reparos nos velhos para três reparos com rodas, e havia dois pares delas sem ferragem. Faltavam-lhe sobresselentes, tabuões para as esplanadas e calabreses miúdos e grossos para estas peças serem tiradas em campanha.

– 4 falconetes de bronze. Havia ferragem para os reparos, rodas e guias, era necessário sobressalente, tabuões para as esplanadas e calabrês para saírem em campanha.

A artilharia que não estava prevista sair em campanha também era referida em detalhe:

– Para 2 colubrinas de bronze, faltava tudo o que não fosse ferragem para um reparo com as respectivas rodas.

– Para 1 colubrina de bronze faltavam rodas e ferragem.

– Para 1 meio-canhão de bronze, havia ferragem para o reparo e rodas.

– Para 6 sacres de bronze, havia somente ferragem para três reparos com as respectivas rodas.

– Para 2 meios-canhões de ferro havia ferragem para um reparo e rodas.

– Para 17 peças de ferro, havia ferragem para 5 reparos e rodas.

Necessitava-se, para as peças que haviam de estar na muralha, de madeira para guaritas, e de cocharas, lanadas e soquetes para todas.

Material de guerra existente nos armazéns

Nos armazéns da província havia 117 arcabuzes consertados, 770 piques, 230 forquilhas, 720 frascos, 630 bandolas de mosquete e arcabuz, e 30 de carabinas. Alguns dos frascos estavam desconsertados, e havia 144 arcabuzes e 333 mosquetes desconcertados (ou seja, avariados ou truncados). Para a infantaria havia 104 corpos de armas, mas nenhuns para a cavalaria, nem carabinas e pistolas, do que estava a cavalaria muito necessitada. Por isso, D. Rodrigo de Castro solicitava o envio de 200 carabinas, 150 pares de pistolas e 200 corpos de armas.

Outras necessidades: 1.513 quintais e 116 arráteis de pólvora, 25.200 balas, e para os 9.000 homens que haviam de guarnecer as praças, à razão de meio arrátel por dia, e a dois arráteis por todo o tempo dos dois meses que haviam de sair em campanha, eram precisos 1.210 quintais e 76 arráteis de pólvora; e de balas sorteadas de outros tantos, e o mesmo de morrão, para o que só havia nos armazéns 211 quintais de pólvora, 116 de balas sorteadas, 225 de morrão, 2.011 balas de artilharia. Destas, escrevia D. Rodrigo, havia no Fundão grande quantidade, embora ainda não soubesse ao certo o número de balas.

Na segunda carta, de 11 de Março, dá conta D. Rodrigo de Castro que se preparava para reunir os 3.000 infantes e 200 cavalos que a Coroa mandou estarem a postos para acudir ao Alentejo, dos quais infantes, no entanto, não poderiam ir só os pagos e auxiliares, porque todos juntos não perfaziam os 3.000 necessários. Seriam necessários 4.500 infantes para guarnecer as 9 praças principais, acasteladas, que havia na raia, com fortes e artilharia, e de um pé de exército de 3.000 ou 4.000 homens.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, mç. 17, cartas anexas à consulta de 28 de Março de 1657.

Imagem: “Combate de cavalaria” (pormenor), pintura de Pieter Meulener.

Efectivos do partido de Penamacor (província da Beira) em 1659

Numa carta redigida em 18 de Junho de 1659 pelo mestre de campo João Fialho, dirigida ao Conselho de Guerra, é exposta a situação preocupante em que se encontrava o partido de Penamacor. Estava então o governador das armas D. Sancho Manuel ainda ausente, pelo que o mesmo Conselho deu parecer para que D. Sancho regressasse com a maior brevidade à província da Beira. Os efectivos necessários para a defesa e os que na realidade existiam no partido de Penamacor encontram-se expostos na carta de uma forma concisa mas bem detalhada. Escrevia então o mestre de campo João Fialho:

Guarnição que necessitam:

300 infantes, a praça de Penamacor;

300, a praça de Salvaterra [do Extremo], meia légua da da Sarça, donde se metem os comboios com a espada na mão;

200, a praça de Segura, uma légua idem;

50, a praça da Zebreira, duas léguas idem;

50, a praça de Rosmaninhal, duas léguas de Alcântara;

50, a praça de Penha Garcia;

[Total:] 950 infantes que são necessários para guarnição destas praças e atalaias de seu distrito.

Guarnição que tem este partido:

495, o terço pago, inclusas duas companhias de auxiliares que andam anexas a ele;

300, dos auxiliares desta comarca de Castelo Branco;

[Total:] 795. Desta gente paga e auxiliar estão muitos ausentes, e outros não há tê-los nas praças, que forçados da necessidade se vão a casa de seus pais a remediar.

300 cavalos, inclusos os doentes e incapazes, e três companhias de auxiliares dos moradores da raia, e quando se monta aos rebates chega a duzentos.

Compare-se estes números com os efectivos do mesmo partido em 1648 e em 1663.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1659, maço 19, “Rellação da guarnição que hão mister as praças da Raya deste partido de Castelo branco, E da que tem, e das Legoas que distam das do inimigo”, anexa à consulta de 27 de Junho de 1659.

Imagem: Pormenor de um mapa francês do início do século XVIII, mostrando parte da região compreendida pelo partido de Penamacor (ou de Castelo Branco) em 1659, bem como as localidades espanholas mencionadas no documento. Biblioteca Nacional, Cartografia, CC1777A.

A destruição parcial da ponte de São Felizes, 20 a 23 de Fevereiro de 1646, e outras operações na província da Beira

Depois de um interregno superior a um mês, o mais longo desde que iniciei o blogue, aqui regresso com um par de testemunhos da pequena guerra de fronteira, ambos aludindo a um acontecimento menor, mas de muita importância para a vivência das populações da raia. Trata-se do assalto e destruição parcial da ponte de São Felizes, um cenário do teatro de operações da província da Beira.

O episódio não mereceu mais do que duas linhas ao Conde de Ericeira na História de Portugal Restaurado, tendo certamente consultado para o efeito a breve notícia inserida na Relaçam geral de tvdo o svccedido nas fronteiras de Portugal o mes de Julho, & Agosto, com a tomada da Codiceira, & da Põte de Saõ Felizes na Beira, Em Lisboa, Na Officina de Domingos Lopes Rosa, Anno 1646. Este ano de 1646, em termos de operações bélicas, foi dominado pela última grande campanha ofensiva em vida de D. João IV, a partir do Alentejo, que culminaria nos combates de Codiceira e Telena. Todos os recursos materiais e financeiros foram mobilizados para aquela província, de modo que as restantes ficaram reduzidas ao preparo defensivo e às limitadas actividades da pequena guerra, que de resto caracterizariam o conflito nos dez anos seguintes. Há, no entanto, outras fontes que apresentam mais pormenores sobre este obscuro acontecimento.

A cópia de um manuscrito que em boa hora o amigo Julián García Blanco – a quem eu renovo os meus agradecimentos – me fez chegar às mãos, pertencente ao espólio da Biblioteca Nacional de Madrid, inclui duas cartas (na verdade, cópias coevas das cartas originais, para registo de arquivo, à semelhança das que se podem encontrar nos Livros de Registo da Secretaria de Guerra, em Lisboa) onde é feita menção à operação. A primeira delas, sem data, mas com o registo à margem de Fevereiro de 1646, foi enviada pelo Conde Marechal (D. Francisco de Mascarenhas, Conde de Serém e governador das armas) ao Rei. A outra carta não reporta em primeira mão, tendo sido escrita em Lisboa em 7 de Março de 1646 pelo padre António de Amaral, mas refere no seu conteúdo o que o doutor António Cabral de Castelo Branco, morador em Celorico, escreveu ao padre sobre o assalto à ponte de São Felizes. Dado o interesse de ambos os documentos, passo a transcrevê-los, vertendo-os para português corrente para melhor entendimento.

Cópia da carta para Sua Majestade, do Conde Marechal, sobre a Ponte de São Felizes

Em 20 do corrente mandei intentar a entrepresa da ponte de São Felizes, conforme a ordem de Vossa Majestade. Encarreguei esta facção ao sargento-mor Agostinho de Andrade Freire, soldado de mui boa satisfação. Levou a seu cargo 600 infantes e três companhias de cavalos, e com o favor de Deus se investiu com a ponte somente pela parte deste Reino, por se não poder vadear o rio. Avançou a nossa gente a uma torre forte que havia no meio da ponte, se ganhou com facilidade, logo se passou a gente necessária à parte de Castela [para] ocupar uma colina, posto muito importante para se trabalhar com seguridade, e para impedir o dano que por aquela parte o inimigo nos podia fazer. Julgou-se por tempo necessário um dia para se derrubar a ponte, e não se pôde conseguir em menos de três dias pela grandeza e fortaleza de sua fábrica, desta detença se resultou grande glória, com grande reputação às armas de Vossa Majestade.

O inimigo juntou tudo quanto pôde nestes dias e não ousou acometer a nossa gente, por termos postos avantajados e retirada segura, e só usou de tocar arma de noite em Almeida, entendendo se disparasse a artilharia com que se divertisse a nossa gente [ou seja, procurou fazer soar o alarme para que os portugueses retirassem da ponte e fossem socorrer Almeida], o que lhe não sucedeu por se entender que este era o seu desígnio.

A nossa gente está fortificando o lugar de Vermiosa, e com intento de se fazer atalaia no Cabeço das Mesadas, com que se julga ficarão os lugares de Riba de Coa com quietação e sossego.

Filipe Bandeira de Melo, governador da praça de Almeida, se houve com muito boa disposição e diligência nos aprestos de socorros de mantimentos e munições todos os três dias, com tanto cuidado que me obrigou a lembrar a Vossa Majestade seus procedimentos. Isto é em suma o que tenho sabido deste bom sucesso, de que me pareceu avisar a Vossa Majestade para o ter entendido. (…)

O segundo documento é mais breve, mas reporta uma outra acção, além da ponte de São Felizes.

Novas da Beira em carta de Lisboa do padre António de Amaral,  de sete de Março de 1646

Chegou carta do padre António Cabral de Castelo Branco, morador em Celorico, em que conta a facção da ponte de São Felizes na forma seguinte. O capitão Brás de Amaral, levando até mil soldados, acometeu a ponte e o castelejo, onde achou até 30 soldados castelhanos, os quais, querendo se defender, foram mortos pelos nossos; que vencido este primeiro encontro, passaram fazendo rosto ao lugar de São Felizes de Galegos, deixando oficiais fazendo minas na ponte, que constava de cinco fortes olhões, e tendo-lhe metida a pólvora nas minas, se mandou voltar os nossos e que passassem a ponte, à qual mandou dar fogo e fez voar pelos ares. Ficaram da nossa parte três ou quatro lugares dos castelhanos; com isto ficamos seguros deles poderem passar a nossas terras em Inverno; nelas andam já os nossos semeando os tremoços.

A segunda facção foi em 26 do passado, saíram da Sarça e da parte de Alcântara 40 cavaleiros a roubar-nos as terras das Idanhas, colheu-os da nossa banda a cheia dos rios. Saíram-lhe os nossos e cativaram trinta, os dez que os guiavam e eram portugueses traidores, temendo que, se os cativassem os nossos, haviam de ser arcabuzeados, se lançaram ao rio e nele se afogaram todos. (…)

Estes dois documentos complementam-se nas informações que dão sobre a destruição parcial da ponte de São Felizes. O limitado objectivo estratégico foi – como muitas vezes na pequena guerra de fronteira – o de proteger as populações das incursões predatórias do inimigo. Num pormenor diferem as duas cartas: o comando das operações. Enquanto o governador das armas refere ter atribuído o comando ao sargento-mor Agostinho de Andrade Freire, já as informações recebidas pelo padre de Lisboa indicam o capitão Brás de Amaral Pimentel – provavelmente o oficial que comandou as forças no terreno durante o assalto à ponte. Por outras fontes do período da Guerra da Restauração, sabe-se que Agostinho de Andrade Freire, apesar da sua reputação de soldado experiente, não gostava muito de expor a sua pessoa a riscos desnecessários. Quanto a Brás de Amaral Pimentel, viria a ser capitão-mor de Almeida nos inícios da década de 50, e nesse cargo teve alguns contratempos pessoais. Mas isso fica para outra ocasião.

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Relações manuscriptas de Portugal, desdo anno de 1643 athe 1646”.

Imagem: Vista parcial do perímetro defensivo da praça de Almeida, na actualidade. À direita, os quartéis de cavalaria, datando do século XVIII. Foto de JPF.

Manuel Freire de Andrade – um pequeno apontamento sobre a sua carreira

Manuel Freire de Andrade foi um oficial que se distinguiu durante a Guerra da Restauração na cavalaria, tendo chegado ao posto de general da cavalaria da Beira, no desempenho do qual viria a ser mortalmente ferido na batalha de Ameixial, em 1663.

A sua ascensão aos postos mais elevados do exército iniciou-se em 1653, quando foi proposto por D. Rodrigo de Castro, então governador do partido de Riba Coa, para comissário geral da cavalaria, posto que se encontrava vago por promoção de João de Melo Feio a mestre de campo.

É dessa proposta, enviada ao Conselho de Guerra, que consta uma abreviada resenha da carreira militar de Manuel Freire de Andrade, na qual se refere que o então capitão de cavalos sempre servira na cavalaria (no Alentejo e na Beira), entrando nas campanhas de 1643, 1645 e 1646, com sua pessoa e 2 criados à sua custa; e que havia 4 anos e meio que servia na da Beira, sendo um deles de soldado com 2 cavalos, e 3 anos e meio como capitão de uma companhia, tendo servido com distinção no assalto e queima da vila de Sabugo, Villa Vieja e Bugajo, na ocasião em que o Marquês de Távora veio à praça de Almeida com 3.000 infantes e 800 cavalos, no assalto ao forte e vila de Ródão, na escalada dos arrabaldes da cidade de Coria, queima da vila de Martingo e em outras ocasiões, tendo também servido na Armada que foi desimpedir a barra de Lisboa dos navios do Parlamento inglês (1650).

A sua nomeação, no entanto, demorou alguns meses a ser efectivada. Só em 14 de Fevereiro de 1654 o Rei confirma, por decreto o novo posto de Manuel Freire de Andrade, e em 23 do mesmo mês é escrita uma carta régia a D. Rodrigo de Castro, dando conta da referida nomeação.

Fontes: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1653, mç. 13, consulta de 17 de Julho de 1653; e Secretaria de Guerra, Livro 17º, fls. 125-125 v.

Imagem: vista de Almeida, praça forte onde residia o governador do partido de Riba Coa (ou de Almeida), D. Rodrigo de Castro. Foto de JPF.

Efectivos da província da Beira, partido de Penamacor, em 1648

Em Setembro de 1648, a propósito da insuficiência de dinheiro para pagamento de todas as forças da província da Beira, o governador das armas do partido de Penamacor (distrito militar – por vezes também referido como partido de Castelo Branco), D. Sancho Manuel de Vilhena, enviou ao Conselho de Guerra uma lista exaustiva dos efectivos de que dispunha. Através desse rol ficamos a conhecer o detalhe das unidades que serviam então no partido de Penamacor.

PRIMEIRA PLANA DA CORTE [mais do que um Estado Maior, era uma lista que abrangia todos os oficiais que tinham o privilégio de receberem em primeiro lugar a mesada destinada à província, mesmo que o que sobrasse não fosse suficiente para pagar aos restantes oficiais e praças das unidades; incluía oficiais sem unidade, mas com patente e privilégio passado por decreto régio, capitães-mores de algumas localidades do partido (mesmo de zonas afastadas da fronteira de guerra), “oficiais de pena”, ou seja, não combatentes, amanuenses, cirurgiões e outros]:

1 governador das armas; 1 tenente de mestre de campo general; 1 ajudante de tenente de mestre de campo general; 1 vedor geral; 1 pagador geral; 2 oficiais da Vedoria e da Contadoria Geral do exército; 1 guarda-livros da Vedoria e Contadoria Geral do exército; 1 ajudante do pagador geral; o mestre de campo Manuel Lopes Brandão; o capitão-mor da cidade de Coimbra; o capitão-mor da praça de Salvaterra [do Extremo]; 1 auditor geral; 1 administrador; 1 físico-mor [equivalente ao médico dos nossos dias]; 1 cirurgião-mor; 2 almoxarifes das armas e abastecimentos da praça de Penamacor; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Idanha a Nova; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Salvaterra [do Extremo]; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Segura;1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Rosmaninhal; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Zebreira; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Proença a Velha; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Monsanto; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Penha Garcia; e uma praça morta [pensão por invalidez] que se paga por alvará régio a Francisco Sanchez Bueço. TOTAL: 26 elementos.

INFANTARIA

Terço do mestre de campo João Fialho

Primeira plana do terço: 1 mestre de campo, 1 sargento-mor, 2 ajudantes do número, 2 ajudantes supranumerários, 1 capitão de campanha [oficial de justiça], 1 furriel mor, 1 tambor mor. TOTAL: 9 elementos.

Companhia do mestre de campo: 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 1 capitão reformado, 3 alferes reformados, 1 sargento reformado [estes oficiais e sargentos reformados serviam como praças, recebendo um soldo inferior ao que correspondia à sua patente se estivessem providos nos respectivos postos; logo que vagassem postos numa companhia, poderiam vir a ocupá-los, tornando a receber o soldo correspondente à patente], 4 cabos de esquadra, 74 soldados. TOTAL: 89 elementos.

Companhia do capitão Paulo Craveiro: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 75 soldados. TOTAL: 87 elementos.

Companhia do capitão Simão da Costa Feio: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 46 soldados. TOTAL: 58 elementos.

Companhia do capitão Simão de Oliveira da Gama: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 67 soldados. TOTAL: 79 elementos.

Companhia do capitão Jorge Fagão: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 54 soldados. TOTAL: 66 elementos.

Companhia do capitão Mateus Álvares: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 45 soldados. TOTAL: 57 elementos.

Companhia do capitão Manuel de Brito: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 50 soldados. TOTAL: 62 elementos.

Companhia do capitão Diogo Freire: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 45 soldados. TOTAL: 57 elementos.

Companhia do capitão José de Oliveira: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 46 soldados. TOTAL: 58 elementos.

Companhia do capitão Manuel Correia: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 51 soldados. TOTAL: 63 elementos.

Companhia do capitão Fernão Monteiro: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 44 soldados. TOTAL: 56 elementos.

Companhia do capitão Domingos da Silveira: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 52 soldados. TOTAL: 64 elementos.

Companhia do capitão Simão Feitor: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 70 soldados. TOTAL: 82 elementos.

Efectivo total do terço do mestre de campo João Fialho: 887 homens (111 oficiais, sargentos e outros, fazendo parte da primeira plana do terço e das primeiras planas de cada companhia; 776 cabos de esquadra e soldados), em 13 companhias.

Companhias soltas de auxiliares (assistindo nas diversas praças da fronteira)

Companhia do capitão Manuel de Araújo: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 1 tambor, 4 cabos de esquadra, 44 soldados. TOTAL: 55 elementos.

Companhia do capitão António Estaço da Costa: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 1 tambor, 4 cabos de esquadra, 55 soldados. TOTAL: 66 elementos.

Companhia do capitão João de Elvas: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 1 tambor, 4 cabos de esquadra, 56 soldados. TOTAL: 67 elementos.

Os oficiais e soldados das duas primeiras companhias, apesar de serem de auxiliares, recebiam o mesmo soldo que os seus congéneres do exército pago, o que constituía uma excepção; a companhia do capitão João de Elvas recebia apenas pão de munição por conta da fazenda real, como estava regulamentado para os auxiliares.

Efectivo total das três companhias auxiliares: 188 homens (21 oficiais e outros; 167 cabos de esquadra e soldados).

CAVALARIA

Por não haver na altura comissário geral da cavalaria naquele partido, toda a cavalaria (constituída inteiramente por arcabuzeiros a cavalo) era governada pelo capitão Gaspar de Távora e Brito. Existia, todavia, uma primeira plana da cavalaria.

Cavalaria paga

Primeira plana da cavalaria: 1 ajudante; 1 capelão mor. TOTAL: 2 elementos.

Companhia do capitão Gaspar de Távora e Brito: 1 capitão, 1 pajem, 1 tenente, 1 alferes, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 47 soldados. Total: 59 elementos.

Companhia do capitão Manuel Furtado de Mesquita: 1 capitão, 1 pajem, 1 tenente, 1 alferes, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 66 soldados. Total: 88 elementos.

Companhia que foi do comissário geral, governada pelo tenente João Colmar: 1 tenente, 1 alferes, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 52 soldados. Total: 62 elementos.

Efectivo total das três companhias de cavalaria paga: 200 homens (23 oficiais e outros; 177 cabos de esquadra e soldados).

Cavalaria da ordenança

Companhia do capitão João Cordeiro: 1 capitão, 1 tenente, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 85 soldados. Total: 95 elementos.

Companhia do capitão Henrique Leitão Rodrigues: 1 capitão, 1 tenente, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 41 soldados. Total: 51 elementos.

Estas companhias recebiam apenas pão de munição e o centeio para o animais, por conta da fazenda real.

Efectivo total das duas companhias de cavalaria da ordenança: 146 homens (12 oficiais e outros; 134 cabos de esquadra e soldados).

O partido de Penamacor contava com 31 “Vigias do Largo” (montados, pois vêm referidos na parte correspondente à cavalaria), destinados dar o alerta de quaisquer entradas que o inimigo fizesse, os quais recebiam 160 réis por dia. Os cavalos deviam ser dos próprios e não recebiam qualquer provimento de cevada ou centeio para os animais nem pão de munição, pois nada consta a este respeito na minuciosa lista mandada elaborar por D. Sancho Manuel.

ARTILHARIA

Plana dos oficiais da artilharia: 1 capitão da artilharia, 1 gentil homem da artilharia, 2 condestáveis da artilharia, 10 artilheiros. Total: 14 elementos.

Como nota adicional, acrescente-se que a lista incluía nas despesas os gastos com 40 prisioneiros castelhanos, que recebiam cada mês um total de 1.200 pães de munição de um arrátel cada, as quantias com despesas secretas (destinadas a espionagem) e correios, e com 22 cavalos desmontados (provavelmente em adestramento para servirem nas companhias), os quais recebiam rações de centeio.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1648, mao 8-B, “Rellação da Gente de guerra, Infantaria, Caualaria e Artilharia, que assiste nesta Prouincia da Beira em o Partido das tres Comarcas Castelo Branco Viseu e Coimbra de que he Gouernador das Armaz D. Sancho Manuel…”, anexa à consulta de 11 de Dezembro de 1648.

Imagem: “Soldados numa aldeia” (1644), pintura de Joost Cornelisz (1586-1666).

O mestre de campo João Fialho

A propósito do mestre de campo João Fialho, acima referido como comandante do terço pago do partido de Penamacor, o leitor JCPort deixou aqui há algumas semanas comentários interessantes sobre aquele seu antepassado, que passo a reproduzir, agradecendo mais uma vez a sua colaboração:

João Fialho, natural de Alenquer, Vila Verde dos Francos, era Fidalgo da Casa Real por serviços prestados na sua acção durante a Guerra da Restauração, no comando de um terço de infantaria na zona fronteiriça do Alentejo [e principalmente na Beira, como é patente].

Conforme biografia incluída nos Livros de RGM – Ordens, nºs 2,7 e 10, na atribuição de duas Comendas na Ordem de Cristo entre 26-06-1644 e 15-02-1669 (S. Miguel do Outeiro e St.a Maria de Almendra), refere-se, na atribuição da Comenda de Sta. Maria de Almendra, que fora Mestre de Campo e Governador de Armas da Província da Beira no impedimento do proprietário [provavelmente por um breve período, como interino, pois não consta nas listas oficiais].

João Fialho teve um filho natural de nome Luís Fialho, que se destacou, como o pai, na defesa fronteiriça do Alentejo, e uma irmã Mariana, que casou com um João Correia (Felgueiras Gayo, título “Salinas”). Desconhece-se se eram filhos da mesma progenitora.

Uma escaramuça em terras de Riba Coa, 1642 – por Juan Antonio Caro del Corral

Enquanto os afazeres profissionais não me deixam actualizar o blogue com a regularidade desejada, aqui vos deixo mais uma interessante colaboração de Juan Antonio Caro del Corral – originalmente um comentário a esta entrada, mas que merece o devido destaque em artigo próprio. Os meus agradecimentos ao Juan Antonio, especialista na investigação histórico-militar da fronteira da Beira. Em breve darei mais um contributo sobre esta fronteira, com a colaboração do estimado leitor JCPort, que teve a amabilidade de me endossar alguns documentos, e a quem aproveito para agradecer.

UNA ESCARAMUZA EN TIERRAS DEL RIBACOA

1642 fue un año muy pródigo en sucesos militares. Salvo en algunas ocasiones puntuales, que obligaron a que el número de tropa reclutada alcanzase notabilidad, la mayor parte de los acontecimientos no fueron más que pequeñas incursiones enmarcadas en la denominada “guerra de frontera”, dónde el pillaje primaba sobre cualquier otro objetivo. Así, las pretensiones no eran conquistar pueblos y aldeas, sino que lo verdaderamente interesante era obtener un cuantioso botín, el cual se repartiría posteriormente entre todos los implicados en el ataque, atendiendo, como es lógico, a su categoría dentro del estamento militar.

Estas acciones, llamadas unas veces “de course”, en otras “escaramuzas”, o simplemente “de castigo”, al desarrollarse con frecuencia, producían un doble efecto en quienes más directamente las sufrían: los vecinos de los lugares atacados.

Por una parte éstos veían mermadas sus pertenencias, que eran robadas e incendiadas por los agresores; y en segundo lugar, la moral también decaía considerablemente, pues apenas había tiempo de recuperación entre un ataque y el siguiente. En definitiva, consecuencias físicas y psicológicas.

Un claro ejemplo de estas incursiones y sus resultados negativos,  fue la realizada sobre Villanueva del Fresno en el citado 1642, cuyo desarrollo ha sido debidamente tratado en uno de los capítulos de este blog histórico-militar. Pero, como dijerá párrafos atrás, ése no fue el único acontecimiento de aquel año.

Bajo las pautas que caracterizaban a las escaramuzas y que ya han quedado expuestas anteriormente, poco después del suceso de Villanueva, tuvo lugar un hecho que causó gran conmoción al ser debidamente publicitado tras su conclusión. Tuvo lugar en tierras de la Beira Alta, concretamente en la comarca llamada popularmente Ribacoa.
Limitaba esta zona con la frontera mirobrigense, gobernada por el Excelentísimo señor Duque de Alba. Este general llevaba ya un tiempo meditando una entrada en campo enemigo, sobre todo porqué, en los meses precedentes, los lugares de su jurisdicción más próximos a la Raya divisoria (Aldea del Obispo, Fuentes de Oñoro, La Fregeneda….)  habían sido objeto de duras acciones represivas por parte de los portugueses de la mentada región beirense.
Así pues, era opinión del Duque lanzar un ataque en venganza del daño recibido.

Combinando sus movimientos con los realizados por otras tropas de la frontera pacense, que a su vez tenían intención de atacar en la frontera sur al objeto de dividir a las posibles fuerzas defensoras lusitanas y facilitar con ello el éxito del de Alba, mándo éste reunir un potente ejército poniendolo a las órdenes de sus dos mejores oficiales: Juan Suárez de Alarcón, más conocido por su noble título de Conde de Torresvedras, y Alvaro de Vivero, mano derecha principal del Duque.

Así, con 1200 infantes y 500 caballos, más otras gentes procedentes de Valladolid y Salamanca, se pusieron en camino ambos comandantes el día 17 de octubre de 1642.

Cruzaron la frontera por los vados situados junto a la localidad de San Felices de los Gallegos, encontrándose frente a su posición una vasta campiña cuajada de alquerias, aldeas y villas que, desconociendo el peligro que sobre ellas se cernía, tenían sus campos, ganados y haciendas totalmente descuidadas. Sin duda un inmejorable botín para los castellanos.

Comenzo la escaramuza sin hallar oposición. Dividióse al efecto en dos grupos el ejército invasor. Uno atacó la banda derecha y el restante la izquierda.

Escarigo, lugar de apenas 200 vecinos y con sólo un retén de 60 soldados, fue el primero en conocer la rapiña de los hombres comandados por el Marqués de Creche, comisario general de la caballería castellana. Del incendio se salvó unicamente la iglesia.

Siguieron la estela de Escarigo las villas de Vermiosa, Almofala, Colmeal y Torre dos Frades. En esta última hicieron noche para descansar y reponer fuerzas la gente de Torresvedras y Vivero.

A la mañana siguiente, 18 de octubre, continuó la cabalgada saqueándose el poblado llamado Mata de Lobos, dónde dieron muerte a ocho vecinos que huían cargados de ropa, pan, vino, trigo y otros enseres.

Para entonces los únicos que se habían atrevido a detener la invasión fueron unos jinetes procedentes de la plaza amurallada de Castel Rodrigo, aunque no tuvieron fortuna en su intento, teniendo que retirarse al galope.

El ejército castellano, pese a todo, no se detuvo, y se presentó al mediodía ante las puertas de Escalhao, sin equivoco la población más importante y rica de cuantas se habían hallado en su avance.

Toda la vecindad (más de 600 personas), ante el aviso de que llegaba el invasor, estaba recogida en la iglesia, convertida en una auténtica fortaleza. Fue responsable de la defensa de la misma el sargento Joao da Silva Freio, al mando de 35 soldados.

Soportaron el asedio castellano muchas horas; incluso acabaron con la vida de varios militares. Cuenta la tradicción escalonense que un hombre del lugar, de nombre Janeirinho, armado de valor y coraje, enfrentándose a un capitán que pretendía entrar en el reducto religioso, logró acabar con la vida del agresor al tiempo que gritaba enardecido”… Viva o Janeiro com a sua porra…”.

Leyendas aparte, lo cierto, según los documentos conservados, es que los castellanos, viendo la imposibilidad de tomar la iglesia y faltándoles munición y víveres para seguir su correría, optaron por finalizarla, regresando aquella misma tarde a sus cuarteles de Ciudad Rodrigo.

Consigo llevaron muchas cabezas de ganado, gran bulto de ropa, utensilios varios y otras menudencias que la soldada obtuvo en los saqueos de los pueblos atacados.

Habían vengado de esta forma las afrentas recibidas, satisfaciendo los planes del Duque de Alba. Objetivo cumplido.
Así fue y así terminó una de las muchas acciones de guerra que tuvieron como escenario a la frontera extremeña-portuguesa. Era sólo el segundo año de conflicto, y quedaban aun por cumplirse veintiséis campañas más.

Pero eso es otra historia.

JUAN ANTONIO CARO DEL CORRAL

Imagem: “Escaramuça de cavalaria”, por Pieter Meulener.

Espionagem e traição na fronteira da Beira, 1651 – o caso do capitão João Cordeiro

Ao capitão de cavalos da ordenança João Cordeiro já foi feita referência a propósito do assalto à ponte de Alcântara. Nascido ou pelo menos criado em Segura, tido como guia experiente, o capitão perdeu-se quando conduzia a força que devia executar o ataque à praça raiana, resultando daí o atraso no início das operações. Em consequência, D. Sancho Manuel mandou-o prender. Mais tarde, esclarecido o caso, o oficial foi libertado.

Quanto a espionagem e contra-espionagem, recentemente foi trazido aqui um exemplo a partir de um documento coevo. O capitão João Cordeiro também esteve relacionado com este campo particular da guerra de fronteira. A tal ponto que aí ficou traçado o seu destino.

Em 15 de Maio de 1651, uma consulta do Conselho de Guerra tratava de um acontecimento ocorrido – presume-se – na praça de Segura. A falta da carta de D. Sancho Manuel, que a consulta apenas resume, não permite saber ao certo. O que se passou naquela distante fronteira foi considerado assunto grave: o governador das armas dava a conhecer a traição que um castelhano da Sarça [Zarza la Mayor] (que por via do capitão João Cordeiro lhe dava alguns avisos, que se lhe pagavam com pontualidade) cometeu, matando o mesmo capitão João Cordeiro. Sendo o caso que, vindo-se este castelhano a descobrir com os seus oficiais [ou seja, a revelar o seu papel de espião], eles o persuadiram a que matasse o capitão João Cordeiro, como fez, e vindo na noite de 4 do presente comboiado pelas tropas inimigas, chegara à porta do capitão João Cordeiro, metendo-se por onde a praça ainda não estava fechada, sem ser sentido das sentinelas por não vir pelas avenidas; e dizendo ao capitão que lhe trazia um aviso para dar a ele Dom Sancho, se apartara o capitão João Cordeiro com ele, e estando sós lhe dera o castelhano um pistoletaço de que logo morreu, pondo-se o traidor logo em cobro, o que pôde fazer porque no mesmo tempo acometeram as tropas do inimigo às avenidas e se tocou arma, com o que teve lugar o traidor de se meter com os seus, que se retiraram ao som de trombetas, como se com sua traição conseguiram ganhar uma província.

Contava assim D. Sancho Manuel, despeitado, o triste fim do capitão da ordenança, de quem havia três anos desconfiara e mandara prender. Pela traição, sugere que o Rei mande que se não dê quartel a nenhum castelhano, e que permita que o próprio D. Sancho possa mandar executar os inventores desta maldade.

Os conselheiros opuseram-se de forma veemente a esta sugestão de D. Sancho, pois não se devia admitir nem praticar tal coisa, por não se usar entre cristãos o não dar quartel. Sugeriram ao Rei que mandasse D. Sancho acabar de cerrar a praça, para que ninguém pudesse entrar sem ser sentido – e se não pudesse ser com muralha, que fosse com trincheira e estacada. Quanto aos herdeiros do falecido capitão, consideraram ser merecedores de receber alguma mercê régia, em virtude de João Cordeiro ter sido um grande sujeito, bizarro e valente capitão.

Uma curiosidade: a título particular, acrescentaram à consulta D. Álvaro de Abranches e Jorge de Melo os seus pareceres, nos quais disseram que os moradores da Sarça são costumados a fazer traições, por onde já tiveram castigo, o que lhes parece que se encomende a Dom Sancho procure fazer o mesmo ao traidor.

Espionagem e contra-espionagem – mas também traições, castigos e vendettas. A fronteira da Beira parece ter sido terreno fértil nestes casos. O historiador Gastão de Melo de Matos, na sua obra Um soldado de fortuna do século XVII (Lisboa, s. n., 1939), narra o episódio de dúbios contornos do então sargento-mor António Soares da Costa, o Machuca, e o triste fim de D. Alfonso de Sande y Dávila. Mas, como costuma dizer Juan Antonio Caro del Corral, isso é outra história.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1651, maço 11, consulta de 15 de Maio de 1651.

Imagem: Pausa dos militares. Pintura de Simon Kick (1603-1652).

O assalto à ponte de Alcântara, 25 e 26 de Março de 1648 (2ª parte)

Na madrugada de 26 de Março, uma quinta-feira, D. Sancho Manuel reatou a investida contra a ponte de Alcântara. Duas horas antes do amanhecer, a força portuguesa logrou aproximar-se do objectivo, enganando os sentinelas ao falar-lhes em castelhano, dizendo que eram moradores de Zarza e que vinham pedir socorro, pois que D. Sancho Manuel tinha tomado a vila. Com este estratagema, os homens do terço do mestre de campo João Lopes Barbalho investiram de surpresa a ponte, rompendo três portas, duas estacadas e dois retrincheiramentos com três petardos, e o demais a braço dos infantes, estando de guarnição nelas duzentos e trinta infantes com três capitães e um sargento-mor por cabo, que havendo acudido à defesa com muito valor, não bastou para resistir ao com que os soldados de Vossa Majestade a trataram de ganhar, sobre que pudera dizer grandes encarecimentos, que não faço, porque a poderá melhor significar a consideração de que não era possível ganhar-se tanta fortificação sem demasiado valor, o que experimentaram os castelhanos à custa de muitas mortes, em que entraram pessoas de consideração. (Carta de D. Sancho Manuel).

Os defensores que estavam de guarda retiraram precipitadamente, oferecendo pouca resistência, até ao meio da ponte, onde se juntaram à companhia do capitão D. Rodrigo de Aponte y Zúñiga; recebendo reforços, a força defensora conseguiu parar a investida dos portugueses. De parte a parte houve muitos mortos e feridos, resultantes do encarniçado combate que se travou.

Impossibilitado de avançar mais, João Lopes Barbalho tratou de garantir o terreno já conquistado. (…) [G]anhada a metade da ponte, havendo favorecido muito poder do inimigo, tratou o mestre de campo de se cobrir com trincheiras, em que era noite, por escutar as ofensas que se lhe poderiam seguir, de amanhecer sem estar reparado, maiormente que se não necessitava mais para o intento de derrubar a ponte que o espaço dela que estava ganhada. E assim mandou abrir minas, nas quais se continuaram cinco dias com o cuidado que pedia a matéria, recrescendo no escuro (…) todas as horas socorros de consideração ao inimigo, que para estorvar o intento faziam empenhos que não foi possível conservar o posto sem uma contínua bateria, de que nos resultou perda de 30 mortos e 76 feridos, que recompensou bem o efeito que resultou da mina, que foi arrebentar um arco que tinha de largo cento e cinquenta palmos, e de arco de sessenta, com o que não somente se segue arruinar a Castela uma das maiores obras de seus Reinos, impossibilitar à vila de Alcântara lucro de suas fazendas, impedir à Zarza e aos mais lugares que ficam desta parte do Tejo os socorros que lhe vinham de Badajoz, senão ainda desafogar esta Província dos danos que padecia a este respeito. (Carta de D. Sancho Manuel)

Os alcantarenses tinham recebido reforços de várias partes e de toda a nobreza de Brozas e de Cáceres, mas optaram por não os empregar em operações de contra-ataque devido à duvidosa qualidade dos mesmos. Assim, assistiram impotentes ao derrube do arco da ponte, se bem que um manuscrito coevo, transcrito por Gervasio Velo y Nieto, refere que El daño que el rebelde hizo en el puente no fué tanto como se pensó, porque todo el arco que juzgó volar quedó firme en las claves y solamente de los lados padeció alguna ruina. No ha impedido el paso, antes hoy dice el ingeniero mayor del ejército, que aquí se halla, tiene la cortadura linda disposición para hacerse un puente levadizo, con que quedará más asegurada la defensa de esta plaza y del puente. (Velo y Nieto, pg. 78)

No mesmo manuscrito, elaborado pouco depois do combate, pode ler-se que o número de baixas dos portugueses era desconhecido, e que entre os defensores houve netre 12 e 15 mortos e mais de 300 feridos e queimados, entre eles um sobrinho do mestre de campo D. Simón de Castañiza, caído na ocasião do rebentamento do primeiro petardo português.

Já D. Sancho Manuel termina a sua carta com as considerações finais e as recomendações  dos que mais se tinham distinguido em combate:

E no último dia em que havíamos de dar fogo às minas acabou o inimigo de juntar todos seus socorros, com que fez muito maior número de cavalaria e infantaria do com que eu me achava. E porque me não perturbassem, ordenei ao comissário geral que com trezentos cavalos e cem infantes fosse a impedir-lhe a pasagem do rio Alagão e procurasse queimar-lhe as barcas, o que ele fez com grande bizarria, ocupando o vau e mandando ao ajudante da cavalaria João de Almeida de Loureiro que fosse ao porto das barcas a queimá-las, o que obrou com mui bom sucesso, com o que sem sobressaltos consegui o que pretendia. Estimara ser instrumento para que Vossa Majestade lograra outras maiores facções, se bem esta se deve avaliar por uma das maiores que se tem conseguido depois da feliz aclamação de Vossa Majestade. Nesta ocasião se houve o mestre de campo João Lopes Barbalho com a disposição e valor que as armas de Vossa Majestade têm experimentado de seu talento há muitos anos, assim nas guerras do Brasil como deste Reino, e foi-lhe bom companheiro o capitão António Soares da Costa, ajudante de tenente de mestre de campo general, que foi o primeiro que entrou às portas petardeadas; o capitão Pedro Craveiro de Campos, que nesta ocasião ocupou a vanguarda até ser ferido nela, na qual sucedendo os capitães Filipe do Vale Caldeira e Simão de Oliveira da Gama; que com muito valor pelejaram o ajudante Álvaro Saraiva, que governando uma companhia fez o mesmo; os ajudantes Manuel Machado Caldeira e Domingos da Silveira acudiram com particular satisfação às obrigações de seus cargos, e geralmente o fizeram todos, de maneira que devem ser admitidos em título dos melhores vassalos que logra a Coroa de Vossa Majestade, cuja Católica e Real Pessoa guarde Deus largos e felizes anos, como a Cristandade há mister. Idanha.

Em conclusão, o ambicioso plano de D. Sancho Manuel de Vilhena não pudera concretizar-se na tomada de Alcântara; todavia, restava ao cabo de guerra português demonstrar o seu zelo e  exaltar, do meio-sucesso obtido, um episódio de reputação para as armas régias, como aliás fazia frequentemente. As poucas linhas que dedica à operação o Conde de Ericeira (meia dúzia, literalmente, na edição de 1751, facsimile acessível online a partir de Google ebooks) são demonstrativas do pouco efeito prático que o rebentamento parcial da ponte teve, apesar do que D. Sancho Manuel sugere na sua carta. Mas para a pequena guerra de fronteira, mesmo sem pesar no quadro da estratégia global, foi mais uma ocasião de experiência de combate para as forças envolvidas.

Fontes e bibliografia:

ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1648, maço 8-A, carta de D. Sancho Manuel, anexa à consulta de 25 de Abril de 1648.

ERICEIRA, Conde de – História de Portugal Restaurado, Parte I, Livro X, edição de 1751, pg. 268; obra parcialmente disponível on-line.

VELO Y NIETO, Gervasio – Escaramuzas en la frontera cacereña, con ocasión de las guerras por la independencia de Portugal, Madrid, s.n., 1952.

Imagem: “Trabalhos de fogo”, pormenor de um quadro de 1645, de Joseph Furttenbach, Germanisches Nationalmuseum. Representa um engenheiro de fogos, armado de capacete, coura e com uma rodela para defesa pessoal, bem como o instrumento com que os artilheiros davam fogo à peça, com dois morrões acesos – e que era usado também para os petardos.

O assalto à ponte de Alcântara, 25 e 26 de Março de 1648 (1ª parte)

Em 25 e 26 de Março de 1648, o governador das armas do partido de Penamacor, província da Beira, D. Sancho Manuel de Vilhena, tentou um arrojado empreendimento militar contra a bem fortificada praça de Alcântara (Alcántara, em castelhano). O acontecimento mereceu uma menção não muito extensa do Conde de Ericeira na História de Portugal Restaurado (parte I, Livro X, pg. 268, da edição de 1751, parcialmente disponível on-line). Já no século XX, o historiador espanhol Gervasio Velo y Nieto dedicou ao assalto algumas páginas em Escaramuzas en la frontera cacereña, con ocasión de las guerras por la independencia de Portugal (Madrid, s.n., 1952, pgs. 74-77), embora tenha transcrito erradamente a data do acontecimento a partir de um documento coevo, situando-o em Maio. Este episódio da pequena guerra de fronteira, tão característica do conflito luso-espanhol, permanece hoje praticamente desconhecido. Tivesse sido o resultado favorável às forças de D. Sancho Manuel, a façanha teria sido certamente perpetuada de modo estrondoso. Mesmo assim, sem ter logrado o objectivo inicial, a operação militar não foi deslustrosa, de acordo com a valoração das atitudes militares da época. Por isso, o futuro Conde de Vila Flor enviou a D. João IV um relatório detalhado, se bem que algo confuso na redacção, onde se refere ao “glorioso sucesso” da ponte de Alcântara.

O delinear da operação enquadra-se no pensamento militar típico do período: ausência de uma estratégia concertada com as outras frentes de guerra, desejo de notabilização do comandante em chefe por meio do acrescento da reputação das armas de Sua Majestade (que, em caso de sucesso, poderia traduzir-se numa recompensa pecuniária e no acréscimo da reputação do cabo de guerra, por via das mercês régias), reacção a anteriores actividades de depredação levadas a cabo pelo inimigo através de uma operação punitiva. No caso vertente, D. Sancho Manuel não se limitou a preparar uma acção de pilhagem, mas apontou a um fim mais ambicioso: a tomada de uma importante praça. No cerne da sua resolução também se encontra um traço comum à prática da guerra na Era Moderna – a fraca consistência da informação obtida sobre o inimigo, o que neste caso levou D. Sancho a supor que a operação poderia ser coroada de êxito, como veremos pela transcrição da sua carta.

A preparação da acção dificilmente seria mantida em segredo, pois os efectivos mandados concentrar eram de tal número para aquela parte da fronteira, que não passariam despercebidas ao exército espanhol as necessárias movimentações militares. Foram mobilizados 1.000 infantes: o terço do mestre de campo João Lopes Barbalho, reforçado com 200 elementos do terço do mestre de campo Diego Sanchez del Pozo – castelhano que se notabilizou ao serviço de D. João IV – e 100 auxiliares; e 500 cavaleiros comandados pelo comissário geral Pierre Maurice Duquesne, em 9 companhias. Duas destas eram da ordenança, pois a cavalaria de auxiliares só tomaria forma em 1650, e uma  era do exército do Alentejo, enviada como reforço – a do holandês Manuel Cornellis. No regresso desta companhia ao Alentejo ocorreria o episódio já aqui tratado sob o título “Um crime em Abrantes”. Acompanhava esta força de infantaria e cavalaria um grande número de carros e carretas, com diverso material e o necessário equipamento de fogos (petardos para derrubar as portas da fortificação) e os respectivos engenheiros.

Velo y Nieto refere que era esperada uma operação de envergadura por parte dos portugueses, mas não se sabia qual seria o objectivo. Havia receios que fosse Zarza la Mayor, em vingança de alguns dissabores causados pela cavalaria de Zarza, os montados, semelhantes às companhias de cavalos pilhantes ou moradores de algumas localidades portuguesas da fronteira. Mas Alcântara parecia pouco provável:

La conquista de la misma resultaba en extremo difícil, porque para llegar a sus puertas era indispensable vadear el río Tajo o pasar el puente romano, y ambas empresas ofrecían serios peligros; la primera, porque los accidentes de sus orillas imposibilitaban o dificultaban en extremo el paso de la artillería y demás pertrechos, ya que el terreno que circunda a la plaza es escabroso y casi inaccesible; y la segunda, porque si se aventuraban a cruzar el puente, serían barridos con el fuego de los mosquetes y la artillería. (Velo y Nieto, pgs. 74-75)

A progressão da força portuguesa foi lenta e atabalhoada e o factor surpresa, se é que era possível mantê-lo, logo se perdeu. No entanto, os espanhóis tardaram a acreditar que o objectivo de D. Sancho Manuel fosse a praça de Alcântara. Pensaram que se tratava de uma manobra de diversão até que a evidência os desenganou. Seguiu-se um combate renhido. Passemos à narrativa de D. Sancho Manuel, vertida em português corrente:

Por esta dou conta a Vossa Majestade do glorioso sucesso que Deus foi servido dar às armas de Vossa Majestade nesta Província, por meio dos que nela nos desvelamos pelo real serviço, e foi que resolvendo-me a empreender o que mais convinha à reputação das armas de Vossa Majestade, à quietação desta Província e bem deste Reino, me fui aos 24 para os 25 deste mês sobre a ponte de Alcântara, para naquela madrugada a entreprender, facilitando-me a facção haver alcançado notícias da pouca guarda e apercebimento com que estava a ponte, se bem prevenida de fortificação considerável, que constava de uma estacada forte, a que se seguia uma trincheira de 25 palmos de alto com uma porta mui forte, e a esta se seguia outra ainda de mais consideração, a que sucediam dois retrincheiramentos; e a eles outra estacada com porta, e acabado isto se topava com uma torre que havia no meio da ponte, bem aparelhada no forte para a defesa. Para conseguir este intento levei quinhentos cavalos governados pelo comissário Pedro Maurício Duquesne, que constavam das companhias dos capitães Gaspar de Távora, Manuel Furtado de Mesquita, João de Melo Feio, Dom Francisco Naper, e duas da ordenança, de Henrique Leitão Rodrigues, governada pelo seu tenente Fernão da Guarda, e João Cordeiro, com mais as de Manuel Cornellis e Nuno da Cunha de Ataíde, a cujo cargo vieram estas duas companhias, e sem embargo de seus achaques se achou em tudo com grande zelo. Era a infantaria mil infantes, dos terços dos mestres de campo João Lopes Barbalho, em que marchariam setecentos homens das companhias dos capitães Filipe do Vale Caldeira, Simão de Oliveira da Gama, Manuel de Brito, Mateus Alves, Simão da Costa Feio, Simão Fernandes de Faria, Fernão Monteiro Fialho, Jorge Fagão e a do capitão Diogo Freire, governada pelo seu alferes Per André, e a do mestre de campo governada pelo seu sargento com mais três companhias de auxiliares dos capitães João de Elvas, António Estaco, Manuel Laranjo, e marchavam mais duzentos infantes do terço do mestre de campo Diogo Sanches del Poço, a quem chamei com eles para se achar nesta ocasião; eram dos capitães Paulo de Andrade, Bartolomeu de Azevedo e a companhia de Bernardo Pereira, governada pelo ajudante Álvaro Saraiva. Com esta gente, que me pareceu bastante, me saí da praça de Segura, e em razão de lhe tocar por seu turno, nomeei para o primeiro assalto ao mestre de campo Diogo Sanches com a sua gente, dando-lhe do outro terço a que me pareceu necessária e todos os apetrechos de fogo e engenheiros dele que convinha para a execução do intento, e para sua guia ao capitão João Cordeiro, pessoa que por se haver criado na praça de Segura, era mais prático naquele distrito. E nesta conformidade, dando ao mestre de campo a gente que lhe tocava para a facção, o despedi pelo caminho mais oculto por onde se poderia avizinhar a ponte. E eu com o resto do que me ficou, segui via direita a emboscar-me junto a ela, donde havia de arrebentar [ou seja, aparecer], tanto q se petardeasse a primeira porta. Mas sucedeu muito ao contrário do que se podia imaginar, e foi que João Cordeiro, nas duas léguas que há de distância de Segura [a] Alcântara, gastou toda a noite sem acabar de chegar, a cuja causa o tenho prezo por me parecer não podia ser sem culpa sua, e vendo eu que por ser já claro dia se ia perdendo a facção, mandei investir a ponte pelo mestre de campo João Lopes Barbalho, parecendo-me que não podia Diogo Sanches estar tão longe que às primeiras cargas não chegasse com os petardos e mais aparelho de escalar, com o que por esta via se poderia remediar a falta que com sua tardança se seguia. Mas nem por esta via se conseguiu por esta vez a facção, porque havendo o mestre de campo Diogo Lopes Barbalho petardado a ponte, e não entrando só por falta de instrumentos, chegou Diogo Sanches com eles a tempo que o inimigo estava refeito, em razão de haver tido mais de duas horas para se poder prevenir, com o que querendo Diogo Sanches avançar, lhe deu uma pelourada de que está fora de perigo; feriram mais ao capitão Manuel Correia de Mesquita com um mosquetaço, de que morreu, havendo procedido com muito valor; também se deu outro ao sargento-mor Manuel Pinto, que se houve na mesma conformidade, e outra em o capitão Paulo de Andrade. E por ver que não estava já a facção capaz de se lograr me tornei a retirar à praça de Segura, onde me ofereceu à consideração impossíveis para o intento o tornar a conseguir, em razão de haver entrado ao inimigo socorro (…) (carta sem data, anexa à consulta de 25 de Abril de 1648, na véspera do nascimento do infante D. Pedro, futuro D. Pedro II – ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1648, maço 8-A)

Segundo um documento da Biblioteca Nacional de Madrid, citado por Velo y Nieto (e no qual a força portuguesa de infantaria é ampliada para o triplo: 3.000 homens), habiendo avanzado el Maestre de Campo, Diego Sánchez, a una de las puertas de aquel puesto con el más florido de un tercio, lo rechazó matándole cuatro o seis, y entre ellos un alférez vivo, y el mismo Maestre de Campo se retiró herido y con él la manga que abía avanzado, que por haberse descubierto a las defensas que tiene el puente, recebió mucho daño y por esta causa dejó  de avanzar la otra manga por la puerta de San Lázaro. (Velo y Nieto, pg. 75)

D. Sancho Manuel retirou para Segura, mas os defensores de Alcântara recearam que o exército português fosse atacar Zarza la Mayor, pelo que foram para ali enviados reforços de Ceclavín e outras localidades. Todavia, no dia 26 estava de novo o exército português sobre a ponte de Alcântara.

(continua)

Agradeço ao estimado amigo Juan Antonio Caro del Corral a disponibilização da obra de Velo y Nieto, de que me socorri para compor este pequeno artigo.

Imagem: A praça de Alcântara, sendo visível a ponte onde se travaram os combates. Planta publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

O outro Jacques Talonneau de la Popelinière, oficial francês de cavalaria ao serviço de Portugal (1646-1658)

Aelber

O primeiro Jacques Talonneau de la Popelinière foi um oficial francês que chegou a Portugal em Setembro de 1641, na armada do Marquês de Brézé, fazendo parte do regimento de cavalaria ligeira do coronel Sebastian de Mahé de la Souche. É indubitável a chegada de Popelinière nesta data, pois o seu nome é referido em diversos documentos, alguns dos quais relações dos oficiais franceses e respectivos regimentos. Quando Mahé de la Souche deixou Portugal em Maio de 1642 e o seu regimento foi dissolvido, Jacques de la Popelinière seguiu com a sua companhia para a Beira, onde logo foi nomeado comissário geral (Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, vol. I, pg. 387, edição de 1945). Em 1644, aquele oficial é dado como morto em combate – e é assim que o reporto no meu estudo O Combatente durante a Guerra da Restauração, ainda que referindo que o seu último posto foi o de tenente-general da cavalaria na província de Trás-os-Montes.

Na verdade, documentos que posteriormente consultei sugerem ter havido um outro Jacques Talonneau de la Popelinière (casos de homónimos eram raros, mas não impossíveis: houve o exemplo, também entre cavaleiros franceses ao serviço de Portugal na mesma época, dos primos Henri de la Morlaye, um morto em Outubro de 1642, outro em Maio de 1649, ambos em combate). Este Popelinière é que ocupou, como último posto, o de tenente-general da província de Trás-os-Montes. Chegou a Portugal em 1646, portanto já após a morte do primeiro, e também combateu nos mesmos teatros de operações antes de ser promovido a comissário geral na província de Trás-os-Montes, em Janeiro de 1658.

A necessidade de nomeação de um comissário geral da cavalaria para Trás-os-Montes deveu-se ao facto do posto estar vago, por promoção de Domingos da Ponte, o Galego, a tenente-general naquela mesma província. Na consulta do Conselho de Guerra onde são feitas as propostas de sujeitos para o posto vago pode ler-se a respeito do até então capitão Jacques Talonneau de la Popelinière (texto vertido para português corrente):

Jacques Talonneau de la Popelinière, pessoa de qualidade, de nação francês, que serve a Vossa Majestade há quase doze anos, ocupando os postos, depois de soldado, de alferes, tenente, e de capitão de cavalos, que serve em Trás-os-Montes há seis anos, um mês, e quinze dias, e o mais tempo parte dele na Beira, e outro nas fronteiras de Alentejo, achando-se nelas na maior parte das ocasiões que naquele tempo se ofereceram, e particularmente no encontro que houve em vinte seis de Março de seiscentos quarenta e sete, com vinte quatro tropas na passagem de Cantilhana, na escaramuça que depois se teve com outras tropas de Badajoz, ficando prisioneiro entre elas, e tornando de Castela em sua liberdade, se achou na emboscada que se fez junto a Badajoz em Setembro de quarenta e nove; no encontro que houve com sete tropas em Albufeira, indo mais de uma légua no seguimento delas; e se achou na peleja que a nossa cavalaria teve com a que saiu de Montijo, na correria da campanha de Xerês. E sair de Olivença a pelejar com o inimigo, que se veio emboscar junto da muralha da mesma praça, em Maio de seiscentos e cinquenta, desmontando um castelhano lhe deu uma cutilada no rosto. Na oposição que em treze de Fevereiro de seiscentos cinquenta e um se fez ao inimigo vindo com grosso de sua cavalaria a correr a campanha de Olivença, saiu ferido num braço com bala de pistola. E o mesmo ano se achou na entrada de Salvaterra, e o mesmo ano passou a Trás-os-Montes, onde por ordem do Conde de Atouguia, que governava as armas, por não haver cabo, governou a cavalaria que assistia em Chaves, achando-se nas duas entradas que se fizeram em Castela, e na ausência do capitão-mor da cidade de Miranda a ficou governando, acudindo com grande zelo às fortificações dela, e ultimamente se assinalou, matando e ferindo e rendendo a muitos do inimigo. E na entrada que em dois de Maio de seiscentos cinquenta e cinco se fez, pelas terras de Trás-os-Montes com quatrocentos e quarenta cavalos, tendo-se-lhe encarregado investisse o inimigo, como fez com valor indo em seu seguimento, e da mesma maneira obrar nas ocasiões referidas. Depois delas, acompanhou o mestre de campo António Jacques de Paiva, e achando-se em Miranda, nas entradas que fez em Galiza onze léguas pela terra dentro, saqueando-lhe mais de  setenta lugares, e as Vilas de Pino, Távora e Carvalhosa. E pretendendo o inimigo desquitar-se, vindo com quinhentos infantes pagos e outros tantos milicianos, e cento e quarenta cavalos, achando-se o mestre de campo na campanha com duzentos e três infantes e oitenta cavalos à ordem de Jacques Talonneau, investiu o inimigo com tal resolução, que matando-lhe muita gente e aprisionando-lhe duzentos trinta e sete soldados, com vinte e oito cavalos, e ganhando-lhe as munições e bagagem, e finalmente restaurando a presa que levava se recolheram, assinalando-se este capitão com particular valor, pelejando à espada, rendendo, ferindo e matando muitos castelhanos. Em outra ocasião, por ordem do tenente-general Luís de Figueiredo Bandeira, saiu com a sua companhia, e outra mais, governando-as, por haver o inimigo dado rebate à praça de Bragança, e encontrado-se com ele, pelejou com tal resolução que o pôs em fugida, trazendo ainda alguns prisioneiros do inimigo. Foi de socorro com sua companhia e a mais cavalaria de Trás-os-Montes à fronteira do Minho na ocasião que o inimigo a entrou com exército, e em todo o tempo que ali assistiram, se houve com grande valor nas pelejas, emboscadas e encontros que se teve com o inimigo, em que recebeu muito grande perda de gente morta, ferida, prisioneiros, e de cavalos que se lhe tomaram. Acabada a campanha, tornou para Trás-os-Montes. E vindo a esta Corte a tratar de seu requerimento, escreveu a favor deste capitão Joane Mendes de Vasconcelos, governando as armas naquela província, a Vossa Majestade que lhe devia Vossa Majestade de mandar deferir, assim por seu grande valor, como por ser o capitão mais antigo dela. E havendo Vossa Majestade despachado por seus serviços com o hábito de Santiago, foi servido se lhe mudasse ao de Cristo, com uma comenda de lote de duzentos mil réis.

O outro nome proposto foi o de Manuel da Costa Pessoa, que servia há treze anos, dois meses e vinte dias, tendo começado a servir em Setúbal em Setembro de 1640, na companhia de infantaria do Duque de Aveiro que devia ir à Catalunha; serviu 5 anos no Alentejo como soldado de infantaria e da cavalaria, foi cabo de esquadra e furriel e depois alferes de infantaria; participou na campanha de 1643 e nas duas campanhas de Montijo (como soldado de cavalos). Passou a Trás-os-Montes como alferes reformado, assim permanecendo 5 meses e 17 dias, mas depois, 3 anos e 27 dias de ajudante e como capitão de cavalos 4 anos, 7 meses e 11 dias.

O capitão francês acabou por ser provido no posto de comissário geral por decreto de 21 de Janeiro de 1658.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1658, mç. 18, consulta de 9 de Janeiro de 1658.

Imagem: Aelbert Cuyp, “Descanso no acampamento”, c. 1660, Musée des Beaux Arts, Rennes.

Província da Beira – infantaria e cavalaria do distrito de Penamacor em 1663

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Uma relação anexa à consulta do Conselho de Guerra de 19 de Novembro de 1663 (ANTT, CG, Consultas, 1663, maço 23-A, caixa 87) apresenta os efectivos detalhados que existiam no distrito militar de Penamacor, província da Beira. Eram os seguintes:

Infantaria

Salvaterra do Extremo

Compª do capitão D. Fernando de Chaves, 5 oficiais, 28 soldados, total: 33 homens.

Compª do capitão Inácio Arnaut, 4 oficiais, 19 soldados, total: 23.

Compª do capitão Manuel Vieira, 4 oficiais, 21 soldados, total: 25.

Compª que foi do capitão Sebastião de Elvas, agora governada pelo alferes Manuel Rodrigues,  3 oficiais, 30 soldados, total: 33.

Compª que foi do capitão Luís de Lima, agora governada pelo alferes Manuel Marques,  3 oficiais, 28 soldados, total: 31.

Segura

Compª do capitão António Rodrigues de Figueiredo, 5 oficiais, 35 soldados, total: 40.

Compª do capitão Hipólito Cardoso de Moxica, 5 oficiais, 28 soldados, total: 33.

Compª que foi do capitão Martim de Melo, agora governada pelo sargento Domingos Gonçalves,  3 oficiais, 21 soldados, total: 24.

Rosmaninhal

Compª do capitão João da Rocha, 5 oficiais, 35 soldados, total: 40.

Zebreira

Compª que foi do capitão Andrade Gouveia Coelho, agora governada pelo alferes José de Matos,  3 oficiais, 34 soldados, total: 37.

Cavalaria

Penamacor

Compª dos cavalos da guarda do governador das armas, 3 oficiais, 47 soldados, total: 50. Cavalos: 30.

Idanha a Nova

Compª do tenente-general D. Martinho da Ribeira, 2 oficiais, 30 soldados, total: 32. Cavalos: 32.

Salvaterra do Extremo

Compª do capitão Paulo Correia Rebelo, prisioneiro em Espanha, agora governada pelo furriel Pedro Fernandes, 1 oficial, 25 soldados, total: 26. Cavalos: 26.

Compª do capitão António Estaço da Costa, prisioneiro em Espanha, agora governada pelo tenente Domingos Homem, 2 oficiais, 20 soldados, total: 22. Cavalos: 21.

Segura

Compª de auxiliares (amunicionada, como refere o documento) do capitão Manuel de Sousa de Refóios, 3 oficiais, 13 soldados, total: 16. Cavalos: 16.

TOTAIS: Infantaria, 40 oficiais, 279 soldados, ao todo 319. Cavalaria, 11 oficiais, 135 soldados, ao todo 146, com 125 cavalos.

Imagem: Pormenor da fronteira beirã em Tabula Portugalliae et Algarbia, Amsterdam, Frederick de Wit, c. de 1670; Biblioteca Nacional, Cartografia, C.C. 1660 A.

O cargo de capitão-mor

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Existe alguma confusão a respeito do cargo de capitão-mor, não sendo raro encontrar em obras publicadas, de divulgação ou mesmo trabalhos académicos de valor, a referência à designação de capitão-mor como posto militar no contexto da Guerra da Restauração. Tê-lo-á sido, mas antes de 1640.

O capitão-mor era o oficial responsável pelo recrutamento, treino e comando de tropas da ordenança numa dada localidade, fosse ela cidade, vila ou aldeia. Quando em 1570 D. Sebastião mandou que houvesse, em cada terra de Portugal, um capitão-mor, a função desempenhada por estes correspondia à de uma patente militar – ou seja, um posto. Segundo o Regimento dos capitães-mores, o capitão-mor seria responsável por uma companhia da ordenança. Em cada comarca haveria também um sargento-mor, a quem caberia o comando superior do conjunto das companhias dessa comarca, organizadas em terço da ordenança. A companhia era a unidade básica administrativa, o terço era uma unidade táctica. O grosso do exército que D. Sebastião objectivava constituir seria composto por elementos recrutados em cada terra pelo respectivo capitão-mor.

Com o passar dos tempos e o surgimento do exército pago, já no período da Guerra da Restauração, o capitão-mor transitou de posto militar para cargo que podia ser desempenhado por militar com qualquer patente, fosse ele do exército pago ou da milícia de ordenança. Esta milícia passou então a ser uma reserva de segunda linha, relegada até para terceira linha, quando em 1646 surgiram os milicianos auxiliares a pé, e em 1650 os auxiliares a cavalo. Não obstante, a capitania-mor manteve o prestígio de tempos anteriores, pois além das já referidas tarefas de recrutamento, treino e comando de tropas da ordenança, implicava também as funções de governo militar da localidade (caso não existisse um governador especificamente designado por entidades superiores). Em algumas terras esse governo podia caber a um sargento-mor (da ordenança), embora as funções primordiais deste fossem eminentemente militares.

Compreenderemos melhor o caso das capitanias-mores se virmos a listagem dos indivíduos que em 1646 desempenhavam tarefas de governo militar nas várias localidades no Alentejo. Encontramos nessa lista capitães-mores, sargentos-mores e governadores de praça propriamente ditos. O soldo que auferiam dizia respeito à patente militar que tinham (ou que passaram a ter) na altura da nomeação para o cargo. Vejamos (para aceder à lista, basta clicar no link abaixo):

Alentejo CM 1646

Como se pode verificar, o cargo de capitão-mor podia ser desempenhado por militares de variadas patentes. Num outro documento, respeitante à província da Beira e datado de 1663, é possível encontrar militares propostos (os quais seriam todos nomeados) para capitanias-mores cuja proveniência era igualmente diversa:

Para Castelo Rodrigo, o tenente de mestre de campo general António Ferreira Ferrão, que recebeu a patente e o soldo de mestre de campo.

Para Castelo Bom, o capitão de infantaria (pago) António de Figueiredo, um veterano do exército da monarquia dual na Flandres.

Para Segura, um Diogo Freire, que era capitão-mor de Idanha, mas que se dava muito mal com a população dessa localidade.

Fontes: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, maço 6, nº 303; e maço 23, consulta de 18 de Janeiro de 1663.

Imagem: Fortaleza de Juromenha. Foto de J. P. Freitas.

Domingos da Ponte, o Galego

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Este oficial de origem galega (cujo nome aparece grafado, muitas vezes, apenas como Domigos da Ponte Galego) serviu nos exércitos da monarquia dual e do Sacro Império Romano-Germânico antes de passar a Portugal em 1641, como súbdito de D. João IV. Na sua carta patente de general da artilharia ad honorem, passada em 21 de Maio de 1663, pode ler-se que era fidalgo da Casa de Bragança, que contava então 22 anos de serviço militar contínuo em prol da Coroa Portuguesa e que participara em acções na Alemanha (antes da Aclamação de D. João IV), no Alentejo e em Trás-os-Montes com o posto de ajudante de cavalaria, capitão e comissário geral. A carta patente fazia saber que Domingos da Ponte era então tenente-general da cavalaria, posto que ocupava desde 1656, e que deveria manter esse posto e a respectiva remuneração (a patente de general de artilharia ad honorem, como indica o termo latino, era uma mera distinção honorífica). Domingos da Ponte governou algumas vezes interinamente as armas de Trás-os-Montes e Entre-Douro-e-Minho, bem como o exército de socorro de Trás-os-Montes à província da Beira, tendo recebido feridas e sido feito prisioneiro em serviço de El-Rei. Quando terminou a Guerra da Restauração, Domingos da Ponte era ainda tenente-general da cavalaria em Trás-os-Montes e general da artilharia ad honorem.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Secretaria de Guerra, Lvº 27, fl. 72, carta patente de 21 de Maio de 1663.

Imagem: Cavalaria em acção. Reconstituição histórica do período da Guerra Civil Inglesa, “History Day”, Kelmarsh Hall, 2008.

Governadores das Armas – Portugal – Província da Beira

Painel

A província da Beira foi dividida em dois partidos (distritos militares) em 1647, dando seguimento às petições dos povos nas Cortes de 1645-1646. Cada um passou a ter o seu próprio governador das armas. A vila de Alfaiates foi tomada como referência para a divisão. O partido setentrional era denominado como partido de Riba Coa ou Almeida e compreendia as comarcas da Guarda, Pinhel, Lamego, Esgueira e a praça de Sabugal (por motivos práticos, apesar de esta pertencer à comarca de Castelo Branco). O partido meridional era designado por partido de Penamacor ou Castelo Branco e compreendia as comarcas de Castelo Branco, Viseu e Coimbra.

1641 – D. Álvaro de Abranches da Câmara.

1641-1642 – João de Saldanha de Sousa (tenente-general da cavalaria, interino).*

1642-1643 – Fernão Teles de Meneses.

1643-1645 – D. Álvaro de Abranches da Câmara.

1645-1647 – D. Francisco de Mascarenhas, Conde de Serém.

Partidos

Riba Coa ou Almeida

1647-1656 – D. Rodrigo de Castro (mais tarde, 1º Conde de Mesquitela).

1656 – João de Melo Feio (interino).

1656-1658 – D. Rodrigo de Castro (mais tarde, 1º Conde de Mesquitela) – comando único dos dois partidos.

1658-1659 – D. Sancho Manuel de Vilhena (mais tarde, Conde de Vila Flor) – comando único dos dois partidos.

1659-1660 – D. João Forjaz Pereira, 1º Conde da Feira.

1660-1662 – Manuel Freire de Andrade, tenente-general da cavalaria.

1662 – João de Melo Feio.

1662-1663 – D. Sancho Manuel de Vilhena, Conde de Vila Flor – comando único dos dois partidos.

16631668 – Pedro Jacques de Magalhães (mais tarde, 1º Visconde de Fonte Arcada).

Penamacor ou Castelo Branco

1647-1654 – D. Sancho Manuel de Vilhena (mais tarde, Conde de Vila Flor).

1654-1656 – D. Nuno da Cunha de Ataíde (tenente-general da cavalaria).

1656-1658 – D. Rodrigo de Castro (mais tarde, 1º Conde de Mesquitela) – comando único dos dois partidos.

1658-1659 – D. Sancho Manuel de Vilhena (mais tarde, Conde de Vila Flor) – comando único dos dois partidos.

1659-1661 – D. Sancho Manuel de Vilhena (mais tarde, Conde de Vila Flor).

1661 – João de Melo Feio.

1662-1663 – D. Sancho Manuel de Vilhena, Conde de Vila Flor – comando único dos dois partidos.

1663-1668 – Afonso Furtado de Mendonça (mais tarde, 1º Visconde de Barbacena).

* “Foi João de Saldanha o primeiro que na Província da Beira introduziu a cravina e pistola, mandou nela lavrar muitas, onde costumam ser as melhores, especialmente as de Viseu.” (João Salgado de Araújo, Successos Militares das Armas Portuguesas em suas fronteiras depois da Real acclamação contra Castella. Com a geografia das Prouincias, & nobreza dellas, Lisboa, Paulo Craesbeeck, 1644, pg. 121 v).

Imagem: Infantaria portuguesa; pormenor do painel referente à batalha de Montijo, “Biombo dos Viscondes de Fonte Arcada”, in Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.

O combate do forte de Aldea del Obispo, 2 de Janeiro de 1664

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Motivos de natureza profissional obstaram a que desse uma continuidade célere ao episódio aflorado no anterior artigo. Retomemos a trama agora, enquadrando o relatório na operação militar onde se registaram as baixas reportadas.

O Duque de Osuna, Gaspar Téllez-Girón y Sandoval, ordenara a construção de um forte perto de Aldea del Obispo – fortificação que actualmente é referida como Forte de la Concepción, mas que não é nomeada nas fontes consultadas. O local poderia servir de base de operações contra as povoações da raia beirã – Vale da Mula era a mais exposta pela sua proximidade, conforme se pode ver na imagem. Para obstar à conclusão do forte, saiu de Almeida o governador interino daquele partido, Afonso Furtado de Mendonça, à frente de uma força de 6.000 infantes e 1.000 cavalos (Pedro Jacques de Magalhães, o governador em título, encontrava-se doente). O Duque de Osuna estava aquartelado junto de Aldea del Obispo e tinha sob o seu comando um exército de 7.000 infantes e mais de 2.000 cavalos. A infantaria portuguesa, na sua maior parte, era composta por milícias de auxiliares e da ordenança de ambos os partidos da Beira, enquanto a cavalaria contava com efectivos da Beira e com forças de socorro do Alentejo e de Trás-os-Montes (o contingente que vem referido no relatório).

Segundo o Conde de Ericeira, Afonso Furtado (…) tomou quartel pouco distante do inimigo, que não lhe pleitearam ganhar o posto que pretendiam. Estébanez Calderón, autor do século XIX, refere que Osuna había fortificado sus reales [ou seja, o seu campo] en un lugar ventajoso, teniendo a sus espaldas el baluarte, y enfrente de él, a distancia de un tiro de artilleria, se miraba asentado el campo de los enemigos. Afonso Furtado de Mendonça fez escavar uma trincheira, mas os seus intentos de atacar e destruir o forte desvaneceram-se ao constatar que este tinha já quatro baluartes levantados, e que era complementado por fosso, estrada coberta e estacada. Com a fraca qualidade da infantaria que possuía, não tinha a mínima hipótese de sucesso. Decidiu, por isso, mudar de estratégia e passou a enviar tropas de cavalaria a talar os campos do inimigo. Mas nem este propósito foi bem sucedido, pelo que determinou marchar sobre Ciudad Rodrigo e queimar os seus arrabaldes, de forma a atrair o Duque de Osuna para longe do forte e pelejar com ele em campanha rasa.

Para concretizar o objectivo, teria de pedir mais mantimentos a Almeida, a fim de sustentar o exército vários dias em terra inimiga. Enviou então um comboio (conjunto de carros, carroças e animais de carga) àquela praça, mas descurou a sua protecção. Avisado do facto, o Duque de Osuna resolveu interceptar e desbaratar o comboio. Compôs toda a sua cavalaria e fez marchar, na retaguarda desta força montada, um terço de infantaria – um reforço que havia enviado D. Juan de Áustria. D. Martinho da Ribeira, que comandava a segunda linha de cavalaria do lado direito do dispositivo português, puxou pela gente de cavalos, a fim de socorrer o comboio, e desfilada, a fez passar o ribeiro de Vale da Mula; e depois de subir por serras e tapadas que embaraçavam o terreno, achou aos inimigos formados, que o vieram buscar. O Duque de Osuna, con estas tropas, compartidas en tres escuadrones  (…) acometió al punto al enemigo. Como los nuestros eran superiores en número, a la primera y repentina carga desbarataron a los portugueses; pero éstos, viendo que no podían sostener con sus contrarios un combate igual, no trataron de rehacerse, sino, derramados como estaban, se defendían escaramuzando. Notando o perigo em que se encontrava a sua cavalaria, Afonso Furtado de Mendonça enviou um reforço de infantaria e mais cavalaria. Domingos da Ponte, o Galego, e Gomes Freire de Andrade, tenentes-generais, saíram a toda a pressa para se acharem na ocasião; e formando seis batalhões, dos que começavam a retirar-se, fizeram rosto aos castelhanos com ardor mais precipitado do que pedia a sua vantagem. Eram dezassete os batalhões, de que Domingos da Ponte fez duas linhas. Constava a vanguarda de nove, e de oito a reserva, e sem interpor a menor dilação, atacou furiosamente a vanguarda dos castelhanos com a nossa, que rompeu com grande facilidade. Julgaram-se os portugueses definitivamente vitoriosos, e seguros de su victoria, habían deshecho su formación, para entregarse al despojo y alcance de los fugitivos, sin tener en cuenta que quedaba en pie un escuadrón de castellanos, que era más fuerte todavía, por componerse de gente veterana. Esta reserva do inimigo, num vigoroso contra-ataque, desbaratou a vanguarda portuguesa. Pretendeu Domingos da Ponte reorganizá-la, passando pelos claros da segunda linha de cavalaria, só que… esta já não estava no seu posto, tendo fugido antes sequer de disparar um tiro ou trocar espadeiradas. Vendo esta situação, Afonso Furtado de Mendonça fez sair do quartel dois terços de infantaria e várias mangas soltas de arcabuzeiros e mosqueteiros, e foi atrás desta formação que a cavalaria finalmente se reorganizou e repeliu os perseguidores. O Duque de Osuna, por seu lado, ao verificar que Furtado de Mendonça desguarnecera o seu campo, tentou tomá-lo, mas ainda restavam para sua defesa três terços da Ordenança e duas companhias de cavalos, sob o comando do tenente-general da artilharia Diogo Gomes de Figueiredo, o qual resistiu bravamente. Quando o Duque de Osuna viu aproximar-se Afonso Furtado de Mendonça com as suas forças, optou por se recolher ao seu forte. Também Furtado de Mendonça não demoraria muito tempo a retirar, desistindo da sua pretensão. Em conselho com os seus oficiais, chegara à conclusão que seria impossível conquistar ou destruir o forte, optando então por se recolher de novo a Almeida.

Foi deste modo que se registaram as baixas entre as seis companhias enviadas de Trás-os-Montes e comandado pelo general de artilharia ad honorem (e tenente-general da cavalaria) Domingos da Ponte, o Galego. Uma operação típica da guerra de fronteira, bem violenta na refrega mas sem resultados estratégicos de importância. Ainda assim, em termos tácticos o Duque de Osuna pôde tirar partido da manutenção do forte, pois dele fez base de operações através da qual conseguiu destruir a ponte de Ribacoa, que facilitava a comunicação com Almeida.

Fontes:

ERICEIRA, Conde de, História de Portugal Restaurado, edição on-line (facsimile da edição de 1759), Parte II, Livro IX, pgs. 247-250 (a verde nas citações).

CAMPOS, Jorge (estudio preliminar y edición), Biblioteca de Autores Españoles, Obras Completas de Don Serafín Estébanez Calderón, Madrid, Ediciones Atlas, 1955, pgs. 114-115 (a azul nas citações).

Imagem: A zona de combate na actualidade. Fotografia aérea extraída do programa Google Earth. É visível, ao centro, o forte de la Concepción, que esteve na origem do combate. Para nascente fica Aldea del Obispo, e para poente, Vale da Mula. A linha amarela marca a fronteira.

Rescaldo de uma operação militar – as baixas detalhadas de uma força de cavalaria no combate de 2 de Janeiro de 1664

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Não é muito frequente encontrar documentos que refiram as baixas detalhadas sofridas por uma força militar. Quando escrevo detalhadas, quero dizer: incluindo todos os pormenores, desde o nome de cada militar até ao número exacto de cavalos feridos e mortos. Habitualmente, as relações impressas limitavam-se a enumerar os mortos, feridos e capturados e a destacar os elementos mais importantes da hierarquia militar, membros da nobreza e outros oficiais que caíam em alguma daquelas circunstâncias. Era tudo o que o público curioso das novidades da guerra necessitava saber.

Por este motivo, o relatório que foi enviado ao Conselho de Guerra, em anexo a uma carta do Conde de São João da Pesqueira, governador das armas da província de Trás-os-Montes, é um documento pouco vulgar. Não que fosse necessariamente raro na época, pelo menos no seio de um exército provincial, a circulação de informação deste teor. Contudo, já não era tão frequente que transcendesse e esfera interna de uma província para subir até ao Conselho de Guerra – daí os poucos casos de sobrevivência de documentos com este grau de detalhe. No caso que irei apresentar, a lista de baixas terá servido de argumento para justificar o pedido urgente de reforços para a província de Trás-os-Montes, e por isso foi anexada à carta do governador das armas.

Na carta, o Conde de São João lamenta a falta de cavalaria na província de Trás-os-Montes, devido ao trabalho que tiveram na campanha do Minho e na ocasião do recontro da Beira; solicitava que fosse ordenado a Pedro César de Meneses, general da cavalaria de Entre-Douro-e-Minho, que levantasse gente para formar as tropas; solicitava o envio de dinheiro para que ele, Conde de São João, pudesse comprar 100 cavalos, ainda que em Aveiro ou Coimbra, sem embargo de estar proibido. E pedia, por fim, que o Rei o autorizasse a fazer recolher a a cavalaria de Trás-os-Montes aos seus quartéis (de Inverno).

Em anexo, envia a lista das baixas sofridas na ocasião do socorro à Beira, onde morreu o capitão de couraças João Correia Carneiro, que servia há 23 anos, no decurso dos quais foi ferido inúmeras vezes e mereceu contínuos louvores. Tinha recebido 60.000 réis de tença e o hábito de Cristo. Sobreviveram-lhe duas irmãs, sua mãe e seu pai, com poucos recursos financeiros, pelo que o Conde pedia que o Rei lhes fizesse ainda mais do que esta mercê, “porque com a honra que se faz aos mortos, se premeiam também os vivos” [excerto da carta do Conde de São João de 10 de Janeiro de 1664].

O Conselho de Guerra emitiu parecer favorável  a que se remetesse o máximo de dinheiro possível para que se refizesse a cavalaria, apontando apenas o reparo de se fazer a remonta em Aveiro e Coimbra, pois era de crer que esta mesma falta de cavalos se acharia para as tropas da província da Beira, e que a cavalaria se devia remediar com cavalos de ambas as províncias, Trás-os-Montes e Beira. Acrescentou o Conselho de Guerra que não se devia mandar recolher a cavalaria de Trás-os-Montes aos quartéis sem primeiro escutar os governadores das armas da Beira e de Entre-Douro-e-Minho.

O documento, vertido para português corrente, é apresentado aqui. No próximo artigo será contextualizado, isto é, será feita a descrição do combate onde foram sofridas as baixas que a relação pormenoriza.

Lista dos soldados que morreram em a ocasião de dois de Janeiro e dos feridos, cavalos mortos e cavalos feridos

4 soldados mortos da companhia do General da Artilharia [Domingos da Ponte, o Galego]: Luís Furtado, Francisco Correia, João Carvalho e João Esteves.

6 soldados feridos: os cabos de esquadra João Rodrigues, António Carneiro e Domingos Fernandes Serra, e os soldados Luís Machado, Manuel Ribeiro e António Vaz.

9 cavalos mortos e perdidos: os de João Rodrigues, João Carneiro, Luís Machado, Luís Furtado, Domingos Fernandes Arnelhe, Francisco Correia, João Esteves, António Vaz e Tomé Gonçalves.

2 cavalos feridos: os do tenente e de Domingos Fernandes Jorna.

8 soldados mortos da companhia de João Correia Carneiro: o capitão, Domingos Gonçalves Brilho, António Jorge, Domingos Fernandes, Fernão da Guerra, João Malheiro, Domingos João, Gabriel de Oliveira.

12 soldados feridos: Pedro Gonçalves Brandim, António Rodrigues da Rosa, Francisco Caramona, Marcos Rodrigues, João Carrilho, Domingos Pires Machado, Domingos de Melo, Inácio Caramona, Luís de Castro, João Baía, Augusto Mendes, Matias Rodrigues.

8 cavalos mortos: os de João Carrilho, João Malheiro, Domingos Fernandes, Matias Rodrigues, Pedro Gonçalves Brandim, Gabriel de Oliveira, Domingos João, Francisco Caramona.

6 cavalos feridos: os de António Moniz, Manuel Vaz, António Jorge, o do alferes, Baltasar Lopes, e o cavalo das marchas do capitão.

3 soldados mortos da companhia de João Cardoso Pissarro: Domingos Fernandes, o cabo de esquadra Sebastião Pereira, Amaro de Melo.

4 soldados feridos: o capitão vendado [é assim designado porque ficou cego em resultado dos ferimentos], Francisco Sarmento, Domingos Vaz, Domingos de Barros.

7 cavalos mortos: o do capitão vendado, o do cabo Sebastião Pereira, o de Amaro de Melo, Domingos Fernandes, Francisco Sarmento, Domingos Vaz, Gaspar Gonçalves.

3 cavalos feridos: os de Manuel de Almeida, Pedro Moreno e Francisco da Pasta.

6 soldados mortos da companhia de João Pinto Cardoso: Gonçalo Afonso, João Gonçalves, o ferrador, Domingos Fernandes, Francisco de Castro, João Alvarez.

10 soldados feridos: o cabo de esquadra António de Mesquita, Pascoal de Queiroga, Marcos Luís, Inácio de Gouveia, António de Mesquita Fonte Longa, Serafino de Castro, Luís de Sá, Belchior Gonçalves, o trombeta, e António Guedes (prisioneiro).

14 cavalos mortos: de António Guedes, Gonçalo Afonso, Domingos Fernandes, João Alvarez, Francisco de Castro, Gregório de Morais, João Moniz Roalde, Gaspar de Quiroga, Marcos Luís, João Gonçalves, Inácio de Gouveia, Gonçalo de Magalhães, Fernão Pereira, Serafino de Castro.

Esta companhia não tem cavalos feridos.

9 soldados mortos da companhia do capitão Baltasar Freire: Domingos Lopes, Baltasar Machado, o cabo de esquadra Manuel Carvalho, Pedro Francisco, Gonçalo Pereira, Filipe João, António Gonçalves Chaves, António Gonçalves Infante, Rui de Niza.

6 soldados feridos: António Moniz França, Gonçalo Lobo, Domingos Correia, Jerónimo da Mesquita, Bartolomeu Moreira, Santiago Ferreira.

11 cavalos mortos: de Domingos Lopes, Baltasar Machado, Manuel Carvalho, Pedro Lourenço, Filipe João, António Gonçalves Chaves, António Gonçalves Infante, António Moniz França, Domingos Correia, Bartolomeu Moreira, Gonçalo Pereira.

4 cavalos feridos: o de Rui de Niza, Francisco Rodrigues Tronco, Silvestre Teixeira, Santiago Ferreira.

4 soldados mortos da companhia de Fernão Pinto da Mesquita: o furriel Domingos Cabral, Luís do Rego, João da Costa, Duarte Ferreira.

7 soldados feridos: o alferes Arnelgito, António Navais, João Gomes, o tenente Manuel Pereira, António Pegãos, Pedro Gonçalves, João Godinho.

12 cavalos mortos: os do tenente, do alferes, do furriel, de João Cabral, Luís do Rego, Duarte Pereira, Francisco Alvarez, João da Costa, Filipe Gonçalves, Diogo Pimentel, Pedro Moniz, Manuel Navais.

3 cavalos feridos: o de António Borges, Diogo Gomes e Mateus Rodrigues.

Cavalos mortos: 61

Cavalos feridos: 18

Soldados mortos: 34

Soldados feridos: 45

Fonte: Lista dos Soldadoz q morrerão em a occazião de dous de janeiro e dos feridoz cauallos mortoz e Cauallos feridoz [lista enviada por Domingos da Ponte Galego, tenente-general da cavalaria e general da artilharia ad honorem], anexa à carta do Conde de São de João de 10 de Janeiro de 1664, por sua vez anexa à consulta de 20 de Janeiro; ANTT, CG, Consultas, maço 24, caixa 88.

Imagem: “Combate de cavalaria”, Sebastian Vrancx.

Uma força de socorro de Trás-os-Montes para a Beira, Abril de 1663

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Era frequente proceder-se ao envio de forças de socorro de uma província a outra, principalmente após o aumento de intensidade do conflito a partir de 1659. Beira, Trás-os-Montes e Entre-Douro-e-Minho tinham exércitos provinciais mais reduzidos do que o Alentejo, de modo que toda a entreajuda era necessária quando havia informação de que o inimigo movimentava forças importantes na fronteira. O exemplo que aqui se apresenta é um dos vários registos documentais que apresenta a relação detalhada de um desses contingentes de reforço. Trata-se de uma relação de 25 de Abril de 1663, anexa a uma carta de 26 do mesmo mês, enviada ao Conselho de Guerra pelo Conde de São João da Pesqueira, governador das armas de Trás os Montes. Foi vista na consulta de 4 de Maio de 1663 (ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, maço 23): “Relação da infanteria, e caualleria auxiliares [e] pagos que tem mandado para a Torre de Moncorvo para passar a Prouincia da Beira e do que ao todo importou o pagamento de hum mez, que se lhe fez dos coatro contos, quinhentos, e nouenta mil reis, que uierão da Cidade do Porto“.

Infantaria

Oficiais da 1ª plana do terço do mestre de campo Belchior Pinto Cardoso: 1 sargento-mor e 2 ajudantes (o mestre de campo não acompanhou a unidade; o comando do terço foi confiado ao sargento-mor).

Oficiais de 10 companhias, cada uma com capitão com seu pajem, alferes, sargento e tambor, com desconto de 30 rações de pão de munição: 5 oficiais por companhia (como era norma no período, contabilizavam-se como “oficiais” todos os integrantes da 1ª plana, incluindo os pajens – era um procedimento administrativo, pelo que há que ter algum cuidado ao calcular o rácio oficiais/soldados das unidades, devido à designação muito abrangente das listas no que respeita aos primeiros).

600 soldados destas 10 companhias, a meia-paga de 1 mês a cada, com desconto de pão de munição (a meia-paga deve-se ao facto de serem auxiliares): 60 soldados por companhia.

200 infantes, com seus oficiais, a quem se paga por inteiro 1 mês, com desconto, etc. (a lista não estipula o total de companhias; em todo o caso, tratava-se de tropas pagas, pelo que recebiam o soldo por inteiro): 26 oficiais, 200 soldados – note-se o elevado rácio de elementos da primeira plana, os “oficiais”, em relação aos soldados.

Cavalaria

Companhia de cavalos paga do capitão Simão Pinto, 6 oficiais da 1ª plana, com desconto de pão de munição e cevada a 120 rs o alqueire (pão de munição a 12 rs) e 200 rs da contribuição da arca; e 50 soldados, com a vantagem de 4 cabos de esquadra, com desconto das munições (por “vantagem” entenda-se a diferença entre o soldo de um soldado e a do cabo de esquadra. Sobre o “contrato e arca” da cavalaria será publicado um artigo em breve).

Companhia de cavalos paga do capitão António de Sousa Pereira, 6 oficiais da 1ª plana, com desconto, etc, e 35 soldados, com vantagem dos cabos de esquadra; não se paga a arca e contrato, por ser feita agora de novo, e não se lhe dever.

Companhia de cavalos auxiliares do capitão Baltazar Carvalho, (o capitão é pago), 5 oficiais da 1ª plana (as companhias de auxiliares não tinham alferes) e 35 soldados (recebiam mensalmente metade do soldo de um soldado de cavalos pago, e descontavam o que recebiam de munição).

Companhia de cavalos auxiliares do capitão António Carneiro da Costa, (o capitão é pago), 5 oficiais da 1ª plana e 40 soldados (a meio-soldo dos pagos, etc.).

Companhia de cavalos auxiliares do capitão Gaspar da Fonseca Borges, que é pago; 5 oficiais da 1ª plana e 45 soldados (a meio-soldo, etc.).

TOTAIS:

Terço de auxiliares: 53 oficiais e 600 soldados.

Infantaria paga: 26 oficiais e 200 soldados.

Cavalaria paga: 12 oficiais e 85 soldados.

Cavalaria de auxiliares: 15 oficiais e 120 soldados.

Ao todo, o envio desta força de 106 oficiais e 1.005 soldados custou um total de 1.574.285 réis.

Imagem: Capacete de cavalaria do período da Guerra da Restauração. Este capacete de fabrico português era uma “peça de munição” barata, distribuída aos soldados das companhias de cavalos. O exemplar apresentado encontra-se bastante danificado, faltando-lhe as protecções laterais que cobriam parcialmente as orelhas e parte do rosto do combatente. Museu Militar de Lisboa. Foto do Comandante Augusto Salgado.

Armas e munições existentes na província da Beira em Março de 1663

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As listas que a seguir se apresentam são extraídas de uma longa relação do material de guerra existente nos armazéns das localidades da província da Beira. Na carta que acompanhava a relação original, o mestre de campo general Pedro Jacques de Magalhães referia a falta de munições, mas afirmava compreender que não se lhe podia acudir com tudo o que era necessário.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1663, maço 23, consulta de 21 de Março de 1663 e carta de Pedro Jacques de Magalhães, de 11 de Março de 1663.

Imagem: Piqueiros e mosqueteiros da Guerra Civil Inglesa (década de 1640); reconstituição histórica, Old Sarum, Inglaterra. Foto de Jorge P. de Freitas.

Equipamento e armamento para a infantaria

Praças

Armas de fogo

Frascos

Piques

Forquilhas

Bandoleiras

Guarda

150

50

128

269

324

Almeida

362

49

321

300

200

Castelo Rodrigo

60

Castelo Bom

27

13

Vilar Maior

60

20

Sabugal

46

24

Penamacor

200

Idanha a Nova

30

20

550

100

Segura

191

75

Salvaterra

150

Rosmaninhal

16

Penha Garcia

25

Zibreira

65

10

19

11

Castelo Branco

200

1382

129

1350

569

635

Equipamento e armamento para a cavalaria

Praças

Corpos de armas

Pistolas (pares)

Carabinas

Selas

Guarda

3

2

2

Almeida

150

Penamacor

40

40

20

Idanha a Nova

25

Zibreira

4

Castelo Branco

4

182

46

42

20

Pólvora, balas e corda (morrão)

Praças

Pólvora (barris)

Balas (cunhetes)

Corda (arrobas)

Guarda

30

10

550

Almeida

400

60

1000

Alfaiates

180

76

400

Castelo Rodrigo

45

34

90

Castelo Bom

13

10

72

Castelo Mendo

11

7

10

Vilar Maior

11

7

16

Sabugal

40

18

70

Vale da Mula

8

9

16

Escalhão

13

8

53

Pinhel

6

4

8

Penamacor

134

16

300

Idanha a Nova

25

55

600

Segura

50

63

140

Salvaterra

90

100

240

Rosmaninhal

12

12

18

Penha Garcia

13

15

25

Monsanto

4

5

12

Zibreira

2

8

32

Castelo Branco

12

8

80

1099

525

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Um escocês ao serviço de D. João IV – o mestre de campo David Caley (3ª parte)

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Nos finais de 1645, David Caley estava na província da Beira, em Penamacor. Um procedimento incorrecto da sua parte motivou uma advertência, conforme se pode ler num decreto régio de 22 de Novembro de 1645:

Pelo Conselho de Guerra se avise ao Governador das Armas da Província da Beira estranhe com demonstração ao Mestre de Campo David Caley o mau tratamento que em companhia dos reformados que levou de Lisboa fez, em Penamacor, aos oficiais que lhes foram fazer pagamento na forma das ordens que tinham minhas, e lhe advirta da minha parte, o respeito e decoro que é bem se guarde a semelhantes oficiais, e que do contrário me haverei por muito mal servido, e mandarei proceder na matéria com rigor. E ao Vedor geral da mesma Província encarregará mui particularmente a pontual observância do Regimento que lhe mandei dar. Montemor o Novo em 22 de Novembro de 1645.

Em Janeiro de 1646, nova advertência. Desta feita, o mestre de campo guardara para si a totalidade da venda do saque efectuado numa incursão a território inimigo, não entregando a quinta parte à fazenda real, como a lei determinava. Caley argumentou que o montante da presa (300.000 réis) era inferior ao total dos soldos que lhe eram devidos e cujo pagamento estava em atraso. Nesse ano, David Caley passou a comandar um dos dois terços pagos que aquartelavam em Olivença. Apesar do feitio algo difícil, o mestre de campo escocês era apreciado pela sua experiência e valor militar.

Todavia, o prestígio de Caley estava a baixar quando ocorreu o assalto espanhol à praça de Olivença, em 18 de Junho de 1648. Durante os combates travados nas ruas daquela localidade, D. João de Meneses, governador da vila, tombou gravemente ferido, e o mestre de campo D. António Ortiz de Mendonça, comandante do primeiro terço da guarnição, foi mortalmente atingido. Poucos dias depois do sucedido, o Conde de São Lourenço escreveu a D. João IV acerca do desempenho dos defensores durante o assalto:

Os capitães do terço de David Caley o fizeram mui honradamente, o mestre de campo muito mal, e é grande a murmuração que em todos os soldados e moradores de Olivença corre sobre este homem, porque sobre ser de pouco préstimo, ser fraco, não é coisa que se sofra, ocupando um posto tamanho, que em faltando o governador daquela praça lhe toca a ele.

O Conde de S. Lourenço não era muito apreciador de estrangeiros. Na sua correspondência, raramente algum lhe merecia encómios, enquanto as observações de desdém eram frequentes (na verdade, também muitos oficiais portugueses eram vítimas da soberba do governador das armas). Mas a reputação de David Caley já não era a mesma de anos anteriores, e o facto de D. João de Meneses, impossibilitado de governar a praça devido ao seu grave ferimento, não ter passado o governo interino ao mestre de campo escocês (o oficial mais graduado e mais antigo no exército do Alentejo, após a morte de D. António Ortiz), preferindo entragá-lo ao capitão de cavalos António Jacques de Paiva, é revelador do pouco crédito do oficial mercenário.

O Conde de S. Lourenço mandou de imediato levantar um inquérito (uma devassa, como então se dizia) ao alegado mau comportamento de David Caley durante o assalto à vila. Mas entre o ordenar e o executar, o tempo foi passando. Três meses mais tarde, em Setembro, a devassa ainda não tinha principiado. Os soldados do terço de Caley – os que ainda não tinham desertado – não queriam testemunhar contra o seu comandante. Afinal, talvez o mestre de campo estivesse a ser vítima de intrigas ou desavenças anteriores com outros oficiais. O próprio Rei D. João IV não autorizou que Caley fosse afastado do comando do terço até o inquérito estar concluído, apesar da insistência do Conde de S. Lourenço para que isso acontecesse, argumentando que o escocês poderia desertar para Espanha.

Em Outubro de 1648, com a devassa ainda por concluir, David Caley e a sua mulher deixaram Olivença e foram para Lisboa. Precisamente um ano mais tarde, um alvará régio mandava que se fizesse o ajuste das contas com o oficial entretanto despedido do serviço de El-Rei, para que se lhe pagasse o que era devido, de modo a que pudesse embarcar para a sua terra. Mas em Março de 1650 ainda se encontrava em Lisboa, miserável e doente, conforme refere numa petição enviada ao Conselho de Guerra: havia mais de ano e meio que não recebia nada do que lhe era devido, e além disso era injustamente acusado de não ter dado conta do equipamento militar que fora distribuído ao seu terço da ordenança na campanha de 1643! O Conselho de Guerra mostrou-se compreensivo para com o oficial estrangeiro:

(…) porque como é estrangeiro e ao tal tempo nem sabia a língua nem os estilos deste reino, tudo o sobredito recebeu e repartiu o seu sargento-mor João de Canton, que era prático, sabia a língua e havia servido no Brasil e tudo repartiu pelas companhias, que como eram soldados de três meses só para a campanha (…) se foram, além de que borrachas, mochilas, bândolas e balas, nenhuns soldados tornam a entregar, que lá gastam (…)

Os conselheiros estranharam que o mestre de campo fosse obrigado a dar conta do material, pois essa responsabilidade cabia aos comandantes das companhias do terço; e acrescentaram que seria de maior escândalo e sentimento se David Caley deixasse o Reino com mais esta ignomínia. No mês seguinte, em Abril de 1650, em nova consulta, o Conselho de Guerra esclareceu definitivamente o caso, com uma cópia da certidão de armas entregue, em 1643, pelo sargento-mor João de Canton. E concluiu que David Caley não estava em dívida, e que se lhe devia fazer o remate das contas para voltar para a sua terra, que é o prémio que pede do tempo que serviu Vossa Majestade tantos anos e não haver sido condenado.

Não há mais informações sobre David Caley, pelo que é muito provável que tenha deixado o Reino em meados de 1650. Pode entender-se, tanto pela recusa dos seus subordinados em deporem contra ele, como pela atitude favorável do Conselho de Guerra e pelo facto de não ter sido condenado, que o escocês terá tido problemas no Alentejo com elementos do topo da hierarquia militar e talvez com outras pessoas mais – aparentemente, Caley era, também ele, de trato difícil – mas que não terá havido fundamento para as graves acusações que sobre ele recaíram na ocasião do assalto a Olivença em Junho de 1648.

Bibliografia: o período de serviço de David Caley em Portugal foi abordado num artigo de minha autoria, “War abroad: English, Scot and Irish officers in the Portuguese Army, 1641 to 1657”, in Arquebusier, vol. XXIX/III, 2005, pp. 2-11. Para além da obra de Cristóvão Aires de Magalhães Sepúlveda, História Orgânica e Política do Exército Português – Provas, onde David Caley é referido entre muitos outros oficais estrangeiros, existe também uma transcrição de um documento relativo àquele oficial em JAYNE, M. S. , “State papers, Portugal, 89/4, Public Record Office, London”, in Congresso do Mundo Português, vol. VII, t. II, II sec., Lisboa, Publicações da Comissão Executiva dos Centenários, 1940, pp. 236-237.

Fontes:

ANTT, Conselho de Guerra, Decretos, 1642, maço 2, nº 43; 1643, maço 3, nº 103; 1644, maço 4, nº 24 e nº 26; 1645, maço 5, nº 110; Consultas, 1650, maço 10, conultas de 18 de Março e de 30 de Abril.

ARAÚJO, João Salgado de,  Successos Militares das Armas Portuguesas em suas fronteiras depois da Real acclamação contra Castella. Com a geografia das Prouincias, & nobreza dellas, Lisboa, Paulo Craesbeeck, 1644, pgs. 183 v e 223.

Cartas de El-Rei D. João IV para diversas autoridades do Reino, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, pg. 26, carta régia de 27 de Janeiro de 1646.

Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, Vol. I,  pgs. 289, 318-319, 321-322, 325 e 333; Vol. II, pgs. 50, 63-64, 68 e 72.

Imagem: Alguns dos locais do Alentejo por onde se movimentou David Caley, no período em que serviu em Portugal. Novissima regnorum Portugalliae et Algarbiae descriptio, c. 1680, Biblioteca Nacional, Cartografia, CC1681A.

Cavalaria da ordenança da província da Beira (1650)

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Em artigos anteriores sobre as categorias militares do exército português e os tipos de cavalaria, foi já referido o modo de constituição das unidades da ordenança. As companhias desta categoria de milícia compreendiam homens de várias localidades de uma comarca. Nas zonas mais atingidas pela guerra, junto à fronteira, cedo se constituíram companhias da ordenança, para complementar a defesa levada a cabo pelas tropas pagas. Em outras regiões, menos sujeitas às incursões de depredação, tardaram a ser formadas estas companhias.

Na Beira, por exemplo, os habitantes das localidades mais afastadas da raia foram durante algum tempo poupados ao serviço na cavalaria da ordenança. A partir da década de 50, em particular durante o governo de D. Rodrigo de Castro, futuro Conde de Mesquitela, a preocupação com a força montada foi crescendo, de modo que novas unidades foram surgindo. Assim, em 7 de Janeiro de 1650, havia em formação quatro novas companhias da ordenança, a saber:

– Companhia do capitão Gaspar de Seixas de Almeida. Tinha perto de 40 efectivos, com gente de Trancoso e seus termos.

– Companhia do capitão António Veloso do Amaral. Devia ter 50 cavalos, mas só alguns estavam então operacionais. Os soldados vinham das localidades de S. João da Pesqueira, Távora, Sendim, Trevões, Nagozelo, Vilarouco, Riodades, Paredes, Ranhados, Ervedosa, Valença, Penela, Lousa, Valongo, Castanheiro, Soutelo, Souto e Cedovim.

– Companhia do capitão Diogo Pereira de Figueiredo. Devia ter  50 cavalos, mas só tinha alguns operacionais. Formada nas vilas de Fonte Arcada, Pena Verde, Fornos, Penedono, Casais do Monte, Carapito, Algodres, Matança, Aguiar da Beira e Sernancelhe.

– Companhia do capitão Manuel de Andrade Freire. Tal como as outras, dos 50 cavalos, só alguns estavam em condições de operar. Incluía gente das vilas de Pinhel, Marialva, Moreira, Aneloso, Casteição, Numão, Longroiva, Muxagata, Vila Nova, Horta,  Touça, Castelo Mendo, Lamegal e Meda.

Um dos problemas que afectavam a capacidade operacional das unidades era a falta de selas. Em Fevereiro de 1650, D. Rodrigo de Castro queixava-se de não lhe terem sido ainda entregues as selas pedidas e prometidas havia já meio ano. Por outro lado, advertia que o serviço continuado com selas velhas acabava por destruir os cavalos. Apesar de todas as dificuldades, nesse mesmo ano D. Rodrigo de Castro levou a cabo algumas operações onde a cavalaria da ordenança participou em número superior ao da cavalaria paga, e com sucesso.

Fontes: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1650, maço 10, nº 16, 36 e 46; e Secretaria de Guerra, Livro 14º, fls. 78-78 v.

Imagem: Soldados pilhando, quadro de Pieter Post, década de 30 do século XVII.

Um crime em Abrantes (3ª parte)

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O processo de Manuel Cornellis surge em anexo a uma consulta do Conselho de Guerra de 4 de Março de 1649, quase dois anos depois de ter sido cometido o crime pelo qual o oficial holandês e o seu tenente respondiam. Em resumo, ficam aqui expostas algumas etapas de um moroso processo judicial que acabou por nada resolver. Apenas serviu para prejudicar a capacidade operacional de uma companhia de cavalaria do exército do Alentejo. Como é hábito neste espaço, o português dos documentos originais foi actualizado.

1648, Julho, 17

Carta do Conde de S. Lourenço para o Rei, em que dá conta de ter recebido no dia 12 a carta régia mandando prender o capitão Manuel Cornellis e o seu tenente. A diligência foi feita. “E porque o capitão Manuel Cornellis estava sentenciado em suspensão da companhia, e o tenente servia com ela, e tendo custado tão grande soma de dinheiro, assegure-se Vossa Majestade que de todo se perderá, porque os soldados são os mais deles estrangeiros, e os cavalos da mesma maneira, e assi me parece que Vossa Majestade proveja esta companhia logo com outros oficiais, se a prisão destes há-de ser dilatada“.

1648, Julho, 22

Carta do general da cavalaria D. João de Mascarenhas para o Rei. Adverte para as consequências da prisão de Manuel Cornellis, que é a de perder-se a sua companhia. “A demais cavalaria de que estou entregue está muito boa e muito bem montada, com a companhia que esperamos de Santarém fazemos conta a mil e oitocentos cavalos, sem os que estão repartidos pelas praças, e em guarda delas, dos quais nos não ajudaremos senão em caso de necessidade“.

1648, Julho, 27

Consulta do Conselho de Guerra, que além das cartas acima, viu também duas petições de Manuel Cornellis. Numa pede que a sua companhia fosse entregue a outro oficial e que não corresse por sua conta desde o primeiro dia em que foi preso, visto também estar preso o tenente e não a unidade ter mais nenhum oficial que olhasse por ela, “para que se não perca sendo tão luzida, e em que ele está tão empenhado, havendo-a armado de coletes, botas e armas, o que até agora se lhe não tem pago, havendo servido a Vossa Majestade nisto como também o fez nas ocasiões em que se achou com a companhia com grande satisfação e dispêndio, como é notório“. À segunda petição junta a certidão de um médico, da qual consta que se acha enfermo de graves achaques, e cada vez pior. Pede ao Rei que seja servido de o mandar mudar da prisão para onde tenha mais comodidade e se possa curar, “pois não causa por que deva perder as preeminências, e isenções que Vossa Majestade costuma conceder aos capitães de cavalos“.

O Conselho de Guerra pronuncia-se a favor da manutenção do capitão e do tenente nos seus postos, argumentando que não deve a companhia ser entregue a outros oficiais sem que antes o capitão e o tenente sejam sentenciados a perder os postos, e que ambos devem procurar, por seu cuidado, que a companhia se conserve. Entenda-se: que continuem a pagar do seu bolso o sustento dos cavalos.

O Conselho de Guerra também se debruça sobre a demora do processo. Refere que o governador das armas do Alentejo, Conde de S. Lourenço, deve sentenciar de imediato os culpados do crime logo que tenha em mãos o resultado da devassa (inquérito) que o corregedor de Tomar fez da morte de João Rodrigues, o Campos. O corregedor tem-se desculpado pelo atraso do processo com o facto de andar ocupado com outras diligências, justificando-se também com o argumento de que a devassa tinha sido primeiro entregue ao corregedor seu antecessor.

No parecer final, o Conselho de Guerra informa o Rei de que, se tivesse tido conhecimento da ordem para proceder à prisão dos dois oficiais (emitida por D. Sancho Manuel), teria dado o parecer negativo até que – conforme os termos da justiça – o resultado da devassa tivesse sido conhecido e resultasse em culpa formada contra eles. Deste modo, “nem se faltará na observância dos privilégios concedidos aos que ocupam semelhantes postos, com escândalo, e desconsolação dos que servem a Vossa Majestade na guerra, e trazem a vida arriscada nela; e também não faltarão [sic – o termo correcto seria faltariam] no governo da companhia estes oficiais que a formaram, senão nos breves dias que eram necessários para se sentenciar a devassa; mas entende o Conselho que os motivos que Vossa Majestade teve para se anteciparem estas prisões, deviam ser tão justificados que não dariam lugar a se obrar em outra forma“. Este remate de parecer foi a maneira airosa (bem em conformidade com o discurso sinuoso e dissimulado da época) que o Conselho encontrou para criticar a decisão régia, sem no entanto ousar afrontá-la directamente.

1648, Outubro, 27

Relembra o Conselho de Guerra que é inconveniente manter Manuel Cornellis preso, estando doente, e que o Rei deve ser servido tomar resolução na primeira consulta enviada ao Conselho sobre este caso. A resposta do Rei, de 4 de Dezembro de 1648, manda que se escreva ao Conde de S. Lourenço, para que apresse a conclusão do processo.

1648, Novembro, 18

Aludindo a um decreto de 14 de Novembro, o Conselho de Guerra diz que a devassa de Manuel Cornellis não estava em poder do Dr. João Pinheiro, juiz assessor do Conselho, mas que tinha sido remetida pelo corregedor de Tomar directamente ao governador das armas do Alentejo.

1648, Dezembro, 23

O Conselho reporta-se à devassa que tinha sido enviada pelo Conde de S. Lourenço, tendo este escrito que era apenas o que lhe tinha chegado às mãos, não estando sentenciada, como o devia, na primeira instância no juízo da Auditoria Geral do Exército do Alentejo.

1649, Janeiro, 11

O Conselho de Guerra, em resposta ao pedido do Rei para que fosse posto ao corrente de tudo quanto se tem passado, envia a cópia de duas cartas escritas pelo Rei ao Conde de S. Lourenço.

1649, Fevereiro, 15

Continua o Conselho a reportar-se à devassa e às anteriores consultas; o Rei mandou reformar a consulta de 27 de Outubro de 1648. Ainda não há decisão sobre o caso.

1649, Março, 4

Volta a enviar-se a devassa ao Rei, mas a decisão ainda não é tomada no posterior decreto de 12 de Abril de 1649.

A partir daqui não existe mais nenhuma menção ao processo, mas outros documentos de 1649 permitem concluir que os oficiais holandeses terão sido libertados e que a companhia formada a expensas de Cornellis se manteve no activo, embora os oficiais possam não ter recuperado os postos, .pelo menos de imediato. O soldado Mateus Rodrigues (Matheus Roiz) refere que a companhia de Cornellis estava aquartelada em Terena em Janeiro de 1654, tinha 80 cavalos e o tenente era um francês, Monsieur La Roche. Em Junho de 1654, Manuel Cornellis escreve ao Rei, reclamando os privilégios de capitão, que entretanto perdera. O monarca tem dúvidas e pede um esclarecimento ao general da cavalaria do Alentejo, André de Albuquerque Ribafria. O certo é que o oficial holandês permaneceu ao serviço da Coroa portuguesa, pois em 1657 solicitou autorização para integrar na sua companhia, então muito diminuída, um soldado que ainda estava a contas com a justiça.

Fontes: Arquivo Nacional da Torre do Tombo – Conselho de Guerra, Consultas, 1649, maço 9, nº 47; Secretaria de Guerra, Livro 16, fl. 152; Arquivo Histórico Militar – Manuscrito de Matheus Roiz, p. 396.

Imagem: Cavaleiros num acampamento militar. Quadro de Philips Wouwerman, Museu do Louvre.

Um crime em Abrantes (2ª parte)

Em 23 de Maio de 1648, o Rei D. João IV escreve uma carta ao governador das armas do Alentejo, Conde de São Lourenço, acerca de um crime praticado em Abrantes e dos procedimentos que deviam ser tomados a esse respeito (missiva aqui vertida para português corrente, para melhor entendimento):

Conde amigo. Eu, El-Rei, vos envio muito saudar, como aquele que amo. Da carta e outros que com esta se vos remetem, vereis o excesso que os soldados de cavalo da companhia do capitão Manuel Cornellis, que estiveram alojados na vila de Abrantes, cometeram matando a João Roiz, o Campos, que encontraram caçando na vila de Abrantes, e porque este caso, segundo se tem entendido, foi cometido com grande atrocidade, e não convém que fique sem castigo pelo geral escândalo que tem dado, sendo mandado ordenar ao corregedor da comarca passe logo àquela vila a tirar devassa dele, e tanto que a tiver acabada vo-la remeta para fazerdes sentenciar no juízo da auditoria geral os culpados nela, de que me pareceu avisar-vos para que o tenhais entendido. E vós ordenareis (se já o não tiverdes feito, em virtude da ordem que vos foi) que logo seja preso a bom recado o capitão Manuel Cornellis, e posto em prisão segura a respeito da graveza [gravidade] do delito até ser sentenciado. Escrita em Lisboa a 23 de Maio de 1648.

O oficial respondia pelo crime cometido por alguns dos seus subordinados. Uma desavença por causa da caça? Os documentos não esclarecem os motivos da morte do paisano João Rodrigues, mais conhecido por Campos (o uso de alcunhas era vulgar na época; por vezes, tornavam-se nomes de família, que a descendência já não conseguia descartar e acabava por adoptar como patronímico).

Quem era este oficial holandês, Manuel Cornellis? Como já foi referido, o seu pai era cônsul da Províncias Unidas (vulgo, Holanda) em Portugal. Fora tenente na companhia do comissário geral Alexandre van Harten, um dos militares sobreviventes do contingente holandês que em Setembro de 1641 entrara ao serviço de D. João IV. Mas a chegada de Cornellis a Portugal é muito posterior àquela data – provavelmente durante o ano de 1646. Em Março de 1647 recebe patente de capitão de cavalos couraças. É então que parte para a Holanda, disposto a comprar 100 cavalos e recrutar 100 soldados para a sua companhia. Regressa em meados de Agosto, trazendo os cavalos prometidos, mas somente 30 soldados. Para completar o efectivo previsto, a sua companhia terá de integrar soldados portugueses – e também alguns estrangeiros cujas companhias haviam sido reformadas, como foi o caso do alferes holandês Guilherme (Willem) Liner, que se oferece para a unidade de Cornellis.

Em Abril de 1648, a companhia de Manuel Cornellis encontra-se na província da Beira, para onde fora enviada com outras unidades, a fim de reforçar o exército que D. Sancho Manuel lançara em operações sobre Valência de Alcântara, no mês anterior. O capitão desespera por regressar ao Alentejo. Escreve ao Conde de São Lourenço, pedindo licença para levar os cavalos a tomar o verde a Estremoz ou Vila Viçosa. O Conde, por sua vez, pede autorização ao Rei. Afirma que se a companhia tardar muito e já não encontrar pastagens, os cavalos ficarão perdidos de todo. Mas a resposta demora a chegar, e Cornellis decide abandonar a Beira por sua iniciativa, precipitando os acontecimentos. O crime cometido pelos seus subordinados levá-lo-á a um penoso processo, que será descrito no próximo e derradeiro artigo.

Fontes: ANTT, Conselho de Guerra, Livros de Registos, Livro 10, fl. 7 e Livro 11, fl. 110 v; Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV, vol. I, pgs. 171, 210, 233, 246 e 250.

Imagem: Cavaleiros do período da Guerra Civil Inglesa, reconstituição histórica, Kelmarsh Hall, 2008. Foto emprestada pela English Civil War Society.