Regresso à “Passagem de Alcaraviça”

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A rematar o seu excelente artigo, o Sr. Santos Manoel interrogava-se sobre o destino do desafortunado sargento-mor da ordenança de Évora, João da Fonseca Barreto. Este oficial sobreviveu ao desaire, mas foi preso e julgado, tendo sido sentenciado em perda do cargo (note-se que, na ordenança, sargento-mor era um cargo que podia ser desempenhado por um militar com outra patente; o mesmo não se passava, contudo, entre as tropas pagas, onde sargento-mor era um posto). João da Fonseca Barreto foi substituído no cargo por João de Mesquita Pimentel, que era capitão-mor de Marvão, em 18 de Abril de 1648. (ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1650, maço 10, consulta de 2 de Agosto, confirmando a situação de João de Mesquita Pimentel.)

Imagem: Philips Wouwerman, “Ataque a um comboio”, meados do séc. XVII, Kunsthistorische Museum, Viena. Uma situação comum na fronteira durante a Guerra da Restauração, onde os comboios de carros e carroças transportando víveres, munições ou até dinheiro eram um alvo apetecido para os beligerantes de ambos os lados.

Postos do exército português (13) – o mestre de campo

Os mestres de campo ou são feitos por grande qualidade [fidalguia] ou por grandes serviços [desempenhados na guerra].

(carta de Matias de Albuquerque, Conde de Alegrete, 22 de Agosto de 1644, in Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI, publicadas e prefaciadas por P. M. Laranjo Coelho, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, vol. II, pgs. 57-58).

O posto de mestre de campo tinha grande prestígio. Ao tempo da Guerra da Restauração existia também nos exércitos espanhol e francês. Encontrava-se apenas na infantaria e correspondia ao posto de coronel, designação que em épocas posteriores iria substituir por completo a de mestre de campo. Em rigor, havia coronéis no exército português em simultâneo com mestres de campo, pois por tradição as grandes unidades da ordenança de Lisboa eram designadas regimentos (e não terços, embora este nome surja de vez em quando nos documentos, um pequeno erro gerado pelo hábito).

De facto, atendendo ao que exigiam as regras militares, reflectidas no projecto de Ordenanças Militares de 1643, para se ascender ao posto de mestre de campo era necessário ter servido durante 12 anos em cenário de guerra, dos quais 4 no posto de capitão. Desta conformidade estavam isentas as pessoas de qualidade e nobreza, o que na prática significava que os terços podiam por ser entregues a elementos da fidalguia sem a necessária experiência militar. Sobre o sargento-mor recaía então uma responsabilidade maior.

De qualquer modo, se exceptuarmos os primeiros anos da guerra, esta situação foi relativamente rara. Houve fidalgos que se revelaram bons mestres de campo. Ao posto ascenderam também vários soldados de fortuna, com tirocínio feito nos escalões inferiores, vários deles estrangeiros. Isto no exército pago, pois nos auxiliares e na ordenança era frequente o sargento-mor ter de desempenhar o comando efectivo do terço, dado o absentismo dos mestres de campo, ou a sua inexperiência militar.

O mestre de campo dispunha de um cavalo, se bem que houvesse quem preferisse desmontar e munir-se de espada e rodela, combatendo a pé no calor da refrega.

Imagem: Combate de infantaria. Recriação histórica da Guerra Civil Inglesa, Kelmarsh Hall, 2007. Foto do autor. Reorganizar o esquadrão de infantaria depois da confusão do choque era uma tarefa difícil, mesmo que se rompesse o contacto com alguma ordem. A maioria dos mestres de campo confiava na experiência dos seus sargentos-mores para esse fim.

Postos do exército português (12) – o sargento-mor

O sargento-mor era o segundo-comandante de um terço de infantaria. A designação do posto mudaria para major já no século XVIII, bem como as responsabilidades de comando. Na verdade, apesar de em alguns exércitos europeus – como o inglês, por exemplo – existir o posto de major, as atribuições daquele oficial eram então diferentes daquelas que viria a ter mais tarde, quando se tornaria comandante de um batalhão (e este passaria a ser uma sub-unidade do regimento). A respeito da evolução de sargento-mor para major, veja-se este artigo de Lagos Militar.

No período da Guerra da Restauração, o sargento-mor tinha funções muito técnicas, as quais já foram abordadas neste artigo. Vejamos o que dizia o projecto de Ordenanças Militares de 1643 a respeito deste posto:

Os cargos de sargentos-mores se hão-de prover em capitães de muita teórica, prática e valor, e quando se façam de terços já formados, se há-de procurar elegê-los dos mesmos capitães que neles houver; há-de ter dois ajudantes cada um, e ajudam aos mestres de campo imediatos a eles, no governo dos terços e a quem toca formá-los, receber as ordens e dá-las, e fazer que se observem todas as mais que devem guardar os oficiais e soldados de cada terço (…). (AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 62-63).

A necessidade de haver sargentos-mores experientes nos terços (experiência que podia faltar aos mestres de campo, ou por serem de recente promoção a partir de capitães de cavalos, ou por serem providos no posto devido à sua nobreza, mas sem conhecimento profundo da guerra viva) fazia com que a maioria destes oficiais fosse de origem plebeia. Eram chamados soldados de fortuna, isto é, profissionais das armas, e como tal podiam ser estrangeiros, ainda que súbditos do rei de Portugal. Alguns destacaram-se pela sua qualidade e competência, como os espanhóis Antonio Gallo (reformado em 1643, já idoso e com pouca saúde) e Antonio Sanchez del Pozo (que morreu em combate). Muitas vezes, os terços eram comandados pelos sargentos-mores, devido à ausência dos respectivos mestres de campo. Isto era mais frequene entre as forças milicianas de auxiliares e da ordenança.

É precisamente da obra Regimiento Militar de Antonio Gallo que se retira esta passagem:

El Sargento mayor traerà un baston de quatro palmos y medio, que es el terreno, que el soldado en escuadron ocupa de costado a costado, y le puede servir quando quisiere medir un terreno justo, y no es necessario que el baston tienga hierro, que no agravia al soldado, castigandole con el, que es su insignia. (pg. 28 v)

Já perto do final da Guerra da Restauração, um relatório inglês elogiava a competência e combatividade dos sargentos-mores portugueses. O elogio é de salientar, numa época em que a apreciação (ou depreciação) dos estrangeiros era condicionada por muitos preconceitos e algum desprezo.

Imagem: Infantaria em progressão. O controlo da formação no terreno era uma das tarefas do sargento-mor. Reconstituição histórica da Guerra Civil Inglesa, Kelmarsh Hall, 2007. Foto do autor.

Postos do exército português (11) – os ajudantes de sargento-mor e de comissário geral

Entramos aqui no terreno do que, à época, se designava por oficiais colaterais. Não existe um paralelo directo com a actualidade, a menos que queiramos ver nesta categoria de oficiais um ajudante de campo – algo que, neste escalão de comando, seria bastante invulgar (sargento-mor na infantaria e comissário geral na cavalaria corresponderiam, com alguma liberdade de aproximação, ao actual posto de major).

Tendo em consideração as necessidades dos postos de sargento-mor e de comissário geral, exigindo o comando e disposição no terreno das companhias, tornava-se necessária a colaboração de um – ou mais vulgarmente dois – ajudantes. Na infantaria existia uma hierarquia entre estes oficiais: o ajudante do número e o ajudante supranumerário. A raiz desta distinção estará relacionada com o facto do sargento-mor poder delegar funções num dos seus ajudantes quando tivesse de se ausentar do terço (conforme refere René Quatrefages na sua obra Los Tercios, Madrid, Servicio de Publicaciones del Estado Mayor del Ejército, 1983). Daí necessidade de se estabelecer uma hierarquia entre os ajudantes, para evitar situações de pouca clareza sobre quem teria a primazia numa situação de emergência em que o sargento-mor estivesse ausente ou incapacitado. A função habitual dos ajudantes era a distribuição das ordens pelos capitães, mas também colaboravam com o sargento-mor na demorada tarefa de preparar o esquadrão (formação táctica) a partir do terço. Ao posto de ajudante do número podiam ser promovidos os alferes de infantaria e os ajudantes supranumerários, e a este último posto os alferes de infantaria, dando sempre primazia ao da companhia do mestre de campo.

No caso da cavalaria não havia esta distinção. As funções dos ajudantes de comissário geral eram a de distribuir as ordens pelos capitães e a de auxiliar o comissário geral na disposição táctica dos batalhões. A promoção fazia-se a partir do posto de tenente de couraças ou de cavalos arcabuzeiros.

Imagem: Militares de meados do século XVII. Reconstituição histórica, Old Sarum. Foto do autor.

Infantaria portuguesa, década de 1650

Pormenores de um quadro atribuído ao pintor flamengo Dirk Stoop (1610-1686), patente no Museu da Cidade de Lisboa. Representa um cortejo (provavelmente régio) no Terreiro do Paço, saudado por uma pequena força militar. É plausível que a cena retratada se situe na  primeira metade da década de 50 do século XVII. Dirk Stoop trabalhou em Portugal durante os anos 50 e 60.

Na primeira imagem estão representados piqueiros sem armadura (piques secos; também se dizia picas secas, embora o termo pica fosse castelhano e Joane Mendes de Vasconcelos recomendasse a sua substituição pelo termo português).

Na segunda, a cavalo e à frente de uma fileira de mosqueteiros está um mestre de campo (embora também possa ser um sargento-mor, uma vez que este oficial também tinha direito a montada). No entanto, caso a força fosse oriunda da ordenança de Lisboa, o oficial não seria mestre de campo mas coronel, e em vez de terço, a unidade seria designada por regimento, por tradição. A propósito do posto de sargento-mor, veja-se esta nota num outro blogue de História Militar, o excelente “Lagos Militar”.

Na terceira e última imagem, igualmente à frente da fileira de mosqueteiros, está um sargento, reconhecível pela alabarda que servia como insígnia do seu posto, arma pessoal e instrumento para alinhar as fileiras.