A ascensão ao posto de sargento-mor de batalha: dois pedidos de 1664

Gerard_ter_Borch_-_An_Officer_dictating_a_Letter_c1655-58 National gallery London_X

O contexto da criação do posto de sargento-mor de batalha foi aqui apresentado num artigo, há cerca de três anos. Recomendo a sua leitura prévia, a fim de se entender a polémica da introdução do posto no exército português em 1663.

Polémicas à parte, o posto logo se tornou muito apetecível por oficiais desejosos de acrescentamento – ou seja, a obtenção de uma patente que os aproximasse do topo da hierarquia militar, não só em termos remuneratórios e de importância pessoal e social, como da própria integração no núcleo restrito da elite militar provincial. Todavia, o crivo era apertado. Os pedidos endereçados ao Conselho de Guerra não contemplavam a promoção a sargento-mor de batalha como uma mera recompensa, como se fazia, por exemplo, com o posto de tenente-general da artilharia, muitas vezes atribuído ad honorem. E mesmo militares com uma longa lista de serviços prestados viam recusados os seus requerimentos.

Dois desses casos foram tratados numa consulta do Conselho de Guerra de 18 de Março de 1664: as petições do tenente-general da cavalaria D. Martinho da Ribeira e do mestre de campo Manuel Ferreira Rebelo.

Na petição de D. Martinho, o requerente referia que servia desde a Aclamação de D. João IV como soldado, capitão de infantaria, de cavalos, comissário geral e tenente-general da cavalaria, tendo procedido sempre com grande satisfação dos seus generais, entrando em muitos combates e de todas as ocasiões recebendo cartas de Sua Majestade em agradecimento dos seus bons procedimentos, constando também das escritas pelos generais ao Rei o seu préstimo e valor. Tinha sido em muitas ocasiões gravemente ferido, tendo ficado prisioneiro e com um braço quebrado na retirada que o general da cavalaria André de Albuquerque tinha feito na ocasião em que o Duque de San Germán fora contra a sua cavalaria, armar à que assistia em Campo Maior e Elvas; e também, quando esta praça fora sitiada por D. Luís de Haro, saindo a cavalaria portuguesa a tomar quartéis e esperando que se juntasse o exército de socorro, fora D. Martinho trespassado com quatro estocadas. Depois, em todo o tempo que já assistia na Beira, ia sendo notório ao Rei o seu procedimento em tantas ocasiões, e porque estas eram de todo presentes a Sua Majestade e seus ministros, considerava que não podia haver causa para que Sua Majestade deixasse de o acomodar no que mais fosse de seu serviço, pois hoje está sem ocupação, por haver entregue a sua companhia (como Vossa Majestade mandou) ao tenente-general Gomes Freire; havendo ele, suplicante, servido de tenente-general de ambos os partidos da Beira, etendo no de Penamacor a sua casa e a sua companhia, sucedendo nela ao tenente-general João da Silva de Sousa (que era então sargento-mor de batalha na província do Alentejo). E rematava a petição lamentando-se, pois via ele suplicante que os outros se acrescentaram, diminuindo-lhe a ele o posto, havendo gastado nele tudo o que tinha de seu nos socorros a que continuamente assistia, tendo assitido no ano de 1663 na província da Beira, na do Minho, no sítio de Lapela e na do Alentejo na ocasião da batalha e na recuperação de Évora. Pedia assim ao Rei o posto de sargento-mor de batalha da província da Beira, pois não necessitava menos que os outros deste posto, ou em alternativa, do soldo de tenente-general da cavalaria para o Alentejo, onde pretendia servir.

O Conselho, embora tenha considerado que o requerente era muito merecedor de mercê régia, declarava não o poder provir no posto sem ordem expressa de Sua Majestade, por ser um acrescentamento novo.

Nos pareceres dos conselheiros, o Conde de Ericeira concordava com a opinião dos outros membros do Conselho, excepto no que tocava ao acrescentamento de posto, pois considerava que desde a sua primeira criação no exército do Alentejo dera parecer que não convinha que os houvesse, pelas razões que naquele tempo tinha apresentado a Sua Majestade.

O Conselho acrescentou que, estando para rubricar esta consulta, lhe tinha sido apresentada outra petição de teor semelhante, que foi também incluída.

Tratava-se da petição do mestre de campo Manuel Ferreira Rebelo, que servia há 26 anos nas guerras do Brasil, Alentejo e Beira, na ocupação de soldado, cabo de esquadra, sargento, alferes, capitão de infantaria, sargento-mor, tenente-general da artilharia, tenente de mestre de campo general e, naquele momento, de mestre de campo. Participara sempre com particular acordo e valor em todas as ocasiões, como fora na batalha do Canal (Ameixial), em que ele fora dos primeiros mestres de campo que tinham entrado a pelejar, e particular instrumento de lograrem as armas de Sua Majestade uma tão grande vitória. E depois na recuperação de Évora, tendo passado posteriormente à província da Beira, onde teve o sucesso que, entrando por cabo de um troço de gente em Castela, queimou e saqueou o lugar da Redonda e a vila de Ponteguinaldo, que tinha mais de 400 vizinhos, entrando-lhe o forte à força de armas, onde havia ido um exército ociosamente. E no presente momento se achava na Corte em serviço de Sua Majestade, procurando particulares da província da Beira, como tinha feito havia dois anos pela do Alentejo, diligências que os governadores das armas o encarregaram, por lhes constar do seu préstimo. E porque a tença de 40.000 réis que tinha na casa de Regalados não cobrava desde há em 3 anos; e uma capela que Sua Majestade lhe tinha feito mercê não lograva rendimento algum, e havendo um ano que servia de mestre de campo, não tinha cobrado mais que 23.000 réis de um mês de soldo para a jornada do Alentejo, com o que se achava impossibilitado de continuar ao serviço de Sua Majestade, por haver gastado nele toda a sua fazenda.

Também este requerente pedia o posto de sargento-mor de batalha da província da Beira, tendo-o já pedido a Pedro Jacques de Magalhães, governador das armas.

A ambos os casos respondeu o Rei, em 28 de Março de 1664, nos seguintes termos: Não há que tratar deste posto.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1664, maço 24, consulta de 18 de Março de 1664.

Imagem: Gerard Terborch, “Oficial ditando uma carta”, c. 1655-58, National Gallery, Londres.

Postos do exército português (22) – o sargento-mor de batalha

O posto de sargento-mor de batalha foi criado, no exército português, nos inícios de 1663, por insistência de D. Sancho Manuel de Vilhena, Conde de Vila Flor. Foi introduzido desde logo no exército do Alentejo, e os primeiros oficiais que para aquele posto se nomearam foram Diogo Gomes de Figueiredo e Bobadilha (filho) e João da Silva de Sousa.

D. Sancho Manuel argumentou, junto do Conselho de Guerra, a favor da criação do novo posto. A primeira razão que expôs foi a existência daquele posto nos exércitos do Imperador do Sacro Império, a cuja imitação, por se acharem grandes conveniências nestes postos, se tem criado nos de Castela (ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1663, maço 23, carta anexa à consulta de 20 de Fevereiro). A este respeito, recorde-se que ainda antes de 1653 o Marquês de Aytona tinha proposto a introdução do posto de sargento-maior de batalha nos exércitos de Espanha, com autoridade sobre todos os mestres de campo, seguindo uma solução idealizada na Flandres (MOLINET, Diego Gómez, El Ejército de la Monarquía Hispánica a través de la Tratadística Militar, 1648-1700, Madrid, Ministerio de Defensa, 2007, pg.80; o tratado era o seguinte: Discurso Militar proponense algunos inconvenientes de la Milicia destos tiempos y su reparo al Rey nuestro señor por el Marques de Aytona, Valencia, Bernardino Noguès, 1653).

Os motivos para a introdução do posto, porém, eram diferentes. Enquanto o tratadista espanhol procurava solucionar o problema da hierarquia entre os vários mestres de campo envolvidos numa operação, não considerando satisfatória a solução de os submeter ao comando de um general da artilharia ad honorem, já no caso português a questão era mais complexa. Neste caso concreto, tratou-se de  um ataque pessoal ao Conde de Schomberg, que o Conde de Vila Flor receava viesse a ser nomeado mestre de campo general do exército do Alentejo (como efectivamente o foi, por carta régia de 15 de Março de 1663). Na mesma carta em que fundamentava a criação do novo posto, D. Sancho Manuel escrevia: com este posto se escusa o de mestre de campo general, como se vê nos exércitos do Imperador [do Sacro Império], onde o não há, porque servindo os sargentos maiores de batalha às semanas, exercitam o mesmo posto estando às ordens dos generais do exército. Vila Flor não desejava ver Schomberg como seu subordinado no exército do Alentejo. De uma penada, procurou afastá-lo, através da dispensa do mestre de campo general.

Todavia, o resultado prático foi nulo e veio introduzir ainda maior complexidade na cadeia de comando. Não só continuou a existir o posto de mestre de campo general, como os sargentos-mores de batalha iriam ter funções semelhantes aos tenentes de mestre de campo general. Em teoria, um sargento-mor de batalha estaria directamente subordinado a um capitão-general ou tenente-general do exército, ou ao governador das armas – ou seja, ao comandante supremo de um exército provincial; mas na prática, acabava também por estar subordinado ao mestre de campo general.

Imagem: “A morte de Schomberg”. Gravura inglesa representando o fatídico episódio ocorrido na batalha de Boyne (12 de Julho de 1690), onde Schomberg, aos 75 anos, era o segundo-comandante do exército de Guilherme de Orange.