Os capitães-mores nas fronteiras de guerra em 1645 – parte 2, províncias da Beira, Trás-os-Montes e Entre-Douro-e-Minho

Concluindo as listas dos capitães-mores e respectivos soldos (ou ausência deles), remetidas ao Conselho de Guerra em 1645, são agora apresentadas as respeitantes às províncias da Beira, Trás-os-Montes e Entre-Douro-e-Minho. A importância relativa de cada uma destas fronteiras de guerra pode ser observada através das listas: enquanto o Alentejo, cuja lista foi apresentada na primeira parte desta mini-série, incluía o mais extenso rol de capitães-mores remunerados, nas outras províncias os soldos eram desconhecidos ou não eram sequer auferidos pelos titulares dos cargos. Mais uma vez se recorda aqui que o capitão-mor era um cargo que podia ser desempenhado por alguém com uma patente militar já atribuída, conforme se pode ver nos quadros inclusos (basta clicar com o rato em cada uma das ligações para aceder ao respectivo ficheiro PDF).

CM Província da Beira 1645

CM Província de Trás os Montes 1645

CM Província de Entre Douro e Minho 1645

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1645, maço 5, Rellação das praças da Raya, das Prouincias de Alentejo. Beira. Tras os Montes. Entre Douro e Mynho, e do Reyno do Algarue, e nomes dos Capitães mores dellas, e os que uencem soldo e uencem a sua custa, proveniente da Contadoria Geral.

Imagem: “Soldados jogando cartas”, pintura de Simon Kick; fonte: http://www.wikigallery.org/wiki/painting_203085/Simon-Kick/Soldiers-at-Cards.

Regimento do Vedor Geral (29 de Agosto de 1645) – parte 10

65. Será o vedor geral sempre mui cuidadoso de ver ele mesmo se o pão de munição que se dá aos soldados é bom e bem pesado, conforme a obrigação dos assentistas, sem fiar esta diligência de outra pessoa alguma, e mandará fazer secretas informações nas azenhas onde se mói o trigo, se é bom, e se se mói alguma outra sorte de pão, e se onde se amassa e se coze, se faz algum engano em dano dos soldados, e remediá-lo-á, procedendo nisto com todo o rigor necessário, não admitindo pão que não seja da qualidade que se contratou, e as vezes que os assentistas nisto faltarem, mandará à sua custa fazer melhor pão para os soldados, por qualquer preço que custe, para que os assentistas saibam que nenhuma falta se lhes há-de dissimular nesta matéria, e assim o não ousem cometer.

66. E para q quando chegar o tempo de se fazerem estes assentos se saibam os preços em que se podem contratar, mandará fazer mui exactas informações do custo que pode fazer a manufactura do pão naquelas partes, para que quando se lhe peça esta notícia a possa dar ao certo.

67. E quando for tempo de fazer provisão de cevada e palha, não correndo por assentistas, se informará das partes donde há mais abundância, e donde a condução pode ser mais barata para que venha a custar menos. E saberá que pessoas há nas comarcas, que possam obrigar a dá-la, para que por todos os meios se consiga tê-la a cavalaria a bom preço.

68. Visitará muitas vezes os armazéns dos mantimentos, vendo se estão em boa forma e em partes onde se possam conservar sem corrupção, e fará que se gastem primeiro aqueles em que se pode temer a haja; e também visitará os armazéns das armas e munições (aonde não houver vedor da Artilharia), ordenando que a pólvora esteja com todo o resguardo necesário, e que as armas estejam limpas e bem tratadas, e que os piques se ponham em parte onde se não torçam, e que as ásteas deles se untem com óleo de linhaça ou com água de azevre [aloés], porque o bicho não entre com eles, e que as pistolas se repartam pela cavalaria de maneira que se não dêem a um mesmo soldado duas de diferente calibre, pelo embaraço que isto causa na ocasião de pelejar.

69. E na mesma forma visitará as mais vezes que tiver lugar os hospitais, ao menos da praça principal onde se achar, procurando ver se aos enfermos que estiverem neles lhes falta a cura e regalo que eu tenho mandado se lhes dê, e que por falta dele não padeçam; e que as mezinhas e o mais que se lhe mandar dar pelos médicos ou cirurgiões se lhes dê no tempo, e quando for mandado e receitado por eles, e me darei por bem servido de que não haja neste particular falta alguma, e havendo-a avisará ao governador das armas para que o remedeie.

70. E nenhum assentista ou almoxarife poderá comprar pão de munição, cevada ou palha a nenhum oficial ou soldado do exército, nem por si, nem por interposta pessoa, nem por outra qualquer via, e o que fizer o contrário provado ou achado, será privado do cargo sendo almoxarife, para o não poder mais haver, e o assentista, seu feitor ou procurador serão condenados em dois anos de África; e o oficial ou soldado que se achar que vendeu a cevada que se lhe dá para ração do cavalo, será pela primeira vez castigado com quinze dias de prisão e com três tratos de corda, e pela segunda em dois anos de galés; e as pessoas particulares que comprarem a cevada a pagarão a noveada, e serão castigados a arbítrio do governador das armas, e nas mesmas penas encorrerão os que comprarem aos soldados vestidos de munição ou armas.

71. E nenhum almoxarife poderá vender nem contratar nenhum género de mantimentos, pois os tem de seu recebimento, pelos danos que se deixam considerar, como trocas de bom por mau para satisfazer sua receita, e por outros muitos inconvenientes que resultam disso à minha fazenda, e o que o fizer se farão autos dele pelo auditor geral e se remeterão à Contadoria Geral desta cidade, para nela se ver em quanto ao dano que minha fazenda recebeu, e se dar o remédio, e daí se remeterá ao Conselho da Fazenda para que diga ao Conselho de Guerra para se proceder em conformidade.

72. O vedor geral não livrará, nem consentirá que se livre, nem o pagador geral dará nem entregará dinheiro a nenhum almoxarife para nenhum efeito, e ele pois tem quatro oficiais, os quais correm todas as fronteiras, pague o dinheiro que se despender nelas de minha fazenda demais que como este dinheiro se há-de distribuir com intervenção do vedor geral, como está disposto neste Regimento; e as compras de bastimentos e as conduções deles e mais coisas hão-de ser justificadas por ele, não convém que os oficiais de recebimento dos bastimentos os comprem e façam os preços deles, e a receita e despesa deles juntamente, e mando ao superintendente da Contadoria,e  aos contadores ela não levem em conta ao dito pagador e almoxarife o que despenderem noutra forma.

Fonte: Arquivo Histórico Militar, 1ª divisão, 2ª secção, caixa 3, nº 1.

Imagem: “O fidalgo e a sua companhia” (detalhe), pintura de Simon Kick.

Espionagem e traição na fronteira da Beira, 1651 – o caso do capitão João Cordeiro

Ao capitão de cavalos da ordenança João Cordeiro já foi feita referência a propósito do assalto à ponte de Alcântara. Nascido ou pelo menos criado em Segura, tido como guia experiente, o capitão perdeu-se quando conduzia a força que devia executar o ataque à praça raiana, resultando daí o atraso no início das operações. Em consequência, D. Sancho Manuel mandou-o prender. Mais tarde, esclarecido o caso, o oficial foi libertado.

Quanto a espionagem e contra-espionagem, recentemente foi trazido aqui um exemplo a partir de um documento coevo. O capitão João Cordeiro também esteve relacionado com este campo particular da guerra de fronteira. A tal ponto que aí ficou traçado o seu destino.

Em 15 de Maio de 1651, uma consulta do Conselho de Guerra tratava de um acontecimento ocorrido – presume-se – na praça de Segura. A falta da carta de D. Sancho Manuel, que a consulta apenas resume, não permite saber ao certo. O que se passou naquela distante fronteira foi considerado assunto grave: o governador das armas dava a conhecer a traição que um castelhano da Sarça [Zarza la Mayor] (que por via do capitão João Cordeiro lhe dava alguns avisos, que se lhe pagavam com pontualidade) cometeu, matando o mesmo capitão João Cordeiro. Sendo o caso que, vindo-se este castelhano a descobrir com os seus oficiais [ou seja, a revelar o seu papel de espião], eles o persuadiram a que matasse o capitão João Cordeiro, como fez, e vindo na noite de 4 do presente comboiado pelas tropas inimigas, chegara à porta do capitão João Cordeiro, metendo-se por onde a praça ainda não estava fechada, sem ser sentido das sentinelas por não vir pelas avenidas; e dizendo ao capitão que lhe trazia um aviso para dar a ele Dom Sancho, se apartara o capitão João Cordeiro com ele, e estando sós lhe dera o castelhano um pistoletaço de que logo morreu, pondo-se o traidor logo em cobro, o que pôde fazer porque no mesmo tempo acometeram as tropas do inimigo às avenidas e se tocou arma, com o que teve lugar o traidor de se meter com os seus, que se retiraram ao som de trombetas, como se com sua traição conseguiram ganhar uma província.

Contava assim D. Sancho Manuel, despeitado, o triste fim do capitão da ordenança, de quem havia três anos desconfiara e mandara prender. Pela traição, sugere que o Rei mande que se não dê quartel a nenhum castelhano, e que permita que o próprio D. Sancho possa mandar executar os inventores desta maldade.

Os conselheiros opuseram-se de forma veemente a esta sugestão de D. Sancho, pois não se devia admitir nem praticar tal coisa, por não se usar entre cristãos o não dar quartel. Sugeriram ao Rei que mandasse D. Sancho acabar de cerrar a praça, para que ninguém pudesse entrar sem ser sentido – e se não pudesse ser com muralha, que fosse com trincheira e estacada. Quanto aos herdeiros do falecido capitão, consideraram ser merecedores de receber alguma mercê régia, em virtude de João Cordeiro ter sido um grande sujeito, bizarro e valente capitão.

Uma curiosidade: a título particular, acrescentaram à consulta D. Álvaro de Abranches e Jorge de Melo os seus pareceres, nos quais disseram que os moradores da Sarça são costumados a fazer traições, por onde já tiveram castigo, o que lhes parece que se encomende a Dom Sancho procure fazer o mesmo ao traidor.

Espionagem e contra-espionagem – mas também traições, castigos e vendettas. A fronteira da Beira parece ter sido terreno fértil nestes casos. O historiador Gastão de Melo de Matos, na sua obra Um soldado de fortuna do século XVII (Lisboa, s. n., 1939), narra o episódio de dúbios contornos do então sargento-mor António Soares da Costa, o Machuca, e o triste fim de D. Alfonso de Sande y Dávila. Mas, como costuma dizer Juan Antonio Caro del Corral, isso é outra história.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1651, maço 11, consulta de 15 de Maio de 1651.

Imagem: Pausa dos militares. Pintura de Simon Kick (1603-1652).