Lugares da Galiza rendidos a Portugal em Dezembro de 1667

Quase no final da Guerra da Restauração, na fronteira da província de Trás-os-Montes, uma sucessão de acções de guerra ofensiva por parte do exército português levou o receio aos moradores de muitas localidades da Galiza. Em consequência, os moradores de mais de 100 dessas localidades renderam-se a Portugal – ou, mais correctamente, foram coagidos a submeter-se às exigências do exército de Trás-os-Montes, permanecendo nas suas casas e terras, mas entregando uma parte de bens e haveres aos portugueses. Uma forma de estabelecer o modus vivendi em zonas de conflito muito comum, por exemplo, durante a Guerra dos 30 Anos.

A primeira incursão foi conduzida pelo sargento-mor de batalha Francisco de Távora, irmão do governador das armas de Trás-os-Montes, D. Luís Álvares de Távora, Conde de São João da Pesqueira (futuro 1.º Marquês de Távora, título que receberia em 1669). Estando o governador das armas ausente da província, mas com ordem dada para que o seu irmão avançasse com a operação, entrou Francisco de Távora 11 léguas Galiza adentro (cerca de 60 Km) até ao Vale de Lobeira, com 400 cavalos às ordens do tenente-general D. Miguel da Silveira e 500 infantes comandados pelo sargento-mor Luís de Barros Gavião. Por serem as povoações daquele vale riquíssimas (a expressão é do próprio sargento-mor de batalha, em carta enviada ao Conselho de Guerra), se trouxe dali presa e saque considerável. Seguiu-se uma segunda incursão, comandada pelo mestre de campo Duarte Ferreira Chaves, e uma terceira, a cargo do comissário geral da cavalaria João de Almada de Melo, ambas com bom sucesso.

Na carta enviada ao Conselho de Guerra por Francisco de Távora são descritos os motivos e os pormenores da incursão, bem como a listagem das localidades que se submeteram a Portugal.

Entendendo o Conde meu Irmão, Governador das Armas desta Província, que destruindo o país de Galiza não só segurava estas raias, mas sustentando as nossas tropas impossibilitava também aos inimigos, porque do dano que experimentavam aqueles moradores resultava à sua cavalaria a perda dos quartéis a falta dos mantimentos, procurou e conseguiu todo este ano que assim se executasse. E vendo os Galegos que se achavam forçados, ou a largar a pátria ou a viver debaixo de nosso consentimento, quiseram e escolheram comprar a assistência de suas casas a troco de seus cabedais, e assim se reduziram todos os lugares que contém o papel que envio a Vossa Majestade, a pagar uma contribuição (que se agora não é tamanha), tendo por certo que assim que se contarem os anos crescerá a quantia. Seguindo pois, Senhor, a máxima do Conde por lograr o mesmo fim, me resolvi sábado, que foram 10 do mês (tendo estas armas a meu cargo) a entrar (com quatrocentos cavalos mandados pelo tenente-general Dom Miguel da Silveira, e quinhentos mosqueteiros que governava o sargento-mor Luís de Barros Gavião) no Vale de Lobeira, onze léguas pelo interior, composto de dezanove riquíssimas e grandes povoações, aonde nunca haviam chegado os nossos soldados, e de que tiraram boa presa e grande saco. O mestre de campo Duarte Teixeira Chaves e o comissário geral João de Almada de Melo, a quem por diversas partes mandei fazer segunda e terceira invasão, tiveram a mesma felicidade, obrando-se tudo sem a menor resistência, como sucederá sempre que com o nome de Vossa Majestade intentemos outras empresas.

Guarde Deus a muito alta e poderosa Pessoa de Vossa Majestade […].

Chaves, 13 de Dezembro de 1667.

Segue-se uma extensa lista com os nomes das 112 localidades, alguns dos quais de difícil percepção devido à caligrafia:

Feris de Lima

Vila Maior de Gironda

São Milhão

Medeiros

São Cristóvão

Santa Vaia

Mandim

Valtar

Ninho d’Águia

Vila Maior da Boa Hora

São Paio da Badis

São Lourenço de Tozende

Sanenago

Rubias

São João

Mendim

Santiago de Baixo

Requiones

Vilar d’Alhos

Pedroza

Bouço

Graveliz

Lijões

Gumanriz

Eixames

Godem

Tamagelos

Tamangos

Alourazes

Mar

Tourem

Olmbra

Rozal

Bouzeins

Moinhos

Salcharens

Nogueira

Prado

Gomar

São Fernando

Prado Novo

Huetras

Larosa

Pijeires

Pijeiros

Pereiro

Sabuzedo

Parada

Covelos

Moreiros

Vilar de Lebres

Moimenta

Lobos

Tresmores

Coaledo

Vilaça

Ataes

Pivadaz

Nuzelos

Vilar de Servos

Herreros

a Madonelha

Sendim

São Martinho

Lubença

Asezedo

Carçosa

Vila de Rey

Soutelo

Santo António

Santo Antoninho

Alvaredos

Ababidis

Pinheira

Infesta

Santa Valha da Lima

Chamuzinhos

Pardieiros

Lovanzes

Soutelo da Limia

São Pedro da Limia

Rebordachã

Somis

Satharis

Lodozelo

Freixo

Pambre

Suzedo da Pena

Escarnabois

Coais

Souto Chão

Cherrande

Arsolá

Crastelo de Baixo

São Vicente

Dona Elvira

Vergunda

Riós

Vilarinho da Toussa

A Barreira

Vilar de Flor

Tameirão

Crastelos de Moterrey

Passos

Gueiçães

Covas

Fiães

Arsadagues

Salharinz

São Salvador

Barria

Covis

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1668, mç. 28, consulta de 11 de Janeiro de 1668.

Imagens: Castelo de Chaves, na actualidade; e retrato do governador das armas de Trás-os-Montes em 1667, o Conde de São João da Pesqueira, D. Luís Álvares de Távora.

Os capitães-mores nas fronteiras de guerra em 1645 – parte 2, províncias da Beira, Trás-os-Montes e Entre-Douro-e-Minho

Concluindo as listas dos capitães-mores e respectivos soldos (ou ausência deles), remetidas ao Conselho de Guerra em 1645, são agora apresentadas as respeitantes às províncias da Beira, Trás-os-Montes e Entre-Douro-e-Minho. A importância relativa de cada uma destas fronteiras de guerra pode ser observada através das listas: enquanto o Alentejo, cuja lista foi apresentada na primeira parte desta mini-série, incluía o mais extenso rol de capitães-mores remunerados, nas outras províncias os soldos eram desconhecidos ou não eram sequer auferidos pelos titulares dos cargos. Mais uma vez se recorda aqui que o capitão-mor era um cargo que podia ser desempenhado por alguém com uma patente militar já atribuída, conforme se pode ver nos quadros inclusos (basta clicar com o rato em cada uma das ligações para aceder ao respectivo ficheiro PDF).

CM Província da Beira 1645

CM Província de Trás os Montes 1645

CM Província de Entre Douro e Minho 1645

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1645, maço 5, Rellação das praças da Raya, das Prouincias de Alentejo. Beira. Tras os Montes. Entre Douro e Mynho, e do Reyno do Algarue, e nomes dos Capitães mores dellas, e os que uencem soldo e uencem a sua custa, proveniente da Contadoria Geral.

Imagem: “Soldados jogando cartas”, pintura de Simon Kick; fonte: http://www.wikigallery.org/wiki/painting_203085/Simon-Kick/Soldiers-at-Cards.

O estado das praças raianas na província de Trás-os-Montes em 1659 (parte 7 e última – Bemposta e Freixo de Espada à Cinta)

A vila de Bemposta é muito pequena e aberta, dificulta o Douro a passagem que o inimigo tem se quiser saqueá-la, nem tem riqueza com que se apeteça, mas para maior segurança se há-de fazer pelos moradores uma atalaia que assegure o melhor aquele ruim passo.

A vila de Freixo de Espada à Cinta tem um castelo capaz de se defenderem nele todos os moradores dela. É também assegurada do rio Douro, a que cercam por ali penhas tão altas e continuadas, que é impossível trazer o inimigo artilharia, nem carruagens. Só em dois passos (algum ano seco em o estio) dá passo à infantaria à desfilada, e trabalhosamente da mesma sorte à cavalaria. Para impedir estes dois passos, se deve cobrir cada um deles com sua atalaia forte, que tocando a sentinela arma, há largo tempo para da gente da vila lhes entrar a guarnição com que o inimigo não passe, e quando a troco de sua perda o faça, valerá mais do que pode interessar em queimar algumas casas.

Douro abaixo, até onde esta província se encontra com a da Beira, há nele outros dois, tão dificultosos passos, que também se devem assegurar com outras duas atalaias, que hão-de ser guarnecidas pelos mesmos moradores dos lugares que lhe ficam vizinhos, termo da mesma vila. Com o referido está reconhecida e ponderada toda a raia de uma à outra extremidade desta província.

E assim termina o relatório enviado por D. Rodrigo de Castro, Conde de Mesquitela, ao Conselho de Guerra.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1659, maço 19, “Rellação das  Praças da Raya da Prouinçia de Tras os montes, do estado de suas fortificaçõis da que neçessitam, e os passos do Rio Douro”, anexa à consulta de 20 de Junho de 1659.

Imagem: Soldado com mosquete, estudo de Adam-Frans van der Meulen.

O estado das praças raianas na província de Trás-os-Montes em 1659 (parte 6 – Miranda do Douro)

A praça de Miranda está edificada, e o seu castelo em sítio tão forte, que com pouca obra será inexpugnável sua fortificação. Coroa o alto de uma eminência de uma penha superior às mais que se lhe chegam, nela não se lhe poderão abrir aproxes, nem profundar minas. Quase toda esta povoação cerca os rios Douro e Fresno, que impedem o inimigo poder levar por ali artilharia, em razão dos ruins passos e aspereza que tem para se baixar e subir deles. Está fechada esta cidade e o seu castelo com muralha que, se antiga, a melhor que naquele tempo devia fazer-se, com sua barbacã, e pela parte que olha ao Douro e alguma do Fresno, onde devia parecer que pelo intratável não necessitava dela, se lhe tem feito parede, com uma forte estacada. Ao lado, que estes rios não acabam de cerrar, uma pequena parte desta cidade e castelo tem duas eminências, que de uma à outra se caminha à muralha; a mais próxima dela é capaz de poucas peças para bateria; a outra mais distante e eminente, é a largo tiro de mosquete da muralha, não só capaz de muita artilharia, mas cobre um vale em que o inimigo pode aquartelar grosso de gente. necessita esta praça de que, ao uso moderno, se descortine a muralha feita por dois meios baluartes e três meias-luas, e que em lugar de fosso no de estrada encoberta se lhe faça um parapeito de pedra, com estacada em meio dele.

Deve fazer-se uma obra corna com sua meia-lua naquela eminência que descortina o vale, tira o quartel ao inimigo e lhe impede a única parte que tem para trazer artilharia, e dentro dos ramais desta obra fica cerrada a outra em eminência inferior a esta.

Só com estas pequenas obras ficará esta a mais defensável praça que a meu ver há neste Reino.

(continua)

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1659, maço 19, “Rellação das  Praças da Raya da Prouinçia de Tras os montes, do estado de suas fortificaçõis da que neçessitam, e os passos do Rio Douro”, anexa à consulta de 20 de Junho de 1659.

Imagem: Planta de Miranda, década de 40 do século XVII. Publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

O estado das praças raianas na província de Trás-os-Montes em 1659 (parte 5 – Outeiro e Vimioso)

 

 

 

A vila de Outeiro (que está da raia meia légua) consiste a defensa daqueles moradores em o seu castelo, que está a menos de tiro de mosquete, situado em uma eminência tão consideravelmente levantada, que de nenhuma outra receberá ofensa. De uma parte do castelo sai muralha que torna a cerrar nele, cobrindo mais da metade da do castelo; vem em forma circular, não tem casas em meio, nem as há no castelo, senão as em que vive quem o governa, e algumas que servem de quartéis. Deve derrubar-se a muralha que não é do castelo, e ele ficar em meio de um quadrado paralelogramo, a que três lados defenderão meias-luas, e o outro a que vem subindo uns penhascos, uma tanalha. Esta é a fortificação que, segundo o sítio, pede o castelo, que convém assegurar-se pela importância dele.

A vila do Vimioso dista légua e meia da raia, tem um pequeno castelo, mas bastante a qualquer incidente recolherem-se os moradores dela, e defendendo-se dele ofenderem ao inimigo que entrar a saquear as casas, porque descortina as ruas. Não deve fazer-se fortificação que o feche, porque não está em parte conveniente para que o inimigo queira ocupá-la para ali se sustentar, mas porque é abundante de gados, convém na eminência do Facho, que fica a tiro de mosquete do castelo, fazer uma atalaia forte, cercada ao largo de estacada com parapeito, onde, recolhidos os gados dele, peleja a gente a favor da atalaia, porque [para que] o inimigo lhos não leve; obra que farão por sua conta os moradores, pela utilidade que se lhes segue.

(continua)

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1659, maço 19, “Rellação das  Praças da Raya da Prouinçia de Tras os montes, do estado de suas fortificaçõis da que neçessitam, e os passos do Rio Douro”, anexa à consulta de 20 de Junho de 1659.

Filme: “Como se disparava um mosquete de mecha”, pequeno documentário em inglês (English Heritage).

 

O estado das praças raianas na província de Trás-os-Montes em 1659 (parte 4 – Bragança)

A praça de Bragança dista da raia duas léguas e meia, o que dela foi vila está situada em uma eminência circundada de muralha antiga, em meio tem um castelo também cerrado de per si de muralha da mesma sorte. Desta vila se continua a mais povoação da cidade, baixando pela eminência, e torna a subir até outra, que fica a tiro de mosquete. Continuam-se as casas por junto ao rio Fervença e se alongam só a distância de três ruas, por uma e outra parte as vem fechando parede de grossura de três palmos, pouco mais ou menos. A que olha ao rio tem alguns redentes e parte dela de pedra e cal; a que fica para a parte da campanha é de pedra e barro, tem a modo de baluartes e alguns travezes, tem estacada e pequeno fosso a maior parte desta obra.

Esta povoação é tão condenada a padrastos, que segundo as notícias variaram todos os engenheiros em a forma de fortificá-la, e nenhum fez planta conveniente. Deve cerrar-se de per si a fortificação da vila que está situada naquela eminência, e pode servir-lhe a muralha com que se acha, menos a que fica para as casas da cidade, que contra elas se há-de fortificar com defesa ao moderno de dois meios baluartes a modo de tenalha, e uma meia lua ao lado direito dela, e se há-de ocupar em uma obra corna a eminência que para a outra parte olha a muralha da vila a tiro de mosquete, porque [para que] dali a não batam nem se caminhe com aproxes.

Fortificada de per si desta sorte a vila, se deve fazer um forte na eminência que frente a ela fica, junto à qual acaba a povoação da cidade, que ficando em meio destas duas forças tiro de mosquete de uma a outra a não entrará o inimigo, ou ao menos se não pode deter nas casas, ofendido da artilharia e mosquetaria, e abrindo-se um fosso pela parte da campanha ao largo, mudando a ele a mesma estacada e parede de pedra que está feita junto às casas, e se o inimigo quiser vir a elas receberá na detença da entrada considerável perda da artilharia e mosquetaria, das duas forças e meios fossos há-de ir acabar este. Pelo outro lado das casas ficam defendidas do rio Fervença e aspereza da subida dele. É esta fortificação de maior segurança que qualquer outra que ali possa fazer-se: pede menos tempo, menos despesa e muito menos guarnição.

(continua)

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1659, maço 19, “Rellação das  Praças da Raya da Prouinçia de Tras os montes, do estado de suas fortificaçõis da que neçessitam, e os passos do Rio Douro”, anexa à consulta de 20 de Junho de 1659.

Imagem: Planta de Bragança, década de 40 do século XVII. Publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

O estado das praças raianas na província de Trás-os-Montes em 1659 (parte 3 – Monforte e Vinhais)

Monforte é um castelo da raia uma légua, feito de ruim muralha ao antigo, de que sai outra onde era a vila, que hoje só tem dentro oito ou dez casas de colmo, e outras tantas pela parte de fora. Tem, pela do castelo, uma estacada, a que mandei fazer parapeito e banqueta; está a maior parte da muralha da vila defendida da aspereza de um penhasco que para ela sobe, e a do castelo que olha a campanha quase de nível com ela, mas tem comodidade o inimigo para pôr duas baterias, que de perto lhe podem fazer grande ofensa; mais ao largo tem outras eminências que descortinam por dentro de ambas as muralhas a tiro de mosquete. Para resistir esta vila e castelo a exército pede obra considerável, e como não tem moradores, nem é de utilidade ao inimigo, não fará para esta ofensa. Deve acomodar-se o castelo para resistir em qualquer incidente que o inimigo ali chegue sem o fim de sitiar, com obra de tão pouco porte que não merece fazer sobre ela discurso.

Vinhais é pequena vila que dista légua e meia da raia, tem uma ruim muralha que cerra poucas casas, sem outra defesa, nem a pede porque não é de utilidade ao inimigo, nem de porte para vir a ela, e ainda para com cavalaria fazer presa, é dificultosa a entrada, pelo ruim passo que tem para fazê-la.

(continua)

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1659, maço 19, “Rellação das  Praças da Raya da Prouinçia de Tras os montes, do estado de suas fortificaçõis da que neçessitam, e os passos do Rio Douro”, anexa à consulta de 20 de Junho de 1659.

Imagem: Planta de Vinhais, década de 40 do século XVII. Publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

O estado das praças raianas na província de Trás-os-Montes em 1659 (parte 2 – Chaves)

A praça de Chaves é cercada de muralha antiga, tem dentro um pequeno castelo em que não há moradores, nem capacidade para mais casas que a com que se acha. Tem esta vila três arrabaldes, dois deles chegados à muralha, o outro da banda de além do rio. Está situada superior a Veiga por mais da metade da sua circunvalação. Para a parte de Castela, a cem passos, pouco mais ou menos, em uma eminência superior, está o forte de Nossa Senhora do Rosário, obra mais pequena do que devia fazer-se. Tem quatro baluartes com flancos tão pequenos que lhe dão pouca defesa. Tem-se-lhe começado a abrir fosso em a maior parte, mas nem por essa está acabado. Por fora dele circunda o forte uma estacada com parapeito feito de pedra e barro, com seus redentes e pontas a modo de meias luas, que a descortinam. Totalmente convém pôr este forte em perfeição fazendo-lhe meias luas e ocupando dois postos com obras cornas, porque [para que] o inimigo não bata, nem caminhe deles com aproxes, porque dali chegarão brevissimamente a picar a muralha, e convém necessariamente a defesa deste forte, em que consiste o inimigo não poder ser senhor da vila nem sustentar-se nela a que serve de cidadela, com o que se fica escusando a fortificação real que se procura à vila, para que era necessário dilatado tempo, excessiva despesa e muita guarnição. E só bastará fazer-lhe poço, algumas meias luas e estrada encoberta que se feche com a do forte, e derrubando-se a muralha que fica oposta a ele.

Com atalaias fortes se devem ocupar três penhascos que estão tiro de mosquete da praça, da outra banda do rio de Ribelas, com o que, assim a vila como o forte, ficarão com boa defesa e mais breve tempo, com menos despesa e moderada guarnição. Acabadas estas obras se deve fazer um forte na eminência que está para a parte da Trindade, a mais de tiro de mosquete desta fortificação, a fim de tirar ao inimigo o quartel que detrás dele necessariamente há-de tomar, querendo pôr sítio; e estando ocupado este posto, haverá mister mais de vinte mil homens o inimigo para deitar cordão à praça, e lhe será precisamente necessário ganhar o forte desta eminência, que será defendido com muita segurança da gente da guarnição da praça, pelo ficar socorrendo com as costas nela, debaixo de toda a artilharia e mosquetaria; perderá o inimigo sobre ele gente considerável, gastará muito tempo, que é o remédio dos sitiados para esperarem não serem ganhados e poderem ser socorridos.

(continua)

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1659, maço 19, “Rellação das  Praças daRaya da Prouinçia de Tras os montes, do estado de suas fortificaçõis da que neçessitam, e os passos do Rio Douro”, anexa à consulta de 20 de Junho de 1659.

Imagem: Planta de Chaves, década de 40 do século XVII. Publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

O estado das praças raianas na província de Trás-os-Montes em 1659 (parte 1 – Montalegre)

castelo de montalegre

Numa carta datada de 4 de Junho de 1659, D. Rodrigo de Castro, Conde de Mesquitela e governador das armas da província de Trás-os-Montes, expôs ao Conselho de Guerra a situação das praças raianas que acabara de visitar. Percorrera toda a zona fronteiriça, de uma extremidade à outra da província, e o que encontrara dera-lhe motivo para grande preocupação: todas se achavam abertas ou com muralha antiga e a necessitarem urgentemente de fortificação. O grande obstáculo era a falta de verbas para o efeito. Do montante que, nos primeiros anos da guerra, provinha do real d’água e estava consignado à fortificação daquela província, uma parte fora desviada para atender às necessidades também prementes da vizinha província de Entre-Douro-e-Minho. Entrava aqui também a fatia de 200.000 réis que se ia buscar ao rendimento das terças da Torre de Moncorvo e que o Conde de Mesquitela reclamava de novo para as obras das praças de Trás-os-Montes. Entretanto, propunha-se o governador das armas empregar gratuitamente toda a gente da ordenança da província nos trabalhos de abertura de fossos, levantamento de terra e na condução de pedra e madeira, como meio de contornar em parte a penúria de meios financeiros.

Quanto ao estado das praças, a situação é descrita com minúcia numa relação anexa à carta. É esse texto que aqui se reproduz, vertido para português corrente.

[Montalegre]

Montalegre dista da raia duas léguas, tem um castelo separado da vila, é cercado de muralha antiga a que se fez seu poço, e mais ao largo uma estacada a que mandei fazer parapeito e banqueta para delas se pelejar, como de estrada encoberta. Está situado este castelo sobre um outeiro, que domina a campanha na maior parte de sua circunvalação. A um lado tem um outeiro, que sendo-lhe área inferior, lhe é prejudicial por lhe estar perto. A outro lado, da parte da vila, lhe ficam dois vales com um levantado outeiro capaz de bateria, ao qual domina e flanqueia, e aos vales uma colina que dista do castelo largo tiro de mosquete, que convém ocupar-se com um forte, como com um fortim o dito outeiro que se avizinha ao castelo.

Devem derrubar-se algumas casas que da vila se arrimam à estacada e não deixam flanquear, em razão que por elas se pode chegar o inimigo sem dificuldade à muralha.

Mandei cortar vigas fortes para que sobre elas se façam sobrados no alto de duas torres, em que se ponha artilharia que descortine as eminências e vales do alcance dela. É de muita importância a conservação deste castelo, e com estas pequenas obras pode assegurar-se.

(continua)

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1659, maço 19, “Rellação das  Praças da Raya da Prouinçia de Tras os montes, do estado de suas fortificaçõis da que neçessitam, e os passos do Rio Douro”, anexa à consulta de 20 de Junho de 1659.

Imagem: Castelo de Montalegre. Foto de JPF.

O outro Jacques Talonneau de la Popelinière, oficial francês de cavalaria ao serviço de Portugal (1646-1658)

Aelber

O primeiro Jacques Talonneau de la Popelinière foi um oficial francês que chegou a Portugal em Setembro de 1641, na armada do Marquês de Brézé, fazendo parte do regimento de cavalaria ligeira do coronel Sebastian de Mahé de la Souche. É indubitável a chegada de Popelinière nesta data, pois o seu nome é referido em diversos documentos, alguns dos quais relações dos oficiais franceses e respectivos regimentos. Quando Mahé de la Souche deixou Portugal em Maio de 1642 e o seu regimento foi dissolvido, Jacques de la Popelinière seguiu com a sua companhia para a Beira, onde logo foi nomeado comissário geral (Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, vol. I, pg. 387, edição de 1945). Em 1644, aquele oficial é dado como morto em combate – e é assim que o reporto no meu estudo O Combatente durante a Guerra da Restauração, ainda que referindo que o seu último posto foi o de tenente-general da cavalaria na província de Trás-os-Montes.

Na verdade, documentos que posteriormente consultei sugerem ter havido um outro Jacques Talonneau de la Popelinière (casos de homónimos eram raros, mas não impossíveis: houve o exemplo, também entre cavaleiros franceses ao serviço de Portugal na mesma época, dos primos Henri de la Morlaye, um morto em Outubro de 1642, outro em Maio de 1649, ambos em combate). Este Popelinière é que ocupou, como último posto, o de tenente-general da província de Trás-os-Montes. Chegou a Portugal em 1646, portanto já após a morte do primeiro, e também combateu nos mesmos teatros de operações antes de ser promovido a comissário geral na província de Trás-os-Montes, em Janeiro de 1658.

A necessidade de nomeação de um comissário geral da cavalaria para Trás-os-Montes deveu-se ao facto do posto estar vago, por promoção de Domingos da Ponte, o Galego, a tenente-general naquela mesma província. Na consulta do Conselho de Guerra onde são feitas as propostas de sujeitos para o posto vago pode ler-se a respeito do até então capitão Jacques Talonneau de la Popelinière (texto vertido para português corrente):

Jacques Talonneau de la Popelinière, pessoa de qualidade, de nação francês, que serve a Vossa Majestade há quase doze anos, ocupando os postos, depois de soldado, de alferes, tenente, e de capitão de cavalos, que serve em Trás-os-Montes há seis anos, um mês, e quinze dias, e o mais tempo parte dele na Beira, e outro nas fronteiras de Alentejo, achando-se nelas na maior parte das ocasiões que naquele tempo se ofereceram, e particularmente no encontro que houve em vinte seis de Março de seiscentos quarenta e sete, com vinte quatro tropas na passagem de Cantilhana, na escaramuça que depois se teve com outras tropas de Badajoz, ficando prisioneiro entre elas, e tornando de Castela em sua liberdade, se achou na emboscada que se fez junto a Badajoz em Setembro de quarenta e nove; no encontro que houve com sete tropas em Albufeira, indo mais de uma légua no seguimento delas; e se achou na peleja que a nossa cavalaria teve com a que saiu de Montijo, na correria da campanha de Xerês. E sair de Olivença a pelejar com o inimigo, que se veio emboscar junto da muralha da mesma praça, em Maio de seiscentos e cinquenta, desmontando um castelhano lhe deu uma cutilada no rosto. Na oposição que em treze de Fevereiro de seiscentos cinquenta e um se fez ao inimigo vindo com grosso de sua cavalaria a correr a campanha de Olivença, saiu ferido num braço com bala de pistola. E o mesmo ano se achou na entrada de Salvaterra, e o mesmo ano passou a Trás-os-Montes, onde por ordem do Conde de Atouguia, que governava as armas, por não haver cabo, governou a cavalaria que assistia em Chaves, achando-se nas duas entradas que se fizeram em Castela, e na ausência do capitão-mor da cidade de Miranda a ficou governando, acudindo com grande zelo às fortificações dela, e ultimamente se assinalou, matando e ferindo e rendendo a muitos do inimigo. E na entrada que em dois de Maio de seiscentos cinquenta e cinco se fez, pelas terras de Trás-os-Montes com quatrocentos e quarenta cavalos, tendo-se-lhe encarregado investisse o inimigo, como fez com valor indo em seu seguimento, e da mesma maneira obrar nas ocasiões referidas. Depois delas, acompanhou o mestre de campo António Jacques de Paiva, e achando-se em Miranda, nas entradas que fez em Galiza onze léguas pela terra dentro, saqueando-lhe mais de  setenta lugares, e as Vilas de Pino, Távora e Carvalhosa. E pretendendo o inimigo desquitar-se, vindo com quinhentos infantes pagos e outros tantos milicianos, e cento e quarenta cavalos, achando-se o mestre de campo na campanha com duzentos e três infantes e oitenta cavalos à ordem de Jacques Talonneau, investiu o inimigo com tal resolução, que matando-lhe muita gente e aprisionando-lhe duzentos trinta e sete soldados, com vinte e oito cavalos, e ganhando-lhe as munições e bagagem, e finalmente restaurando a presa que levava se recolheram, assinalando-se este capitão com particular valor, pelejando à espada, rendendo, ferindo e matando muitos castelhanos. Em outra ocasião, por ordem do tenente-general Luís de Figueiredo Bandeira, saiu com a sua companhia, e outra mais, governando-as, por haver o inimigo dado rebate à praça de Bragança, e encontrado-se com ele, pelejou com tal resolução que o pôs em fugida, trazendo ainda alguns prisioneiros do inimigo. Foi de socorro com sua companhia e a mais cavalaria de Trás-os-Montes à fronteira do Minho na ocasião que o inimigo a entrou com exército, e em todo o tempo que ali assistiram, se houve com grande valor nas pelejas, emboscadas e encontros que se teve com o inimigo, em que recebeu muito grande perda de gente morta, ferida, prisioneiros, e de cavalos que se lhe tomaram. Acabada a campanha, tornou para Trás-os-Montes. E vindo a esta Corte a tratar de seu requerimento, escreveu a favor deste capitão Joane Mendes de Vasconcelos, governando as armas naquela província, a Vossa Majestade que lhe devia Vossa Majestade de mandar deferir, assim por seu grande valor, como por ser o capitão mais antigo dela. E havendo Vossa Majestade despachado por seus serviços com o hábito de Santiago, foi servido se lhe mudasse ao de Cristo, com uma comenda de lote de duzentos mil réis.

O outro nome proposto foi o de Manuel da Costa Pessoa, que servia há treze anos, dois meses e vinte dias, tendo começado a servir em Setúbal em Setembro de 1640, na companhia de infantaria do Duque de Aveiro que devia ir à Catalunha; serviu 5 anos no Alentejo como soldado de infantaria e da cavalaria, foi cabo de esquadra e furriel e depois alferes de infantaria; participou na campanha de 1643 e nas duas campanhas de Montijo (como soldado de cavalos). Passou a Trás-os-Montes como alferes reformado, assim permanecendo 5 meses e 17 dias, mas depois, 3 anos e 27 dias de ajudante e como capitão de cavalos 4 anos, 7 meses e 11 dias.

O capitão francês acabou por ser provido no posto de comissário geral por decreto de 21 de Janeiro de 1658.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1658, mç. 18, consulta de 9 de Janeiro de 1658.

Imagem: Aelbert Cuyp, “Descanso no acampamento”, c. 1660, Musée des Beaux Arts, Rennes.

O Teatro de Operações Transmontano: artigo online na Revista Militar

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A Guerra da Restauração (1640-1668) no Teatro de Operações Transmontano”. Um interessante artigo do Sr. Tenente-General José Lopes Alves, na edição on-line da Revista Militar.

Imagem: Província de Trás-os-Montes, pormenor de um mapa de 1700. Posterior à Guerra da Restauração, mas elucidativo da dimensão da província e daquela que foi a fronteira de guerra. Biblioteca Nacional de Lisboa, Cartografia, CC164P.

Domingos da Ponte, o Galego

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Este oficial de origem galega (cujo nome aparece grafado, muitas vezes, apenas como Domigos da Ponte Galego) serviu nos exércitos da monarquia dual e do Sacro Império Romano-Germânico antes de passar a Portugal em 1641, como súbdito de D. João IV. Na sua carta patente de general da artilharia ad honorem, passada em 21 de Maio de 1663, pode ler-se que era fidalgo da Casa de Bragança, que contava então 22 anos de serviço militar contínuo em prol da Coroa Portuguesa e que participara em acções na Alemanha (antes da Aclamação de D. João IV), no Alentejo e em Trás-os-Montes com o posto de ajudante de cavalaria, capitão e comissário geral. A carta patente fazia saber que Domingos da Ponte era então tenente-general da cavalaria, posto que ocupava desde 1656, e que deveria manter esse posto e a respectiva remuneração (a patente de general de artilharia ad honorem, como indica o termo latino, era uma mera distinção honorífica). Domingos da Ponte governou algumas vezes interinamente as armas de Trás-os-Montes e Entre-Douro-e-Minho, bem como o exército de socorro de Trás-os-Montes à província da Beira, tendo recebido feridas e sido feito prisioneiro em serviço de El-Rei. Quando terminou a Guerra da Restauração, Domingos da Ponte era ainda tenente-general da cavalaria em Trás-os-Montes e general da artilharia ad honorem.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Secretaria de Guerra, Lvº 27, fl. 72, carta patente de 21 de Maio de 1663.

Imagem: Cavalaria em acção. Reconstituição histórica do período da Guerra Civil Inglesa, “History Day”, Kelmarsh Hall, 2008.

Governadores das Armas – Portugal – Província de Trás-os-Montes

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1641 – Martim Velho de Fonseca (sargento-mor de Viana, enviado pelo governador das armas de Entre-Douro-e-Minho, D. Gastão Coutinho).

1641-1643 – Rodrigo de Figueiredo de Alarcão.

1643-1646 – D. João de Sousa Silveira.

1646-1647 – Rodrigo de Figueiredo de Alarcão.

1647-1648 – Francisco de Sampaio (interino).

1648-1649 – Rodrigo de Figueiredo de Alarcão.

1649-1652 – D. Jerónimo de Ataíde (6º Conde de Atouguia).

1652 – António Jacques de Paiva (mestre de campo, interino).

1652-1657 – Joane Mendes de Vasconcelos.

1657-1658 – António Jacques de Paiva (mestre de campo, interino).

1658-1660 – D. Rodrigo de Castro, 1º Conde de Mesquitela.

1660-1668 – D. Luís Álvares de Távora, Conde de São João da Pesqueira. Neste período houve dois governadores interinos, ambos devido a ausência temporária do Conde de São João: 1662 – Domingos da Ponte, o Galego, tenente-general da cavalaria; 1664 – Diogo de Brito Coutinho, mestre de campo general).

Imagem: D. Jerónimo de Ataíde, 6º Conde de Atouguia; Biblioteca Nacional de Lisboa, Iconografia, E4508P.

O combate do forte de Aldea del Obispo, 2 de Janeiro de 1664

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Motivos de natureza profissional obstaram a que desse uma continuidade célere ao episódio aflorado no anterior artigo. Retomemos a trama agora, enquadrando o relatório na operação militar onde se registaram as baixas reportadas.

O Duque de Osuna, Gaspar Téllez-Girón y Sandoval, ordenara a construção de um forte perto de Aldea del Obispo – fortificação que actualmente é referida como Forte de la Concepción, mas que não é nomeada nas fontes consultadas. O local poderia servir de base de operações contra as povoações da raia beirã – Vale da Mula era a mais exposta pela sua proximidade, conforme se pode ver na imagem. Para obstar à conclusão do forte, saiu de Almeida o governador interino daquele partido, Afonso Furtado de Mendonça, à frente de uma força de 6.000 infantes e 1.000 cavalos (Pedro Jacques de Magalhães, o governador em título, encontrava-se doente). O Duque de Osuna estava aquartelado junto de Aldea del Obispo e tinha sob o seu comando um exército de 7.000 infantes e mais de 2.000 cavalos. A infantaria portuguesa, na sua maior parte, era composta por milícias de auxiliares e da ordenança de ambos os partidos da Beira, enquanto a cavalaria contava com efectivos da Beira e com forças de socorro do Alentejo e de Trás-os-Montes (o contingente que vem referido no relatório).

Segundo o Conde de Ericeira, Afonso Furtado (…) tomou quartel pouco distante do inimigo, que não lhe pleitearam ganhar o posto que pretendiam. Estébanez Calderón, autor do século XIX, refere que Osuna había fortificado sus reales [ou seja, o seu campo] en un lugar ventajoso, teniendo a sus espaldas el baluarte, y enfrente de él, a distancia de un tiro de artilleria, se miraba asentado el campo de los enemigos. Afonso Furtado de Mendonça fez escavar uma trincheira, mas os seus intentos de atacar e destruir o forte desvaneceram-se ao constatar que este tinha já quatro baluartes levantados, e que era complementado por fosso, estrada coberta e estacada. Com a fraca qualidade da infantaria que possuía, não tinha a mínima hipótese de sucesso. Decidiu, por isso, mudar de estratégia e passou a enviar tropas de cavalaria a talar os campos do inimigo. Mas nem este propósito foi bem sucedido, pelo que determinou marchar sobre Ciudad Rodrigo e queimar os seus arrabaldes, de forma a atrair o Duque de Osuna para longe do forte e pelejar com ele em campanha rasa.

Para concretizar o objectivo, teria de pedir mais mantimentos a Almeida, a fim de sustentar o exército vários dias em terra inimiga. Enviou então um comboio (conjunto de carros, carroças e animais de carga) àquela praça, mas descurou a sua protecção. Avisado do facto, o Duque de Osuna resolveu interceptar e desbaratar o comboio. Compôs toda a sua cavalaria e fez marchar, na retaguarda desta força montada, um terço de infantaria – um reforço que havia enviado D. Juan de Áustria. D. Martinho da Ribeira, que comandava a segunda linha de cavalaria do lado direito do dispositivo português, puxou pela gente de cavalos, a fim de socorrer o comboio, e desfilada, a fez passar o ribeiro de Vale da Mula; e depois de subir por serras e tapadas que embaraçavam o terreno, achou aos inimigos formados, que o vieram buscar. O Duque de Osuna, con estas tropas, compartidas en tres escuadrones  (…) acometió al punto al enemigo. Como los nuestros eran superiores en número, a la primera y repentina carga desbarataron a los portugueses; pero éstos, viendo que no podían sostener con sus contrarios un combate igual, no trataron de rehacerse, sino, derramados como estaban, se defendían escaramuzando. Notando o perigo em que se encontrava a sua cavalaria, Afonso Furtado de Mendonça enviou um reforço de infantaria e mais cavalaria. Domingos da Ponte, o Galego, e Gomes Freire de Andrade, tenentes-generais, saíram a toda a pressa para se acharem na ocasião; e formando seis batalhões, dos que começavam a retirar-se, fizeram rosto aos castelhanos com ardor mais precipitado do que pedia a sua vantagem. Eram dezassete os batalhões, de que Domingos da Ponte fez duas linhas. Constava a vanguarda de nove, e de oito a reserva, e sem interpor a menor dilação, atacou furiosamente a vanguarda dos castelhanos com a nossa, que rompeu com grande facilidade. Julgaram-se os portugueses definitivamente vitoriosos, e seguros de su victoria, habían deshecho su formación, para entregarse al despojo y alcance de los fugitivos, sin tener en cuenta que quedaba en pie un escuadrón de castellanos, que era más fuerte todavía, por componerse de gente veterana. Esta reserva do inimigo, num vigoroso contra-ataque, desbaratou a vanguarda portuguesa. Pretendeu Domingos da Ponte reorganizá-la, passando pelos claros da segunda linha de cavalaria, só que… esta já não estava no seu posto, tendo fugido antes sequer de disparar um tiro ou trocar espadeiradas. Vendo esta situação, Afonso Furtado de Mendonça fez sair do quartel dois terços de infantaria e várias mangas soltas de arcabuzeiros e mosqueteiros, e foi atrás desta formação que a cavalaria finalmente se reorganizou e repeliu os perseguidores. O Duque de Osuna, por seu lado, ao verificar que Furtado de Mendonça desguarnecera o seu campo, tentou tomá-lo, mas ainda restavam para sua defesa três terços da Ordenança e duas companhias de cavalos, sob o comando do tenente-general da artilharia Diogo Gomes de Figueiredo, o qual resistiu bravamente. Quando o Duque de Osuna viu aproximar-se Afonso Furtado de Mendonça com as suas forças, optou por se recolher ao seu forte. Também Furtado de Mendonça não demoraria muito tempo a retirar, desistindo da sua pretensão. Em conselho com os seus oficiais, chegara à conclusão que seria impossível conquistar ou destruir o forte, optando então por se recolher de novo a Almeida.

Foi deste modo que se registaram as baixas entre as seis companhias enviadas de Trás-os-Montes e comandado pelo general de artilharia ad honorem (e tenente-general da cavalaria) Domingos da Ponte, o Galego. Uma operação típica da guerra de fronteira, bem violenta na refrega mas sem resultados estratégicos de importância. Ainda assim, em termos tácticos o Duque de Osuna pôde tirar partido da manutenção do forte, pois dele fez base de operações através da qual conseguiu destruir a ponte de Ribacoa, que facilitava a comunicação com Almeida.

Fontes:

ERICEIRA, Conde de, História de Portugal Restaurado, edição on-line (facsimile da edição de 1759), Parte II, Livro IX, pgs. 247-250 (a verde nas citações).

CAMPOS, Jorge (estudio preliminar y edición), Biblioteca de Autores Españoles, Obras Completas de Don Serafín Estébanez Calderón, Madrid, Ediciones Atlas, 1955, pgs. 114-115 (a azul nas citações).

Imagem: A zona de combate na actualidade. Fotografia aérea extraída do programa Google Earth. É visível, ao centro, o forte de la Concepción, que esteve na origem do combate. Para nascente fica Aldea del Obispo, e para poente, Vale da Mula. A linha amarela marca a fronteira.

Rescaldo de uma operação militar – as baixas detalhadas de uma força de cavalaria no combate de 2 de Janeiro de 1664

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Não é muito frequente encontrar documentos que refiram as baixas detalhadas sofridas por uma força militar. Quando escrevo detalhadas, quero dizer: incluindo todos os pormenores, desde o nome de cada militar até ao número exacto de cavalos feridos e mortos. Habitualmente, as relações impressas limitavam-se a enumerar os mortos, feridos e capturados e a destacar os elementos mais importantes da hierarquia militar, membros da nobreza e outros oficiais que caíam em alguma daquelas circunstâncias. Era tudo o que o público curioso das novidades da guerra necessitava saber.

Por este motivo, o relatório que foi enviado ao Conselho de Guerra, em anexo a uma carta do Conde de São João da Pesqueira, governador das armas da província de Trás-os-Montes, é um documento pouco vulgar. Não que fosse necessariamente raro na época, pelo menos no seio de um exército provincial, a circulação de informação deste teor. Contudo, já não era tão frequente que transcendesse e esfera interna de uma província para subir até ao Conselho de Guerra – daí os poucos casos de sobrevivência de documentos com este grau de detalhe. No caso que irei apresentar, a lista de baixas terá servido de argumento para justificar o pedido urgente de reforços para a província de Trás-os-Montes, e por isso foi anexada à carta do governador das armas.

Na carta, o Conde de São João lamenta a falta de cavalaria na província de Trás-os-Montes, devido ao trabalho que tiveram na campanha do Minho e na ocasião do recontro da Beira; solicitava que fosse ordenado a Pedro César de Meneses, general da cavalaria de Entre-Douro-e-Minho, que levantasse gente para formar as tropas; solicitava o envio de dinheiro para que ele, Conde de São João, pudesse comprar 100 cavalos, ainda que em Aveiro ou Coimbra, sem embargo de estar proibido. E pedia, por fim, que o Rei o autorizasse a fazer recolher a a cavalaria de Trás-os-Montes aos seus quartéis (de Inverno).

Em anexo, envia a lista das baixas sofridas na ocasião do socorro à Beira, onde morreu o capitão de couraças João Correia Carneiro, que servia há 23 anos, no decurso dos quais foi ferido inúmeras vezes e mereceu contínuos louvores. Tinha recebido 60.000 réis de tença e o hábito de Cristo. Sobreviveram-lhe duas irmãs, sua mãe e seu pai, com poucos recursos financeiros, pelo que o Conde pedia que o Rei lhes fizesse ainda mais do que esta mercê, “porque com a honra que se faz aos mortos, se premeiam também os vivos” [excerto da carta do Conde de São João de 10 de Janeiro de 1664].

O Conselho de Guerra emitiu parecer favorável  a que se remetesse o máximo de dinheiro possível para que se refizesse a cavalaria, apontando apenas o reparo de se fazer a remonta em Aveiro e Coimbra, pois era de crer que esta mesma falta de cavalos se acharia para as tropas da província da Beira, e que a cavalaria se devia remediar com cavalos de ambas as províncias, Trás-os-Montes e Beira. Acrescentou o Conselho de Guerra que não se devia mandar recolher a cavalaria de Trás-os-Montes aos quartéis sem primeiro escutar os governadores das armas da Beira e de Entre-Douro-e-Minho.

O documento, vertido para português corrente, é apresentado aqui. No próximo artigo será contextualizado, isto é, será feita a descrição do combate onde foram sofridas as baixas que a relação pormenoriza.

Lista dos soldados que morreram em a ocasião de dois de Janeiro e dos feridos, cavalos mortos e cavalos feridos

4 soldados mortos da companhia do General da Artilharia [Domingos da Ponte, o Galego]: Luís Furtado, Francisco Correia, João Carvalho e João Esteves.

6 soldados feridos: os cabos de esquadra João Rodrigues, António Carneiro e Domingos Fernandes Serra, e os soldados Luís Machado, Manuel Ribeiro e António Vaz.

9 cavalos mortos e perdidos: os de João Rodrigues, João Carneiro, Luís Machado, Luís Furtado, Domingos Fernandes Arnelhe, Francisco Correia, João Esteves, António Vaz e Tomé Gonçalves.

2 cavalos feridos: os do tenente e de Domingos Fernandes Jorna.

8 soldados mortos da companhia de João Correia Carneiro: o capitão, Domingos Gonçalves Brilho, António Jorge, Domingos Fernandes, Fernão da Guerra, João Malheiro, Domingos João, Gabriel de Oliveira.

12 soldados feridos: Pedro Gonçalves Brandim, António Rodrigues da Rosa, Francisco Caramona, Marcos Rodrigues, João Carrilho, Domingos Pires Machado, Domingos de Melo, Inácio Caramona, Luís de Castro, João Baía, Augusto Mendes, Matias Rodrigues.

8 cavalos mortos: os de João Carrilho, João Malheiro, Domingos Fernandes, Matias Rodrigues, Pedro Gonçalves Brandim, Gabriel de Oliveira, Domingos João, Francisco Caramona.

6 cavalos feridos: os de António Moniz, Manuel Vaz, António Jorge, o do alferes, Baltasar Lopes, e o cavalo das marchas do capitão.

3 soldados mortos da companhia de João Cardoso Pissarro: Domingos Fernandes, o cabo de esquadra Sebastião Pereira, Amaro de Melo.

4 soldados feridos: o capitão vendado [é assim designado porque ficou cego em resultado dos ferimentos], Francisco Sarmento, Domingos Vaz, Domingos de Barros.

7 cavalos mortos: o do capitão vendado, o do cabo Sebastião Pereira, o de Amaro de Melo, Domingos Fernandes, Francisco Sarmento, Domingos Vaz, Gaspar Gonçalves.

3 cavalos feridos: os de Manuel de Almeida, Pedro Moreno e Francisco da Pasta.

6 soldados mortos da companhia de João Pinto Cardoso: Gonçalo Afonso, João Gonçalves, o ferrador, Domingos Fernandes, Francisco de Castro, João Alvarez.

10 soldados feridos: o cabo de esquadra António de Mesquita, Pascoal de Queiroga, Marcos Luís, Inácio de Gouveia, António de Mesquita Fonte Longa, Serafino de Castro, Luís de Sá, Belchior Gonçalves, o trombeta, e António Guedes (prisioneiro).

14 cavalos mortos: de António Guedes, Gonçalo Afonso, Domingos Fernandes, João Alvarez, Francisco de Castro, Gregório de Morais, João Moniz Roalde, Gaspar de Quiroga, Marcos Luís, João Gonçalves, Inácio de Gouveia, Gonçalo de Magalhães, Fernão Pereira, Serafino de Castro.

Esta companhia não tem cavalos feridos.

9 soldados mortos da companhia do capitão Baltasar Freire: Domingos Lopes, Baltasar Machado, o cabo de esquadra Manuel Carvalho, Pedro Francisco, Gonçalo Pereira, Filipe João, António Gonçalves Chaves, António Gonçalves Infante, Rui de Niza.

6 soldados feridos: António Moniz França, Gonçalo Lobo, Domingos Correia, Jerónimo da Mesquita, Bartolomeu Moreira, Santiago Ferreira.

11 cavalos mortos: de Domingos Lopes, Baltasar Machado, Manuel Carvalho, Pedro Lourenço, Filipe João, António Gonçalves Chaves, António Gonçalves Infante, António Moniz França, Domingos Correia, Bartolomeu Moreira, Gonçalo Pereira.

4 cavalos feridos: o de Rui de Niza, Francisco Rodrigues Tronco, Silvestre Teixeira, Santiago Ferreira.

4 soldados mortos da companhia de Fernão Pinto da Mesquita: o furriel Domingos Cabral, Luís do Rego, João da Costa, Duarte Ferreira.

7 soldados feridos: o alferes Arnelgito, António Navais, João Gomes, o tenente Manuel Pereira, António Pegãos, Pedro Gonçalves, João Godinho.

12 cavalos mortos: os do tenente, do alferes, do furriel, de João Cabral, Luís do Rego, Duarte Pereira, Francisco Alvarez, João da Costa, Filipe Gonçalves, Diogo Pimentel, Pedro Moniz, Manuel Navais.

3 cavalos feridos: o de António Borges, Diogo Gomes e Mateus Rodrigues.

Cavalos mortos: 61

Cavalos feridos: 18

Soldados mortos: 34

Soldados feridos: 45

Fonte: Lista dos Soldadoz q morrerão em a occazião de dous de janeiro e dos feridoz cauallos mortoz e Cauallos feridoz [lista enviada por Domingos da Ponte Galego, tenente-general da cavalaria e general da artilharia ad honorem], anexa à carta do Conde de São de João de 10 de Janeiro de 1664, por sua vez anexa à consulta de 20 de Janeiro; ANTT, CG, Consultas, maço 24, caixa 88.

Imagem: “Combate de cavalaria”, Sebastian Vrancx.

Uma força de socorro de Trás-os-Montes para a Beira, Abril de 1663

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Era frequente proceder-se ao envio de forças de socorro de uma província a outra, principalmente após o aumento de intensidade do conflito a partir de 1659. Beira, Trás-os-Montes e Entre-Douro-e-Minho tinham exércitos provinciais mais reduzidos do que o Alentejo, de modo que toda a entreajuda era necessária quando havia informação de que o inimigo movimentava forças importantes na fronteira. O exemplo que aqui se apresenta é um dos vários registos documentais que apresenta a relação detalhada de um desses contingentes de reforço. Trata-se de uma relação de 25 de Abril de 1663, anexa a uma carta de 26 do mesmo mês, enviada ao Conselho de Guerra pelo Conde de São João da Pesqueira, governador das armas de Trás os Montes. Foi vista na consulta de 4 de Maio de 1663 (ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, maço 23): “Relação da infanteria, e caualleria auxiliares [e] pagos que tem mandado para a Torre de Moncorvo para passar a Prouincia da Beira e do que ao todo importou o pagamento de hum mez, que se lhe fez dos coatro contos, quinhentos, e nouenta mil reis, que uierão da Cidade do Porto“.

Infantaria

Oficiais da 1ª plana do terço do mestre de campo Belchior Pinto Cardoso: 1 sargento-mor e 2 ajudantes (o mestre de campo não acompanhou a unidade; o comando do terço foi confiado ao sargento-mor).

Oficiais de 10 companhias, cada uma com capitão com seu pajem, alferes, sargento e tambor, com desconto de 30 rações de pão de munição: 5 oficiais por companhia (como era norma no período, contabilizavam-se como “oficiais” todos os integrantes da 1ª plana, incluindo os pajens – era um procedimento administrativo, pelo que há que ter algum cuidado ao calcular o rácio oficiais/soldados das unidades, devido à designação muito abrangente das listas no que respeita aos primeiros).

600 soldados destas 10 companhias, a meia-paga de 1 mês a cada, com desconto de pão de munição (a meia-paga deve-se ao facto de serem auxiliares): 60 soldados por companhia.

200 infantes, com seus oficiais, a quem se paga por inteiro 1 mês, com desconto, etc. (a lista não estipula o total de companhias; em todo o caso, tratava-se de tropas pagas, pelo que recebiam o soldo por inteiro): 26 oficiais, 200 soldados – note-se o elevado rácio de elementos da primeira plana, os “oficiais”, em relação aos soldados.

Cavalaria

Companhia de cavalos paga do capitão Simão Pinto, 6 oficiais da 1ª plana, com desconto de pão de munição e cevada a 120 rs o alqueire (pão de munição a 12 rs) e 200 rs da contribuição da arca; e 50 soldados, com a vantagem de 4 cabos de esquadra, com desconto das munições (por “vantagem” entenda-se a diferença entre o soldo de um soldado e a do cabo de esquadra. Sobre o “contrato e arca” da cavalaria será publicado um artigo em breve).

Companhia de cavalos paga do capitão António de Sousa Pereira, 6 oficiais da 1ª plana, com desconto, etc, e 35 soldados, com vantagem dos cabos de esquadra; não se paga a arca e contrato, por ser feita agora de novo, e não se lhe dever.

Companhia de cavalos auxiliares do capitão Baltazar Carvalho, (o capitão é pago), 5 oficiais da 1ª plana (as companhias de auxiliares não tinham alferes) e 35 soldados (recebiam mensalmente metade do soldo de um soldado de cavalos pago, e descontavam o que recebiam de munição).

Companhia de cavalos auxiliares do capitão António Carneiro da Costa, (o capitão é pago), 5 oficiais da 1ª plana e 40 soldados (a meio-soldo dos pagos, etc.).

Companhia de cavalos auxiliares do capitão Gaspar da Fonseca Borges, que é pago; 5 oficiais da 1ª plana e 45 soldados (a meio-soldo, etc.).

TOTAIS:

Terço de auxiliares: 53 oficiais e 600 soldados.

Infantaria paga: 26 oficiais e 200 soldados.

Cavalaria paga: 12 oficiais e 85 soldados.

Cavalaria de auxiliares: 15 oficiais e 120 soldados.

Ao todo, o envio desta força de 106 oficiais e 1.005 soldados custou um total de 1.574.285 réis.

Imagem: Capacete de cavalaria do período da Guerra da Restauração. Este capacete de fabrico português era uma “peça de munição” barata, distribuída aos soldados das companhias de cavalos. O exemplar apresentado encontra-se bastante danificado, faltando-lhe as protecções laterais que cobriam parcialmente as orelhas e parte do rosto do combatente. Museu Militar de Lisboa. Foto do Comandante Augusto Salgado.

Uma família em armas – os César de Meneses

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A figura controversa de Sebastião César de Meneses é bem conhecida dos estudiosos do século XVII português. Doutor em Direito Canónico, ligado à Inquisição desde 1626 (será Inquisidor Geral em 1663), foi Conselheiro de Estado de Filipe IV e, após 1640, de D. João IV. O ziguezague político foi frequente na sua carreira: Bispo do Porto, de Coimbra e de Braga depois da Restauração, esteve preso entre 1654 e 1656, acusado de servir os interesses de Filipe IV. Reabilitado pela Rainha regente D. Luísa de Gusmão, virou-se contra ela mais tarde, em 1662, ao apoiar o golpe palaciano de D. Afonso VI e alinhar com a facção liderada pelo 3º Conde de Castelo Melhor. Acabou por cair em desgraça em 1663, quando o exército de D. Juan José de Áustria conquistou Évora, cidade onde residia e era Inquisidor Geral. Em 1669 perdeu todos os cargos eclesiásticos que detinha, morrendo três anos depois. A sua obra marcante foi o tratado de teoria política Summa Politica (1649-50).

Não é deste eminente clérigo e estadista que o presente artigo trata, apesar da introdução ter sido dedicada ao membro mais famoso de uma família que também se distinguiu no campo das armas. Os irmãos e sobrinhos de Sebastião César de Menezes serviram com distinção durante a Guerra da Restauração, tendo alguns deles chegado a atingir postos e cargos de importância. Aliás, o progenitor, Vasco Fernandes César, fora capitão de cavalos na Flandres, “com muito boa opinião“, segundo o Conde de Ericeira (História de Portugal Restaurado, Porto, Civilização, 1945, vol. I, pg. 331).

Luís César de Meneses, irmão de Sebastião César e de Pedro César, era o mais velho dos três. Sucedeu a seu pai e foi alcaide-mor de Alenquer, comendador de Lomar e de Rio Frio, e titular do ofício de Provedor dos Armazéns e Armadas, o qual trocou pelo de Alferes Mor do Reino no reinado de D. Afonso VI (um cargo honorífico, que lhe garantia uma renda anual mais elevada que o anterior). Casou com D. Vicência Henriques, filha do Monteiro Mor e Conselheiro de Estado Manuel de Melo, da qual teve Vasco Fernandes César, Pedro César de Meneses e D. Guiomar Henriques. Faleceu em 1666.

Pedro César de Meneses (pai) era irmão de Luís César e de Sebastião César. Capitão-general de Angola em 1639, foi membro do Conselho de Guerra durante a Guerra da Restauração. Recebeu em 1659 a comenda de S. Salvador de Minhotães. Casou com a sobrinha, D. Guiomar Henriques, filha do seu irmão Luís César. Quando ainda servia nas fileiras do exército da monarquia dual, teve em Castela um filho bastardo, ao qual também chamou Pedro César (veja-se a última entrada deste artigo). Faleceu em 1666.

Vasco Fernandes César, filho primogénito de Luís César, serviu no exército do Alentejo. Morreu em 1659, na sequência de ferimentos recebidos durante o cerco de Badajoz, no ano anterior.

Pedro César de Meneses, outro filho de Luís César, sucedeu a seu pai na casa familiar. Durante a Guerra da Restauração, ocupou vários postos no exército do Alentejo. Serviu como general da cavalaria nos exércitos das províncias de Entre-Douro-e-Minho e de Trás-os-Montes. Após a guerra, foi nomeado governador e capitão-general de Angola, mas não chegou a ocupar o cargo, pois morreu num naufrágio a 40 léguas da costa angolana. Nunca casou, mas teve vários filhos ilegítimos: de Catarina de Jour, filha de um mercador francês, teve três filhos, e de uma mulher do Minho, duas filhas. À excepção do filho mais velho, que morreu ainda criança, todos seguiram a vida monástica.

Pedro César de Meneses, filho ilegítimo de Pedro César, nascido em Castela, foi capitão de cavalos, comissário geral da cavalaria e mestre de campo de um terço de infantaria no exército do Alentejo. Após a Guerra da Restauração, foi nomeado governador e capitão-general do Maranhão. Morreu solteiro, no Brasil.

Bibliografia:

ALBUQUERQUE, Martim de, “Para uma Teoria Política do Barroco em Portugal. A Summa Politica de Sebastião César de Meneses (1649-1650)”, in Estudos de Cultura Portuguesa, 2º vol., Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2000, pgs. 355-442.

SOUSA, D. António Caetano de, História Genealógica da Casa Real Portuguesa, Tomo V, Coimbra, Atlântida Livraria Editora, 1948, p. 174-176.

Imagem: Combate entre infantaria e cavalaria. Reconstituição histórica, período da Guerra Civil Inglesa, Kelmarsh Hall, 2008.

O destino dos inválidos

O militar que recebia um ferimento grave e ficava impossibilitado exercer qualquer ofício podia passar o resto da vida na maior das misérias. A invalidez era, na maior parte dos casos, causada pela amputação de um membro ou, pior ainda, pela cegueira ou por uma incapacidade motriz mais extensa. Sem qualquer tipo de assistência, restava aos militares inválidos a atribuição de uma mercê régia que minorasse financeiramente, por pouco que fosse, a existência futura. A qualidade social da pessoa em causa e o serviço prestado à Coroa influenciavam a decisão sobre a quantia a atribuir como pensão e a sua extensão no tempo. As petições eram enviadas ao Conselho de Guerra, o qual emitia um parecer que depois era levado ao Rei (ou Rainha regente, entre 1656 e 1662) para despacho.

Se a invalidez ainda permitisse o desempenho de qualquer tarefa auxiliar, o ex-militar poderia ficar adstrito a um forte ou praça militar, prestando o serviço para o qual fosse capaz, recebendo em troca a pensão. Um destes casos foi o de Sebastião Lopes, natural de Távora, comarca de Pinhel, o qual durante 20 anos servira como soldado de infantaria, quer na sua província de origem, a Beira, quer nas de Entre-Douro-e-Minho, Trás-os-Montes e Alentejo. Portanto, em todas as fronteiras de guerra. Foi precisamente em 1665 que, tendo a sua unidade sido enviada como reforço ao exército de Entre-Douro-e-Minho, foi gravemente ferido. Conforme escreveu na sua petição, participou com a sua companhia no cerco de Lapela, tendo o inimigo quebrado a sua perna com uma bala de artilharia. Remediou-se com uma perna de pau, mas gastou tudo quanto tinha na cura, caindo então na maior pobreza e miséria. Pedia ao Conselho de Guerra lhe fosse concedida a mercê de dois tostões por dia em qualquer praça ou forte do partido de Riba Coa (a província da Beira estava dividida em dois “partidos”, ou distritos militares), “onde apoiado na muralha se oferece dar a vida por Sua Majestade, havendo ocasião”.

A petição foi apoiada pelo governador das armas de Riba Coa e pelo vedor geral (responsável pelas finanças e material de guerra) daquele partido, pelo facto de Sebastião Lopes ter servido sempre com valor. O Conselho de Guerra deu parecer favorável, mas apenas para a concessão de um tostão (ou seja, 100 réis) por dia, o que foi aprovado pelo Rei D. Afonso VI em Setembro de 1665. A quantia correspondia ao dobro do vencimento diário de um soldado pago de infantaria, mas não nos devemos iludir com a aparente generosidade: era uma quantia escassa face ao custo de vida do período, e as garantias que o ex-soldado a viesse a receber com pontualidade eram poucas. Refira-se que os soldados no activo recebiam uma ração diária de pão e carne, o que não era concedido, por regra, aos que estavam na situação de Sebastião Lopes.

Falhando a mercê régia, o ex-militar ficava reduzido à caridade, quase sempre a cargo das irmandades religiosas e providenciada aos indigentes de muitas cidades e vilas do reino.

Fonte documental: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1665, maço 25, caixa 91, consulta de 28 de Agosto de 1665.

Imagem: Peter Snayers, Combate de cavalaria.

Uma incursão em território inimigo – 1661, Outubro, 26

As incursões ou entradas em território inimigo, quer fossem executadas pelo exército português, quer pelo espanhol, foram uma característica marcante da Guerra da Restauração. Os anos iniciais do conflito alimentaram muitas publicações de teor propagandístico que difundiam os feitos de armas dos portugueses, ampliando muitas vezes os resultados práticos das acções. São uma preciosidade para a análise do quadro mental do período e não menos valiosos como documentos no que concerne à História Militar.

As Relações e outros escritos panegíricos são dados à estampa com menos frequência a partir da segunda metade da década de 40. Só na etapa final da guerra, com a publicação periódica (mensal) do Mercúrio Português, da responsabilidade de António de Sousa de Macedo, voltam a espalhar-se com alguma regularidade os ecos dos feitos portugueses. Todavia, os relatórios enviados pelos comandantes operacionais para o Conselho de Guerra dão conta de acções que, em muitos casos, permaneceram desconhecidas do grande público. O fito principal centrava-se habitualmente na pilhagem de gado e haveres das populações raianas, mas também podiam ser concebidas para desgastar o dispositivo inimigo na fronteira e adestrar as próprias forças militares na arte da guerra. Deixo aqui a descrição de uma dessas operações.

Em 26 de Outubro de 1661 o governador das armas da província de Trás-os-Montes, D. Rodrigo de Castro, Conde de Mesquitela, e João de Melo Feio, governador das armas do partido (distrito militar, em termos modernos) de Penamacor, província da Beira, encontraram-se no Sabugal. No princípio do mês tinham recebido uma carta da Rainha regente, ordenando que unissem parte das suas forças e fizessem uma entrada no reino inimigo. Deviam dirigir-se às vilas de Campo e Pozuelo, onde estavam alojadas companhias de cavalaria da Catalunha, e atacá-las a fim de destruir ou capturar aquelas unidades militares. Se isso não fosse conseguido, pelo menos deveriam saquear as localidades, distribuindo o produto da pilhagem pelos soldados, e ao menos tentar levar o inimigo a pelejar.

Os dois cabos de guerra partiram com a força militar combinada nesse mesmo dia 26 de Outubro, desejosos de fazer coisa de utilidade e reputação para as armas reais. Marcharam com tempo seco e sereno, atravessando o rio Côa na passagem de Dois Rios. O efectivo total era de 2.500 infantes e 760 cavaleiros, distribuído pelas seguintes unidades:

– Dois terços pagos (dos mestres de campo Diogo Gomes de Figueiredo (filho) e Bartolomeu de Azevedo Coutinho).

– Três terços de auxiliares (da comarca da Guarda, sob o comando do mestre de campo Cristóvão de Sá de Mendonça; da comarca de Viseu, do mestre de campo João Castanheira de Moura; e da comarca de Castelo Branco, a cargo do sargento-mor Manuel Fernandes Laranjo).

Terço de volantes da Guarda, comandado pelo mestre de campo Francisco Banha de Sequeira.

Dezasseis companhias de cavalaria, sob o comando do governador da cavalaria, o francês Achim de Tamericurt (um veterano da Guerra da Restauração, já com 20 anos de serviço em Portugal), com o tenente-general João da Silva de Sousa como segundo-comandante (as companhias de ambos eram comandadas pelos respectivos tenentes, Pedro Palho e Manuel Francisco). As restantes companhias eram as dos comissários gerais D. Martinho de Ribeira e D. António Maldonado, e as dos capitães Vasco Gomes de Melo, Baltasar de Melo de Sá, António Mendes de Abreu, Paulo de Noronha, António Estácio da Costa, Manuel de Sousa de Refóios, Manuel Nabais, Paulo Homem Teles, André Tavares de Mendonça, Manuel Martins, António Veloso e Luís da Cunha.

Já em território hostil, as condições climatéricas alteraram-se. As chuvas e o facto da força ter sido detectada pelo inimigo impediram que se obrasse algo mais do que o saque de algumas aldeias. Os guias recomendavam a retirada, para evitar o risco de não se poder atravessar de novo o Côa. O Conde de Mesquitela escreveu a este respeito que

“Aquela noite de 28 alojámos junto a Villas Buenas que, pela havermos entrado e queimado há muitos anos, e nos pedirem misericórdia regalando-nos com os mimos da terra, nos não quisémos ocupar em empreendê-la.”

A 29 começaram a avistar o inimigo que marchava na retaguarda do exército, e constava de cavalaria da Catalunha e da Borgonha (28 companhias organizadas em 14 batalhões – formações tácticas), e um terço de alemães governado por um sargento-mor, com 600 soldados. Entraram os portugueses na vila de Rezalles

“(…) donde também nos renderam a vassalagem, dando-nos dos seus refrescos, e suposto que houve soldados cobiçosos que desejaram que a mandássemos assaltar, como o inimigo vinha na nossa retaguarda nos pareceu que não convinha desfazer a forma em que marchávamos.”

A meia légua de Rezalles dispôs-se o inimigo a combater. Os batedores começaram a disparar e travou-se uma escaramuça, conseguindo os portugueses rechaçar sempre os oponentes. Prosseguiu então a marcha até se encontrar uma zona de campo aberto, onde tornou o inimigo a dar outra investida e com esta se resolveu dar batalha.

O terço de alemães ocupou um posto fortíssimo no sopé de uma elevação rochosa, de onde causava grande dano nas forças portuguesas, flanqueando a infantaria e a cavalaria. Com a cavalaria inimiga bem formada, começaram as escaramuças. Os comandantes portugueses decidiram que seria conveniente desalojar primeiro a infantaria inimiga da posição que ocupava e reforçar a cavalaria com mangas de mosqueteiros, um dispositivo táctico muito comum. O terço do mestre de campo Bartolomeu de Azevedo foi mandado investir por uma parte do monte rochoso, e pelo outro lado evoluiu o terço governado pelo sargento-mor Laranjo e um outro terço. Os alemães já entretanto tinham sido reforçados por muitos civis dos lugares da Serra da Gata que se lhes foram juntando.

No dizer do Conde de Mesquitela, os terços portugueses obraram maravilhas, “porque recebendo as cargas de mosquetaria dos inimigos sem lhe tirarem tiro [ou seja, sem ripostarem] os investiram, subindo pelo rochedo com tão extraordinário valor que a picaços [à força de pique] e a cutiladas mataram os mais deles, fazendo-lhe largar o posto, e as armas, com as vidas.”

Também os destacamentos de mosqueteiros que se constituíram a partir do terço do mestre de campo Diogo Gomes de Figueiredo para reforçar a cavalaria “obraram maravilhas”. Eram comandados pelos capitães João de Sampaio, António Rodrigues Pereira, Paulo Correa, e pelo alferes do mestre de campo, Manuel Homem Corte Real.

O governador da cavalaria Achim de Tamericurt combatia na vanguarda com os comissários gerais, ficando a reserva da cavalaria a cargo do tenente-general João da Silva de Sousa.

Finalmente os alemães começaram a ceder no combate corpo-a-corpo com a infantaria portuguesa. A restante força inimiga, vendo a formação da sua infantaria perder coesão e começar a desfazer-se, virou costas. Foi então que se lançou em sua perseguição a cavalaria portuguesa, reserva incluída, até perto de Rezalles.

Foram tomados 200 cavalos ao inimigo, tendo sido aprisionados 9 capitães (dos quais morreram três, de ferimentos, em pouco tempo), 2 ajudantes e 1 tenente comandante da companhia da guarda do Duque de Osuna, bem como grande número de soldados, com a captura de mais de 300 armas. Dos portugueses só houve 3 mortos e 10 ou 12 feridos, entre os quais o ajudante de cavalaria Pedro Fernandes Magro.

Todos os militares obraram com valor, pedindo o Conde de Mesquitela que a Rainha mandasse agradecer aos oficiais por carta de sua real mão, em especial ao governador da cavalaria Achim de Tamericurt.

Fonte: carta do Conde de Mesquitela, escrita em Penamacor em 31 de Outubro de 1661 e anexa à consulta do Conselho de Guerra de 7 de Novembro do mesmo ano. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Conselho de Guerra, Consultas, 1661, maço 21-A, caixa 79.

Imagem: Infantaria em marcha. Reconstituição histórica do período da Guerra Civil Inglesa, Kellmarsh Hall, 2007. Foto do autor.