Cerco e tomada de Olivença (7ª parte – 13 de Maio de 1657)

Gerards Cannon

13 – Domingo pela manhã  mandou o governador ao capitão Rui Vicente de Matos que, com sua gente, fosse segar trigo para faxina pela parte da herdade da Azenha, e ele foi com 50 homens dos da terra, soldados seus, uns com foices e outros com armas para escolta; estando segando lhe pediu licença um, para chegar a fazer tiro a um castelhano que via andar perto colhendo favas, e ele o deixou ir, atrás deste intentou ir outro, e ele o quis deter, com isto pela outra parte se lhe foram outros, e finalmente os das foices tomaram as armas e todos juntos investiram o aproche do inimigo, que era o de Corna; como o capitao os não pôde deter, embraçou a rodela, e com a espada na mão se pôs diante, e furiosamente investiram o inimigo.

Estava ele advertido e tinha bem guarnecido aquela parte, e companhias de reserva, e assim fez resistência algum espaço, mas os nossos carregaram de armas e se tornaram sem haver nenhum ferido, só dois soldados do terço do governador e um auxiliar, que andavam no [palavra ilegível], se foram lá a despojar sem levar armas, e mataram dois e levaram um; de lá trouxeram um sargento para língua.

Muita parte deste sucesso se deve aos outros capitães da terra que, como viram empenhado o seu camarada, saíram em seu favor e obraram como sempre. O governador fez grandes mostras de sentimento por esta facção se fazer sem ordem sua, e falou muito mal a todos, dizendo que não fizeram nada, e outras palavras bem mal consertadas.

O governador da praça intentou mandar fazer outra surtida pela parte do Ral com 200 homens, parte deles rodeleiros, a qual não se conseguiu, porque o capitão Castilho [Stéphane Auguste de Castille], que governava a cavalaria, se descobriu com ela antes de tempo, e o inimigo tocou arma e reforçou as guarnições.

Um batalhão de cavalaria do inimigo que passava pela outra banda de Ramapalhos recebeu duas balas da nossa artilharia, que abriram duas boas ruas, com morte de muitos soldados e cavalos; neste dia nos feriram três cavaleiros que estavam de sentinela pela parte de São Pedro.

E como nunca fizemos surtida que não recebêssemos logo assalto de noite, nesta, pelas onze horas, o deu o inimigo o mais geral e reforçado que nunca. Investiu a estrada encoberta desde o revelim da porta de São Francisco, perto da circunferência do baluarte da Rainha, até ambos os flancos do de São João pela Cruz de São Pedro, que é distância de dois baluartes e cortina e meia, e a um mesmo tempo com boa quantidade de gente se chegou até [a] pegar com as mãos nas estacas da estrada encoberta. Pelejou-se de sua parte dura e porfiadamente por espaço de 4 horas, reforçando cada vez mais com nova gente, para o que tirou da cavalaria de cada companhia seis soldados, que armados de couraças arremetiam mais afoitos que os outros, sendo cabo de seu avanço o mestre de campo general Moxica.

Os nossos se defenderam com grande valor e chegaram [a] tomar a muitos soldados  do inimigo as armas das mãos. Neste avanço perdeu o inimigo muita e boa gente, entre eles ao mestre de campo D. Pedro Alvarez de Toledo, cujo terço, nestes dois assaltos, se lhe gastou, sendo que constava de 1.200 homens, segundo dizem as línguas. Era o mais valente cabo que traziam. Da nossa parte morreram três soldados e nos feriram vinte, e entre eles o capitão D. Tomás Giraldino e o capitão Belchior Vaz Pacheco, e o seu alferes. Chegou-se nesta ocasião a pelejar, e em certo modo às mãos [ou seja, corpo-a-corpo].

(continua)

Este texto corresponde à transcrição (com ortografia actualizada) de um manuscrito anónimo existente na Biblioteca Nacional, secção de Reservados, agora somente disponível em microfilme (FR 970), cujo título é Relação de tudo o que [se] passou em Oliuença e no Campo do Cerco e tomada da praça pellos Castelhanos. Abril anno de 1657.

Imagem: Peça de artilharia de meados do século XVII (réplica). Imagem retirada do excelente site dedicado a reconstituições históricas do período da Guerra Civil Inglesa, “Charles Gerard’s” (http://www.gerards.org.uk). Ver ligação no lado direito desta página.

Cerco e tomada de Olivença (6ª parte – de 9 a 12 de Maio de 1657)

Olivença

9 – Pela madrugada da quarta-feira trabucou o inimigo, e a primeira bomba caiu no fosso; ao cair alcançou uma égua de Lourenço Martins Sembrano e a partiu em duas, e ao rebentar matou o sargento-mor Diogo d’Aguiar da Mota, engenheiro; deu-lhe um pedaço dela na cabeça de que logo morreu; tinha-se confessado na tarde do dia de antes e era soldado honrado.

Quinta-feira dez, pela manhã, deixou o nosso exército o quartel da Amoreira e marchou direito para o Guadiana, pelo caminho por onde tinha vindo, e o vimos [n]o cabeço de Vila Real; a cavalaria do inimigo o seguiu pouco espaço de longe. Choveu neste dia como nos mais.

Pela tarde fez o inimigo chamada pela parte do Ral, e mandou[-se] ao capitão António Barbosa de Brito que fosse saber o que queria; trouxe por resposta que o nosso exército viera para nos socorrer e estivera à vista tanto tempo, e que desenganado de que o não podia fazer, e por outras causas maiores, que alguma hora saberíamos, nos dera as costas e se recolhera, de maneira que logo aquela manhã passara o rio e assim ficávamos sem esperança de socorro [esta informação dada pelos espanhóis era correcta e reportava-se à aparentemente estranha decisão tomada pelo Conde de São Lourenço, comandante do exército do Alentejo, de retirar-se das proximidades de Olivença e desistir de socorrer a praça sitiada]; que admitíssemos as capitulações e práticas [ou seja, conversações – “prática” também significava “conversa”, tanto no século XVII como nos anteriores], que nos concertos se nos concederiam os maiores e mais honrosos partidos que em outra praça se tivessem concedido; e que isto nos escusaria de padecer hostilidades, e que para responder nos davam termo de duas horas. Houve nesta ocasião cessação de armas.

O governador me mandou dizer que importava que nos víssemos, e quando cheguei o achei na porta de São Francisco sentado com os mestres de campo João Álvares de Barbuda e os engenheiros Du Four e Gilot, e com eles Castilho [Stéphane Auguste de Castille], e também o sargento-mor Manuel de Magalhães, com mostras de grande sentimento. Disse-me o governador que tivera aquela chamada do inimigo com aquele recado, que era necessário dar conta ao povo, para o que mandasse chamar a Câmara, porque o nosso exército, com o que fez, nos tinha posto naquele extremo de desventura; que salvássemos a guarnição de El-Rei [apesar de D. João IV ter morrido no ano anterior, este termo é uma generalização que se reporta ao exército régio], as vidas, honras e fazendas dos moradores, e que se fizesse chamar logo a Câmara, porque do termo para a resposta não tínhamos mais que meia hora.

Eu respondi o que se me ofereceu, e à minha resposta disse Gilot e o [Du] Four que não evitasse tal, que eles se obrigavam a tornar a ganhar a praça dentro de doze dias, a isto respondi pior ainda; e fui à Câmara, e disse aos vereadores que advertissem que queriam entregar a praça, que vissem o que lhe propunham e o que lhe respondiam.

Negou o governador, e com ele Gilot, e assentados propôs o que o inimigo mandava dizer, e que queria dar-nos conta, porque se não admitíssemos a prática não nos ficava recurso, e que o nosso exército, em lugar de nos socorrer, se retirava, como víamos, e disse mais que a prática não era a fim de entregar a praça, senão de entretanto descansar a guarnição e propormos as munições; e o inimigo estar gastando tempo, sem proveito algum; disseram todos que, sendo só para esse fim, se admitisse a prática.

Partiu o governador para a porta e a mandou guarnecer com as companhias da terra dos capitães Francisco Lobo de Cabrera e Rui Vicente de Matos, e logo mandou aprestar ao mestre de campo João Álvares de Barbuda e [a]o sargento-mor João Álvares Coelho, para irem por reféns. Eles se foram a enfeitar [vestir o melhor trajo] e partiram para lá, e do exército vieram para cá D. Pedro Alvarez de Toledo e o Conde de Torrejón, mestres de campo, e os recolheram em casa de João Mexia, onde lhes puseram guardas.

Neste tempo se tocou na vila uma arma de boca mui viva, e como a gente toda sentia mal de se admitir a prática, andavam os mais deles furiosos, com o que correram à muralha muitas mulheres com armas e fizeram o mesmo. O governador acudiu a guarnecer e animar a gente. Estando na porta do calvário, onde eu também estava, lhe disse o padre João Lobo Freire: Senhor governador, estes velhacos não são para mais que fazer enganos e traições. Vossa Senhoria tem consigo muita e mui valorosa gente, que podem defender a praça e o Reino, não fie deles coisa alguma.

Respondeu a isto o governador que não falasse mais palavra, senão que o prenderia e o meteria em uma casa fechado de maneira que não falasse mais. A todos escandalizou uma resposta tão áspera dita a um sacerdote honrado e que, pelo que disse, a não merecia; o mesmo sucedeu ao tenente Manuel Pacheco, soldado honrado e valente, que diante de mim o descompôs, porque disse o mesmo; logo passou palavra que tornava o nosso exércio e que se vim batalhões na campanha, mas não foi assim.

Pela meia noite me mandou recado o governador, que lhe falasse; eu o achei com Gilot, e me deram as capitulações feitas sem eu nelas dar penada, e me disseram que as mostrasse aos vereadores, e que vissem se queriam para si e para o povo mais alguma coisa, e me disseram que o capítulo que falava nos frdes visse eu o que me parecia, que pediriam; e assim fiz isto só, e nesta forma os levei aos vereadores, e eles disseram que sendo para o que tinham assentado, que bons estavam, e os mandei tresladar de boa letra por João de Gusmão , escrivão do almoxarife, e os dei ao governador.

11 – Sexta-feira pela manhã entrou um correio do Conde general com carta sua, em que dizia que estranhava ao governador não lhe fazer aviso nenhum havia tanto tempo, que ele os fizesse mais amiúde que pudesse, e que o dito Senhor se tirava daquele quartel pelo discómodo grande dos soldados e cavalaria, mas que estivesse certo que quatro dias ou menos os havia de socorrer. O primeiro que trouxe a carta deu boa notícia do nosso exército. Vimos a carta todos e nos alegrámos muito, porque soubémos das mentiras e enredos que o inimigo nos contou chegando à fala, dizendo que tinham morto o Conde general e que cinco fidalgos, que o fizeram, estavam no seu exército, e outras grandes pataratas deste lote.

Pela tarde veio a resposta que o inimigo deu às capitulações, em que concedia algumas e negava outras; e no tocante aos cabos e soldados eram mal respondidos, com que se tornavam a enviar os seus reféns, e cobrámos os nossos, e tornámos às armas, o que foi de tanta alegria para todos que parece cobraram novos corações.

Pelejou-se valorosamente à noite e [n]o dia seguinte de sábado. Neste, sendo pelo meio-dia, saiu André Fernandes, filho de João Rodrigues, lavrador, pela estrada encoberta, e com um capacete na cabeça e um chuço na mão se arrojou ao aproche do inimigo pela parte da Corna e saltou dentro dele, e fez fugir vergonhosamente toda a guarnição [e] a gente fo trabalho, e lhe tomou ferramentas e armas que ficaram, e fez um feixe que carregou e trouxe depois de ter dado a três soldados que chegaram lá depois dele lá estar, as que puderam trazer, e com elas se vieram para a vila.

[12] – Neste dia mandou o governador para aquela parte de guarnição 200 homens dos moradores, com quatro cabos dos mais valentes que houve, e foram Cristóvão de Macedo, Rui Vicente de Matos, capitão da ordenança, e Domingos Gordo prado, filho do sargento-mor Gil Lourenço Cabeça, e o capitão Lopo Vieira Miguens. Estes guarneceram desde Santa Quitéria até ao revelim de São Lázaro, que é por onde o inimigo atacava por aquela parte. O nosso exército foi visto passar de Vila Real e marchar para os Matos de Ferreira; o inimigo saiu com a sua cavalaria para o outeiro de Castelo Velho, e por noite tornou para a sua linha.

(continua)

Este texto corresponde à transcrição (com ortografia actualizada) de um manuscrito anónimo existente na Biblioteca Nacional, secção de Reservados, agora somente disponível em microfilme (FR 970), cujo título é Relação de tudo o que [se] passou em Oliuença e no Campo do Cerco e tomada da praça pellos Castelhanos. Abril anno de 1657.

Imagem: Olivença na actualidade. Imagem obtida a partir do site Google Earth.

Cerco e tomada de Olivença (4ª parte – de 22 a 30 de Abril de 1657)

Olivença3

[22 de Abril – Está, por lapso, indicado no original com o nº 23; nota introduzida por Horácio Madureira dos Santos na sua transcrição] – Domingo se viram mui avante as linhas do inimigo que, como trabalhavam nelas de noite, apareciam pela manhã crescidas; pela tarde deu uma bala grossa na rua das Flores, e na chapeleta que fez matou um alferes auxiliar, foi este o primeiro homem que o inimigo nos matou.

Desde este dia se deu carga contínua de mosquetaria de dia e de noite pelas partes em que o inimigo trabalhava, para lhe impedirem o seu serviço.

23 – 2ª feira amanheceu uma nova plataforma no mosteiro de São Bartolomeu, mas por baixo, coisa de trezentos passos, e para ela passou o inimigo as peças que na outra tinha; ficava esta menos de tiro de mosquete da praça.

[24] – 3ª feira ao amanhecer entrou na praça Diogo Soares, soldado honrado, o qual estava fora dela ao tempo que chegou o inimigo. Neste dia amanheceu outra bateria, posta por baixo da Cruz de São Pedro; nesta havia três peças grossas, duas faziam tiro aos baluartes da Rainha e uma à Torre d’El-Rei, e esta lhe quebraram algumas pedras junto às obras mortas. Um auxiliar de Évora falou da praça, entendeu-se que se passara ao inimigo.

[25] – 4ª feira esforçou muito o inimigo as suas baterias, e as balas, que davam no muro, tornavam para trás, estas nos mataram cinco soldados, e as que saltavam para dentro da vila fazendo chapeletas mataram cinco bois; as primeiras três bombardas arruinaram três moradas de casas.

As sentinelas da ronda tocaram arma ao inimigo, e enquanto durou, largaram todos o trabalho, e todos andavam com tanta confusão que os não podiam os cabos reduzir à forma. Nesta noite escreveu o governador [da praça, Manuel de Saldanha] ao Conde [de São Lourenço] e a Câmara [de Olivença] lhe escreveu o seguinte:

Presente é a Vossa Senhoria quantos dias há que o inimigo nos tem sitiados, e com não serem muitos nos tem cortado os olivais, destruindo os pães [ou seja, as culturas], e comida da sua cavalaria e bagagens; com a artilharia e bombas nos vai arruinando as casas, com o que nos não deixa fora de toda a pobreza e miséria. Nós somos e fomos sempre bons e fiéis vassalos a Sua Majestade, e como tais merecemos ser socorridos, o que temos por muito certo, confiados na grande mercê que Vossa Majestadefez sempre aos moradores desta vila. este socorro ficamos esperando, e pedindo a Deus que nele dê a Vossa Senhoria os bons sucessos que desejamos.

Esta carta cifrou [ou seja, pôs em cifra, em código] Gilot, e creio que fielmente, se bem me disse o que escreveu a cifra que lhe acrescentou ou cortou, mas ele passou, e a levou o Franco. Neste dia se tomou língua, e uma das balas que faziam tiro à torre fez em pedaços um sino que estava nela e servia de tocar a rebate.

26 – Quinta-feira pela manhã teve a nossa cavalaria uma escaramuça com a companhia da guarda do inimigo junto das hortas, no Ferragial do Azoche; durou um bom espaço e foi bem travada. Os nossos se recolheram sem dano, o inimigo algum recebeu, e eu soube do tenente Pantoja [oficial espanhol], [n]o dia em que saímos rendidos, que lhe morreram quatro e foram feridos quinze, e muitos cavalos. Neste dia fez o governador repartição dos homens nobres para estarem nos baluartes, três em cada um, mandando na artilharia e vendo como se pelejava por aquelas partes, para que, parecendo-lhes necessário, o advertissem [no sentido de “avisassem”] aos capitães, e a ele.

Por noite um soldado de D. Tomás Geraldino se passou para o inimigo, um mosquete que rebentou matou um soldado e levou a outro uma mão. Uma bala grossa quebrou pela jóia um sacre que estava na torre, com a qual e outra peça de três libras se fez grande dano ao inimigo.

[27] – Sexta feira se começou de ver uma linha que de novo fazia o inimigo; começava no quartel do olival de João Cabelo e ia caminhando ao redor da praça, a tiro de arcabuz da estrada encoberta para a parte da Corna. O governador mandou com grande cuidado segar os pães [ceifar o trigo e outros cereais] que estavam ao redor da vila, por estarem tão crescidos que se não viam as obras do inimigo senão quando eram já mais altas que eles; isto cometeu ao sargento-mor da terra Gil Vaz cabeça, o qual o fez com os moradores dela.

Neste dia acabou o inimigo de fazer a outra linha de comunicação de uma bateria para a outra, e ambas guarnecia do quartel de Vale Mimoso. Daquela linha saíam soldados a tomar alfaces nas hortas do Ral, que ficavam entre nós e eles, e lhe mataram os nossos alguns com tiros, da estrada encoberta. Acabou-se uma meia lua que o governador mandou fazer entre os baluartes da Corna e do Calvário, e se guarneceu e começou de se trabalhar em outra, que mandou fazer defronte da porta do Calvário.

O inimigo, desenganado com o pouco efeito que a sua artilharia fazia no baluarte da Rainha, deu mais elevação às peças e meteu os tiros por dentro da vila, com o que fez grande dano nas casas daqueles bairros; deixou de atirar à torre e algumas vezes atirou à estacada da estrada encoberta, com o que nos matou e feriu alguns soldados.

28 – Sábado pela manhã apareceu um quartel escrito em meia folha de papel perto da nossa estrada encoberta, em um pau que parecia cabo de enxada; trouxeram-no ao governador e ele o recolheu.

Também apareceu mui avante a linha que fazia pela parte do campo de [espaço em branco no texto original; nota de HMS]. A artilharia do inimigo arruinou muitas casas na rua grande de S. Bartolomeu, e entre estas as em que eu vivia. Trabucou e lançou esta noite vinte e uma bombas, que arruinaram algumas casas.

Pôs o governador fachos em a torre e sucedeu que estando ele com muita gente na abóbada da porta do Calvário, dos quais todos dormiam, senão João Mendes Mexia, Fernão Gomes de Cabreira e Gilot, que passeavam, se disparou uma arma, e o pelouro dela deu em Salvador Machado, sargento-mor dos auxiliares de Beja, e lhe quebrou uma perna, de que morreu em três dias. Como era noite em que se trabucava, com  o ruído do tiro saíram todos fugindo desacordados, cuidando que era bomba que ali caíra, com o que se não pôde fazer averiguação certa do caso, mas sempre se teve que foi desastre.

Duravam as baterias, e de uma e outra plataforma atiravam furiosamente. Em tanto que houve dia em que se contaram setecentos tiros, segundo me afirmaram soldados curiosos e de verdade. Domingo [dia 29] pela manhã se passou para a praça um soldado do exército, era português, deu algumas notícias do poder do inimigo, mas pouco certas. de tarde saíram a tomar língua dois soldados nossos que foram Gonçalo Vaz e outro, o inimigo os carregou com muitos, contra os quais sustentaram uma escaramuça por muito tempo, e se retiraram sem dano.

À noite começámos de ver fogos por junto de Juromenha, tivémos grande festa, entendendo que era o nosso exército. Como assim foi sem embargo de que Castilho [Stéphane Auguste de Castille] sustentava, e com apostas, que nem era o exército, nem havíamos de ser socorridos, o que dava grande escândalo a todos. O governador mandou continuar os fachos na torre.

[30] 2ª feira pela manhã se via que da linha da comunicação entre as baterias do inimigo saía formado um aproche, com que caminhava direito à estrada encoberta, pela parte do baluarte da Rainha. Este formavam de noite, e faziam o que lhe bastava para se cobrirem de alto e grosso, e de dia o engrossavam e trabalhavam cobertos.

Pela manhã veio um escravo branco e ferrado, que era tambor-mor, e cuidava que o nosso forte era quartel seu, e se veio meter nele. Este foi trazido ao governador e disse que no dia atrás tinha chegado ao exército D. Francisco de Guzmán, novo mestre de campo que vinha de Sevilha com nove companhias de infantaria, e que logo lhe mataram um moço que era o melhor sapateiro que havia na cidade.

Do quartel de S. Francisco Velho se passou para cá outro castelhano bem fardado, mas ao meu ver e ao de todos, falto de juízo. Outro se tomou para língua, de todos soubemos que entre os Duques de S. Germán e o de Osuna houvera diferenças e que chegaram [a] vir à espada, e foi porque o de Osuna disse que era ruim guerra atirar às casas da vila, que queria ganhar, e que rompesse a muralha e entrasse a praça, que a isso vinha; sobre estas tiveram outras razões, e a final a de Osuna foi que em Espanha, depois de El-Rei, só ele era e ninguém lhe precedia. Na noite deste dia trabucou o inimigo e lançou sete bombas, com o que arruinou quatro moradas de casas.

(continua)

Este texto corresponde à transcrição (com ortografia actualizada) de um manuscrito anónimo existente na Biblioteca Nacional, secção de Reservados, agora somente disponível em microfilme (FR 970), cujo título é Relação de tudo o que [se] passou em Oliuença e no Campo do Cerco e tomada da praça pellos Castelhanos. Abril anno de 1657.

Imagem: Olivença – vista parcial a partir da Torre d’El-Rei, mencionada no texto. Foto de Jorge P. Freitas.

Cerco e tomada de Olivença, 1657 (2ª parte – de 15 a 19 de Abril de 1657)

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Abril 15. Domingo, por noite, partiu o tenente-general [Achim de Tamericurt] para Elvas levando consigo oito companhias e ficou na praça a do capitão Agostinho Estevão de Castilho, francês [Stéphane Auguste de Castille, capitão francês de cavalaria, cuja desventura em Olivença já foi tratada aqui e aqui], e com ela alguns cavalos de outras companhias, que por todos ficaram oitenta cavalos; destes se fizeram duas tropas, uma das quais governava o dito capitão e a outra o seu tenente Manuel Pacheco. A cavalaria passou por Guadiana pelo porto de Chiso, junto de Telena, nesta passagem se afogaram dois soldados e outros dois se perderam das tropas, e tornaram para a praça.

Trabalhava o inimigo já no quartel de Vale Mimoso, aonde ao depois pôs uma bateria, e dela por uma linha guarnecia outra que era a de São Bartolomeu. Antes que pusesse baterias, quis nesta noite inquietar-nos trabucando, para o que se chegou perto da Cruz de São Pedro, aonde pôs o morteiro e lançou na praça nove bombas, cada uma de peso de 150 libras, as quais caíram dentro da vila, porém nenhuma fez dano.

16. Segunda-feira amanheceu feita uma plataforma a meia ladeira do Espinhaço da Cabra, e dela atirou o inimigo com dois meios canhões às casas da vila, também se viram balas de dez libras de uma peça vindas daquela parte, durou esta bateria desta parte até vinte deste mês.

Pela meia-noite entrou na praça João Mendes Mexia, que estava fora dela no tempo que o inimigo veio, e com ele mandou o governador das armas a Francisco de Sey, francês, comissário geral que era da artilharia e soldado prático. Vieram guiados pelo cabo de esquadra Furtado e o soldado Navarro, ambos da companhia de Dinis de Melo [de Castro].

Neste dia se adiantaram dois rapazes e um soldado infante e foram às hortas de Corna buscar favas e alhos; a estes tomou o inimigo e os levou ao seu quartel da Corte.

18. Quarta-feira largou o inimigo o soldado que tomou e a um dos rapazes. Por estes mandou lançar na praça alguns escritos, todos do mesmo teor. O governador os recolheu todos e só um pude eu haver, que dizia o seguinte:

A compaixão grande que se tem de que os que são vassalos de Sua Majestade [Filipe IV de Espanha, III de Portugal], ainda que inobedientes, padeçam por sua demasiada obstinação os grandes males que a guerra traz consigo, mormente sendo civil, e entre cristãos, há parecido, por que se escusem tão grandes danos, advertir a todos os que se acham nesta praça que, passando-se a este campo, não só se lhes dará perdão do passado, mas ainda querendo servir, se lhes assentará praça, e socorrerá conforme sua qualidade, e não querendo servir se lhes dará dinheiro para entrar-se pela terra adentro; tendo entendido que os que não quiserem usar desta oportunidade, e aguardarem a que se ponham as baterias, e que se abram brechas, serão tratados como inimigos obstinados, e não haverá para eles recurso de misericórdia. Muitos destes escritos lançou o inimigo à roda da praça, mas sem efeito.

19. Quinta-feira por noite despediu o governador o cabo e soldado que trouxeram ao Du Four [François Du Four, engenheiro francês], e eles fizeram caminho por Mourão e foram a salvamento; nesta noite entraram dois correios do Conde de São Lourenço com cartas para o governador, e uma delas trouxe um vidro de óleo de ouro [tintura utilizada para desinfectar e tratar ferimentos]. De tarde tinha chegado o rapaz que ficou retido no quartel do inimigo, era este um Afonso, filho do cabo de esquadra Afonso Mouro, e advertiu muito bem em tudo o que viu e lhe disseram; a este deram outros escritos, dizendo-lhe que os desse ao vigário. O governador os recolheu todos como os demais.

Neste dia começaram já a crescer as trincheiras do quartel que o inimigo fez a São Francisco o Velho, e a linha exterior que fez pelo alto do Espinhaço da Cabra.

(continua)

Este texto corresponde à transcrição (com ortografia actualizada) de um manuscrito anónimo existente na Biblioteca Nacional, secção de Reservados, agora somente disponível em microfilme (FR 970), cujo título é Relação de tudo o que [se] passou em Oliuença e no Campo do Cerco e tomada da praça pellos Castelhanos. Abril anno de 1657.

Imagem: “Soldados jogando cartas na Sala da Guarda”, quadro de Jacob Duck, Museu das Belas Artes, Budapest.

Stéphane Auguste de Castille e a perda de Olivença em 1657 (parte 2)

Stéphane Auguste de Castille não chegou a cumprir o degredo na Índia, tendo permanecido preso no Reino depois de ter sido considerado culpado pela entrega de Olivença aos espanhóis. Continuava a reclamar inocência, que dizia ser “tão clara como o Sol”, dirigindo várias petições ao Conselho de Guerra para que fosse anulada a sentença. Ele, que viera para Portugal em 1648, servira a maior parte do tempo à sua custa, tendo uma experiência militar de 24 anos contínuos em guerras. Tinha sido capitão de infantaria e de cavalaria na Flandres e tenente-general na província da Baixa Bretanha, tendo abandonado a França por motivos de força maior (provavelmente a contas com a justiça). A sua permanência na prisão, desde 1657, já lhe custara para cima de 13.000 cruzados, uma pequena fortuna, como não bastasse a Coroa dever-lhe mais de 7 anos de soldos – uma situação frequente entre os capitães de cavalos.

“Não se devia descompor um cavaleiro estrangeiro, homem de tanta experiência, assim no formar das batalhas e batalhões, evoluções da cavalaria e nas mais ciências dependentes da milícia ofensiva e defensiva, e que tem servido a Vossa Majestade desinteressadamente tantos anos, com tanta satisfação e bons sucessos.”

Fora o único capitão de cavalos a permanecer em Olivença, tendo a restante força de cavalaria (400 homens sob o comando do tenente-general francês Achim de Tamericurt) abandonado a praça antes de começarem os trabalhos de cerco. Alegava ter procedido com muito valor durante o sítio e que só ficara em Olivença movido pelo zelo em servir numa arriscada situação. Todos os dias, ao amanhecer, saía a pelejar fora da estacada, “obrando acções memoráveis e dignas de grande estimação”. Dos 96 cavalos que a sua companhia tinha, veio a ficar somente com 37, muitos deles feridos, além de lhe terem matado 5, “a pistoletaços e estocadas, debaixo de sua pessoa”. Recordava ainda vários combates travados no tempo de D. João IV, “que o conhecia, amava, estimava e honrava com muitas cartas suas” (as cartas régias de agradecimento eram muito honrosas para quem as recebia, equivalendo às actuais medalhas como testemunhos de bravura e bom desempenho militar).

Numa das petições, Stéphane de Castille lamentava a acusação de que fora alvo, dizendo que todos os outros implicados se tinham conseguido livrar, incluindo o capitão António Barbosa de Brito, tido na devassa (inquérito) como o principal culpado. Só ele próprio e o compatriota Du Four tinham sido condenados. Acusava o eminente doutor de leis Jorge da Silva Mascarenhas, relator, de ter mandado aceitar como verdadeiros os depoimentos das testemunhas do processo, depois de numa primeira instância as testemunhas terem sido acusadas de faltarem à verdade. O doutor, com influência na Corte, teria procedido assim para livrar de culpa o juiz de fora de Olivença, que era seu sobrinho.

Este juiz de fora, de seu nome João Garcês de Teive, era tido pelo oficial francês como o culpado pela sua condenação, pois “não tendo por onde se livrar, o fez com a perda do suplicante, e alcançou de Vossa Majestade, em lugar de castigo, o cargo de provedor da comarca de Elvas, do qual cargo Deus, como tão justo e recto, não permitiu deixá-lo lograr, pois o alcançou à custa da honra e sangue do inocente que padece”. De resto, desde 1654 que era pública a inimizade entre o juiz de fora e o capitão estrangeiro. A invocação da acção da justiça divina é feita a propósito dos indivíduos que Stéphane de Castille acusava de conjura e falsos testemunhos, pois dos iniciais 106 que assim procederam por temerem o juiz de fora e o seu poderoso tio, já tinham morrido 92, apenas quatro anos volvidos sobre o acontecimento.

Não obstante todos os argumentos invocados, as petições do capitão Stéphane Auguste de Castille continuaram a ser indeferidas pela Coroa. Os nebulosos contornos da capitulação de Olivença nunca seriam esclarecidos. Passam hoje 351 anos sobre a queda da vila alentejana, que seria devolvida a Portugal após a assinatura da paz, em 1668.

Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Conselho de Guerra, Consultas, 1661, maço 21-A, caixa 78, consulta de 19 de Julho de 1661 e documentos anexos.

Imagem: Vista de Olivença e arrabaldes a partir da fabulosa torre do castelo. É perceptível a configuração das fortificações seiscentistas, posteriormente melhoradas. Em primeiro plano, o antigo quartel de cavalaria. Foto do autor.

Stéphane Auguste de Castille e a perda de Olivença em 1657 (parte 1)

Em 30 de Maio de 1657, após um mês de cerco pelo exército espanhol, capitulava a vila de Olivença. O mestre de campo Manuel de Saldanha entregava a praça que até então governara ao Duque de San Germán, comandante das forças sitiantes. Contando inicialmente com uma guarnição de 4.000 infantes e uma companhia de 100 cavalos, Olivença viu perecer mais de 1.700 defensores durante as operações de sítio. Enquanto isso, o exército de socorro, confiado pela rainha viúva D. Luísa ao Conde de São Lourenço, desgastava-se inutilmente numa ousada tentativa de tomar Badajoz, em vez de se lançar sobre o exército de San Germán.

A queda de Olivença, coincidindo com o reacender da guerra nas fronteiras do Reino, trouxe consigo um imenso pesar e uma vaga de suspeitas de traição. Nem sequer foi poupado o Conde de São Lourenço, apesar do prestígio alcançado no governo das armas do Alentejo durante a década de 40. Caiu em desgraça, como alguns outros que foram acusados de envolvimento na entrega da praça alentejana ao inimigo.

Uma das acusações mais surpreendentes que os inquéritos em torno da queda de Olivença produziram foi dirigida contra um capitão de cavalos, o francês Stéphane Auguste de Castille, cujo nome aparece também aportuguesado em várias fontes como Estêvão Augusto de Castilho. Não causa estranheza que um estrangeiro fosse tido como suspeito, uma vez que, na época, existia uma enorme desconfiança em relação aos súbditos de reis estrangeiros, mesmo os que se batiam no exército português. Contudo, sobre Castille e um outro seu compatriota, François Du Four, recaíram as culpas da perda da praça, apesar de nenhum deles ter estado envolvido nas negociações da entrega da vila. Condenados, Du Four seguiu para as ferrarias de Tomar, enquanto Stéphane Auguste de Castille foi sentenciado no crime de lesa-majestade e degredado por toda a vida para a Índia por infame, ele e os seus descendentes. O caso deixa entrever uma complexa intriga de bastidores e o envolvimento de pessoas ligadas à burguesia e justiças locais, eventualmente receosas de perderem os bens se a capitulação proposta pelo Duque de San Germán não fosse aceite, e certamente receosas de perderem a vida se acusadas de traição após a rendição. Os estrangeiros poderiam ter servido, assim, de bodes expiatórios muito convenientes.

Entre 1660 e 1661, Stéphane Auguste de Castille escreveu várias petições ao Conselho de Guerra, reafirmando a sua inocência e clamando pela anulação da sentença. Para não tornar esta entrada demasiado extensa, amanhã será aqui publicada a argumentação do cavaleiro francês, bem como a sua versão da estranha intriga em torno da queda de Olivença.

Bibliografia on-line (História de Portugal Restaurado)

Gravura: Planta de Olivença, c. de 1700; Biblioteca Nacional, Iconografia, CC29P. A legenda em francês refere que a tomada da vila pelo exército espanhol ocorreu em 1658, quando na verdade foi no ano anterior. Olivença seria devolvida à Coroa portuguesa em 1668, após a assinatura da paz.