The use of uniforms during the War of the Portuguese Restoration – infantry

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O presente artigo em língua inglesa é o primeiro de uma tradução de dois artigos já publicados há anos. Por curiosidade, num curto espaço de tempo alguns leitores de língua inglesa solicitaram-me que lhes fornecesse informações sobre o eventual uso de uniformes durante a Guerra da Restauração. Deste modo, a tradução dos dois artigos corresponderá à resposta a essas solicitações.

This post in English language is the first part of a translation of two posts published here years ago. Recently, several English speakers, followers of this blog, asked me about the use of uniforms in the course of the War of Portuguese Restoration. I decided to translate the two posts in order to answer their requests. The first of them is about the infantry.

Infantry

The clothes supplied to the infantrymen of the terços (optimistically, on an anual basis) did not follow a strict uniformity in colour or pattern. It is most probable that coats, shirts and breeches occasionally had a common pattern or colour based on the facility of approvisionment from the supplier, but this was not imposed by any rule. From contemporary paintings we can see that several shades of brown and grey were usual among foot soldiers. However, there was little distinction between military and civilian clothes during most of the period of the war. Changes on fashion, especially coming from France, would dictate some differences on the patterns of coats, breeches and hats as the conflict went by.

There are some misconceptions about 17th century military clothing that still survive, usually rendered by unadvised amateur illustrators, mining the understanding of the real evolution of military (and civilian) fashion. Thus, we can still find today some drawings and paintings supposedly of “infantrymen from the War of Portuguese Restoration” which are heavily based on (or even unashamed copies of) illustrations from Jacob de Gheyn’s The exercise of arms, published in 1607. Military and civilian fashion had evolved much in the 1640s, 50s and 60s and soldiers costums resembled little with those of the late 15th and early 17th centuries.

Foreign influence was behind the first signs of the use of uniforms by Portuguese infantry during the 1660s. French and English infantry that fought alongside the Portuguese in the 1660s wore uniforms: red coats lined in different colours for each of the English regiments, and pale grey (or grey-white), probably also lined in different colours, for the French regiments; and the German-Neapolitan regiment which changed sides in 1663, after the defeat of the Spanish army of Don Juan de Austria, was put under French command and received the same pale grey uniforms of the French infantry.

Except for the English, which began using uniforms in 1645 with the New Model Army of Cromwell, the examples mentioned above may have relied on the choices of the field commanders, though in France the use of uniforms was in course in the 1660s. Some units of the Spanish army were described using uniforms by this late period of the war as well. As for the Portuguese army, the most detailed contemporary account on the use of uniforms was published in the monthly newspaper Mercurio Portuguez, in April 1664:

“On the 14th (…) by the afternoon did a splendid parade and military exercise at the Terreiro do Paço [the large place in Lisbon by the river Tagus, which was rebuilt and further enlarged after the earthquake of 1755 and is now officially called Praça do Comércio, though the older name is still widely in use] (…) the Terço da Armada [the elite infantry terço of the Navy – or, as we would call them today, Marines], of which is mestre de campo Simão de Vasconcelos e Sousa; all of them went with green coats, faced and lined in yellow; those of the mestre de campo and the officers and of some soldiers were more expensive, conforming to the posessions of each one, but the colours were the same; and so were the colours [infantry flags] and the painting on the drums (…).”

“on the 17th, also by the afternoon (…), did a similar parade and exercise at the same Terreiro the new terço of the garrison of this City of Lisbon, of which is mestre de campo Roque da Costa, all of them with blue coats faced and lined in red, more or less expensive, depending on the posessions of the wearers.”

Note that the coats were certainly of contemporary French style, following the fashion introduced by Count Schomberg.

References: Mercurio Portuguez, com as novas da guerra entre Portugal, e Castella.

Image: Portuguese soldiers on parade on Terreiro do Paço, detail of a painting by Dirk Stoop, mid 1650s.

Breves biografias (1) – um açoriano na batalha de Ameixial: o mestre de campo Sebastião Correia de Lorvela

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Quando comandou o terço de Cascais na batalha de Ameixial em Junho de 1663, o mestre de campo Sebastião Correia de Lorvela era já um veterano nas lides da guerra. Ainda no tempo da Monarquia Dual, em 1638, fora provido no posto de capitão de infantaria de uma companhia que ele próprio levantara nas ilhas dos Açores, e com ela partiu para o Brasil na armada do Conde da Torre (D. Fernando Martins de Mascarenhas), na demonstração de força contra a ocupação holandesa.

Entre 1642 e 1643 andou embarcado, continuando a comandar a sua companhia de infantaria. Na campanha de 1643 é referido como capitão de uma companhia de cavalaria durante os combates que ocorreram no Alentejo e Extremadura espanhola, participando nas acções de Villanueva del Fresno e Alconchel, entre outras. Seria uma promoção em relação ao posto que ocupava anteriormente, todavia regressou ao comando de uma companhia de infantaria a bordo da Armada.

A promoção a mestre de campo viria em 1657, sendo provido no comando de um terço de infantaria que recrutou nas ilhas dos Açores. No cerco de Badajoz em 1658 caiu prisioneiro dos espanhóis, tendo permanecido 8 meses cativo em Madrid. As ocasionais trocas de prisioneiros trazem-no de novo a Portugal. Em 1662 é mestre de campo do terço de Cascais, que durante as épocas de campanha no Alentejo se alojava em Estremoz. Participou na inglória campanha de 1662, durante a qual muitas praças de armas foram tomadas pelo exército espanhol comandado por D. Juan de Áustria. Em 1663 comandou o seu terço na batalha de Ameixial. Foi general da artilharia do Brasil ad honorem, uma patente que acumulava com a de mestre de campo, mas que era meramente honorífica.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Secretaria de Guerra, Livro 27.º, fls. 81 v- 82 v, registo de 10 de Outubro de 1663.

Imagem: Cena de combate, óleo de Pieter Meulener (pormenor).

Efectivos da província da Beira, partido de Penamacor, em 1648

Em Setembro de 1648, a propósito da insuficiência de dinheiro para pagamento de todas as forças da província da Beira, o governador das armas do partido de Penamacor (distrito militar – por vezes também referido como partido de Castelo Branco), D. Sancho Manuel de Vilhena, enviou ao Conselho de Guerra uma lista exaustiva dos efectivos de que dispunha. Através desse rol ficamos a conhecer o detalhe das unidades que serviam então no partido de Penamacor.

PRIMEIRA PLANA DA CORTE [mais do que um Estado Maior, era uma lista que abrangia todos os oficiais que tinham o privilégio de receberem em primeiro lugar a mesada destinada à província, mesmo que o que sobrasse não fosse suficiente para pagar aos restantes oficiais e praças das unidades; incluía oficiais sem unidade, mas com patente e privilégio passado por decreto régio, capitães-mores de algumas localidades do partido (mesmo de zonas afastadas da fronteira de guerra), “oficiais de pena”, ou seja, não combatentes, amanuenses, cirurgiões e outros]:

1 governador das armas; 1 tenente de mestre de campo general; 1 ajudante de tenente de mestre de campo general; 1 vedor geral; 1 pagador geral; 2 oficiais da Vedoria e da Contadoria Geral do exército; 1 guarda-livros da Vedoria e Contadoria Geral do exército; 1 ajudante do pagador geral; o mestre de campo Manuel Lopes Brandão; o capitão-mor da cidade de Coimbra; o capitão-mor da praça de Salvaterra [do Extremo]; 1 auditor geral; 1 administrador; 1 físico-mor [equivalente ao médico dos nossos dias]; 1 cirurgião-mor; 2 almoxarifes das armas e abastecimentos da praça de Penamacor; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Idanha a Nova; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Salvaterra [do Extremo]; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Segura;1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Rosmaninhal; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Zebreira; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Proença a Velha; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Monsanto; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Penha Garcia; e uma praça morta [pensão por invalidez] que se paga por alvará régio a Francisco Sanchez Bueço. TOTAL: 26 elementos.

INFANTARIA

Terço do mestre de campo João Fialho

Primeira plana do terço: 1 mestre de campo, 1 sargento-mor, 2 ajudantes do número, 2 ajudantes supranumerários, 1 capitão de campanha [oficial de justiça], 1 furriel mor, 1 tambor mor. TOTAL: 9 elementos.

Companhia do mestre de campo: 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 1 capitão reformado, 3 alferes reformados, 1 sargento reformado [estes oficiais e sargentos reformados serviam como praças, recebendo um soldo inferior ao que correspondia à sua patente se estivessem providos nos respectivos postos; logo que vagassem postos numa companhia, poderiam vir a ocupá-los, tornando a receber o soldo correspondente à patente], 4 cabos de esquadra, 74 soldados. TOTAL: 89 elementos.

Companhia do capitão Paulo Craveiro: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 75 soldados. TOTAL: 87 elementos.

Companhia do capitão Simão da Costa Feio: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 46 soldados. TOTAL: 58 elementos.

Companhia do capitão Simão de Oliveira da Gama: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 67 soldados. TOTAL: 79 elementos.

Companhia do capitão Jorge Fagão: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 54 soldados. TOTAL: 66 elementos.

Companhia do capitão Mateus Álvares: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 45 soldados. TOTAL: 57 elementos.

Companhia do capitão Manuel de Brito: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 50 soldados. TOTAL: 62 elementos.

Companhia do capitão Diogo Freire: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 45 soldados. TOTAL: 57 elementos.

Companhia do capitão José de Oliveira: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 46 soldados. TOTAL: 58 elementos.

Companhia do capitão Manuel Correia: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 51 soldados. TOTAL: 63 elementos.

Companhia do capitão Fernão Monteiro: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 44 soldados. TOTAL: 56 elementos.

Companhia do capitão Domingos da Silveira: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 52 soldados. TOTAL: 64 elementos.

Companhia do capitão Simão Feitor: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 70 soldados. TOTAL: 82 elementos.

Efectivo total do terço do mestre de campo João Fialho: 887 homens (111 oficiais, sargentos e outros, fazendo parte da primeira plana do terço e das primeiras planas de cada companhia; 776 cabos de esquadra e soldados), em 13 companhias.

Companhias soltas de auxiliares (assistindo nas diversas praças da fronteira)

Companhia do capitão Manuel de Araújo: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 1 tambor, 4 cabos de esquadra, 44 soldados. TOTAL: 55 elementos.

Companhia do capitão António Estaço da Costa: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 1 tambor, 4 cabos de esquadra, 55 soldados. TOTAL: 66 elementos.

Companhia do capitão João de Elvas: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 1 tambor, 4 cabos de esquadra, 56 soldados. TOTAL: 67 elementos.

Os oficiais e soldados das duas primeiras companhias, apesar de serem de auxiliares, recebiam o mesmo soldo que os seus congéneres do exército pago, o que constituía uma excepção; a companhia do capitão João de Elvas recebia apenas pão de munição por conta da fazenda real, como estava regulamentado para os auxiliares.

Efectivo total das três companhias auxiliares: 188 homens (21 oficiais e outros; 167 cabos de esquadra e soldados).

CAVALARIA

Por não haver na altura comissário geral da cavalaria naquele partido, toda a cavalaria (constituída inteiramente por arcabuzeiros a cavalo) era governada pelo capitão Gaspar de Távora e Brito. Existia, todavia, uma primeira plana da cavalaria.

Cavalaria paga

Primeira plana da cavalaria: 1 ajudante; 1 capelão mor. TOTAL: 2 elementos.

Companhia do capitão Gaspar de Távora e Brito: 1 capitão, 1 pajem, 1 tenente, 1 alferes, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 47 soldados. Total: 59 elementos.

Companhia do capitão Manuel Furtado de Mesquita: 1 capitão, 1 pajem, 1 tenente, 1 alferes, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 66 soldados. Total: 88 elementos.

Companhia que foi do comissário geral, governada pelo tenente João Colmar: 1 tenente, 1 alferes, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 52 soldados. Total: 62 elementos.

Efectivo total das três companhias de cavalaria paga: 200 homens (23 oficiais e outros; 177 cabos de esquadra e soldados).

Cavalaria da ordenança

Companhia do capitão João Cordeiro: 1 capitão, 1 tenente, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 85 soldados. Total: 95 elementos.

Companhia do capitão Henrique Leitão Rodrigues: 1 capitão, 1 tenente, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 41 soldados. Total: 51 elementos.

Estas companhias recebiam apenas pão de munição e o centeio para o animais, por conta da fazenda real.

Efectivo total das duas companhias de cavalaria da ordenança: 146 homens (12 oficiais e outros; 134 cabos de esquadra e soldados).

O partido de Penamacor contava com 31 “Vigias do Largo” (montados, pois vêm referidos na parte correspondente à cavalaria), destinados dar o alerta de quaisquer entradas que o inimigo fizesse, os quais recebiam 160 réis por dia. Os cavalos deviam ser dos próprios e não recebiam qualquer provimento de cevada ou centeio para os animais nem pão de munição, pois nada consta a este respeito na minuciosa lista mandada elaborar por D. Sancho Manuel.

ARTILHARIA

Plana dos oficiais da artilharia: 1 capitão da artilharia, 1 gentil homem da artilharia, 2 condestáveis da artilharia, 10 artilheiros. Total: 14 elementos.

Como nota adicional, acrescente-se que a lista incluía nas despesas os gastos com 40 prisioneiros castelhanos, que recebiam cada mês um total de 1.200 pães de munição de um arrátel cada, as quantias com despesas secretas (destinadas a espionagem) e correios, e com 22 cavalos desmontados (provavelmente em adestramento para servirem nas companhias), os quais recebiam rações de centeio.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1648, mao 8-B, “Rellação da Gente de guerra, Infantaria, Caualaria e Artilharia, que assiste nesta Prouincia da Beira em o Partido das tres Comarcas Castelo Branco Viseu e Coimbra de que he Gouernador das Armaz D. Sancho Manuel…”, anexa à consulta de 11 de Dezembro de 1648.

Imagem: “Soldados numa aldeia” (1644), pintura de Joost Cornelisz (1586-1666).

O mestre de campo João Fialho

A propósito do mestre de campo João Fialho, acima referido como comandante do terço pago do partido de Penamacor, o leitor JCPort deixou aqui há algumas semanas comentários interessantes sobre aquele seu antepassado, que passo a reproduzir, agradecendo mais uma vez a sua colaboração:

João Fialho, natural de Alenquer, Vila Verde dos Francos, era Fidalgo da Casa Real por serviços prestados na sua acção durante a Guerra da Restauração, no comando de um terço de infantaria na zona fronteiriça do Alentejo [e principalmente na Beira, como é patente].

Conforme biografia incluída nos Livros de RGM – Ordens, nºs 2,7 e 10, na atribuição de duas Comendas na Ordem de Cristo entre 26-06-1644 e 15-02-1669 (S. Miguel do Outeiro e St.a Maria de Almendra), refere-se, na atribuição da Comenda de Sta. Maria de Almendra, que fora Mestre de Campo e Governador de Armas da Província da Beira no impedimento do proprietário [provavelmente por um breve período, como interino, pois não consta nas listas oficiais].

João Fialho teve um filho natural de nome Luís Fialho, que se destacou, como o pai, na defesa fronteiriça do Alentejo, e uma irmã Mariana, que casou com um João Correia (Felgueiras Gayo, título “Salinas”). Desconhece-se se eram filhos da mesma progenitora.

“Os terços de Entre-Douro-e-Minho nas guerras da Aclamação – esboço de História Orgânica”; estudo de Gastão de Melo de Matos (1940)

O estudo de Gastão de Melo de Matos Os terços de Entre-Douro-e-Minho nas guerras da Aclamação – esboço de História Orgânica (separata da Revista de Guimarães, Porto, Sociedade Martins Sarmento, 1940) continua a ter interesse, apesar de algo datada. Fica aqui disponível na edição facsimile online da Casa de Sarmento.

Filme: Dramatização da batalha de Naseby (1645, Guerra Civil Inglesa) para a série Battlefield Britain, apresentada por Peter e Dan Snow  (BBC, 2004). Serve para ilustra as manobras e o tipo de combate que os terços da Guerra da Restauração efectuavam.

O tambor-mor e o tambor

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Tal como o trombeta, também o tambor (ou atambor) não era verdadeiramente um posto, mas sim uma função especializada. Contudo, o tambor-mor era um dos elementos da primeira plana de um terço, e portanto considerado “oficial” nas listas de efectivos. Na orgânica do exército português do período da Guerra da Restauração havia um tambor-mor por terço e dois tambores por companhia de infantaria. A função destes era a sinalização sonora das ordens para a respectiva unidade, enquanto ao tambor-mor competia a instrução e exame dos tambores e a sua repartição pelas companhias.

Na escala das representações sociais da Era Moderna, o tambor não era considerado um ofício nobre, ao contrário, por exemplo, do trombeta. A razão para essa diferenciação, estranha nos nossos dias, mas enraizada no imaginário da época, era o facto do tambor usar as mãos para percutir a caixa de guerra (assim se chamava, com propriedade, o instrumento tambor). Tratava-se, deste modo, de um trabalho mecânico, tal como o de um lavrador, ou o de um criado, ou o de um artesão. Já o trombeta fazia soar o seu instrumento através do sopro, algo que vinha do interior (como a alma) – e além disso militava na cavalaria, a forma mais nobre de guerrear, de acordo com o sistema de valorações do período. Daí a diferença bem marcada entre ambos os cargos, ainda que as funções do trombeta e do tambor se resumissem, na prática, ao mesmo fim.

O tambor-mor não arrastava consigo a vileza dos tambores comuns. Bartolomé Scarion de Pavia, escrevendo na parte final do século XVI, dizia que Y aunque el oficio de atambor es oficio bajo y no de honra, y asímismo es el pífaro, con todo esto los atambores mayores de tercio deben ser hombres de bien (…) Han de entender que son necesarios para más que echar bandos generales y repartir los otros atambores caminando y en los escuadrones, y para llevar algun mandado ó embajada de un escuadron á otro. (Bartolomé Scarion de Pavia, Doctrina Militar, fl. 103, citado por José Almirante, in “Tambor”, Diccionario Militar, Madrid, Ministerio de Defensa, 1989, vol. II, pg. 1009; esta obra de Scarion de Pavia também foi editada em Lisboa, na oficina de Pedro Crasbeeck, em 1598 – na língua original, o castelhano).

Sobre os tambores muito pouco se escreveu durante a Guerra da Restauração, pois o rufar das caixas de guerra fazia parte do quotidiano militar, de uma forma tão natural que pareceria redundante demorar-se sobre esse assunto qualquer escrito. Será necessário recuar até ao século XVI e ao reinado de D. Sebastião para encontrarmos, em português, uma descrição detalhada das funções do tambor e até do próprio instrumento, pela pena de Isidoro de Almeida (texto vertido para português actual):

Os modernos, para mandarem os infantes, usam o tambor, a que outros chamam caixa. Este é um instrumento de madeira com duas bocas, como todos sabem, em cada uma das quais tem um parche de bezerro ou pergaminho, e sobre um batem com dois paus, e no outro tem dois ou quatro bordões de nervo torcidos, temperados com um temperador de pau, que os aperta e alarga, de maneira que, batendo com os paus no parche, reverberam os bordões e tornam a redobrar o golpe, e assim causam maior rumor (…).

As peles estão fixas em uns arcos, e sobre estes outros arcos, em que prendem os cordéis com que as peles se entesam e apertam (…). As peles são de bezerro, de um ano, e para serem mais fortes e durarem mais, querem-se peladas sem cal, com cinzas ou com farelos, e como derem o cabelo ficam boas, mas não querem sal, por não reverem no tempo húmido.

A madeira do tambor, se pudesse ser de um pau inteiro, seria melhor, quando não, quanto mais unida e grudada for, tanto melhor. De nogueira são muito bons, e quer que tenha grossura na madeira de meio dedo pelo menos, e algum tanto mais, se é delgada, recebendo o som em si, não o dá (quando o batem) do pergaminho dos bordões, e soa menos então.

A medida que se tem experimentada para toar mais é dois palmos e meio de vão de boca, e outro tanto de madeira, de boca a boca, e mais não, porque se a madeira é mais comprida vai no vento mais fraco ao parche, e repercutem com menos força os bordões.

O melhor dos dois couros se porá aonde se bate com os paus, os paus do bater se querem de dois palmos de comprido, e grossos por uma parte, que é a que está na mão, e delgados pela outra, com que batem. Naquela parte com que batem, por não romperem o couro, devem ter uma cabeceta pequena, menor que uma avelã; querem-se lavrados ao torno de madeira pesada, para contrapesarem nas mãos ao bater e assim com menos força de mão, dão maior golpe.

Esta é a caixa do tambor, com que o destro oficial e prático tangedor, com a ligeireza das mãos e com o compasso dos golpes, significa e declara o que quer o capitão e o que manda aos seus soldados. Este lança o bando ou pregão do que se há-de fazer, como que se juntem à bandeira, que vão a receber a paga, que tal dia é a mostra e resenha, que vão ao exercício a tal lugar, que vão tomar mantimentos ou munições, que vão ao trabalho, e deita bando de todas as mais coisas que se hão-de fazer, o qual bando é um tocar, e um som diferente de todos os outros, o qual somente significa bando.

Pelo que o tambor que tem primor não mistura com o bando outro som, como fazem os bisonhos (…). Também toca ao tambor o recolher à bandeira, com outro som diferente; e toca o marchar em ordenança, ou caminhar, ou quando caminhando se há-de fazer alto, ou estar quedo. Toca quando um esquadrão, tendo arvorado, se quer melhorar em sítio, sem calar os piques ao ombro avante avante. Toca mão em pique, mão em pique; é aproximar-se, à arma; e no tempo de combater: toca arma, arma. Toca a escaramuça, e toca carga, carga de mão em mão; e toca a retirada atrás, dizendo muito claro: retirar para trás, retirar para trás.

(…) Querem-se todos estes sons muito a compasso, e com as medidas dos tempos guardadas, precisamente, como músico de bom ouvido, e nisto está o ser bom tambor, e não em fazer rumor cegamente sem entender o que faz.

(Isidoro de Almeida, “Quarto Livro das Instruções Militares de Isidoro de Almeida”, in Alberto Faria de Morais, Arte Militar Quinhentista, separata do Boletim do Arquivo Histórico Militar, Lisboa, s.n., 1953, pp. 181-183; edição original: Évora, em casa de André de Burgos, 1573.)

Imagem: Pormenor do painel de azulejos representando a batalha das Linhas de Elvas, 14 de Janeiro de 1659. Sala das Batalhas, Palácio dos Marqueses de Fronteira. Note-se os tambores, no canto superior esquerdo. Durante a Guerra da Restauração – tal como nos diversos conflitos dos séculos XVI a XIX – rapazes muito jovens, por vezes crianças ainda, eram incorporados nos exércitos como tambores, conforme se pode ver nesta representação.

Regimentos franceses de 1641 ao serviço da Coroa portuguesa (cavalaria e infantaria – organização teórica)

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Regimentos constituídos em Setembro de 1641, a partir do contingente enviado pelo Cardeal Richelieu. Organização teórica, nunca cumprida no terreno. A maioria dos regimentos de cavalaria só conseguiu alinhar duas companhias, inicialmente com 25-30 efectivos cada, quando era suposto terem quatro companhias de 40 a 50 efectivos cada uma, a do coronel incluída. Nunca combateram como unidades autónomas, e várias companhias actuaram como as portuguesas, isto é, independentes ou integradas em troços (agrupamentos) temporários, sob as ordens de um coronel estrangeiro ou um comissário geral português. Uma curiosidade: de acordo com as listas de equipamento apresentado nas mostras, a cavalaria francesa em Portugal nunca utilizou protecções metálicas (peito, espaldar e murrião), limitando-se a usar um colete de couro para protecção do tronco e chapéu de aba larga para a cabeça.

Os regimentos de infantaria nunca se formaram por falta de oficiais e soldados franceses em número suficiente. Os coronéis e restantes oficiais das companhias foram comandar ou integrar terços mistos de portugueses e estrangeiros.

Para mais detalhes, consulte-se O Combatente durante a Guerra da Restauração… e A Cavalaria na Guerra da Restauração…, onde este assunto é devidamente aprofundado, bem como as histórias pessoais de alguns oficiais.

Cavalaria (apesar das diferentes designações, os elementos da cavalaria ligeira e os carabineiros estavam equipados de maneira idêntica, correspondendo aos chevaux légers franceses: carabina e um par de pistolas; o regimento de dragões nunca se constituiu como tal, apesar de, em 1644, uma das duas companhias comandadas então pelo Marquês de Gravelines ser nominalmente de dragões, mas sem um único arcabuz entre os 20 elementos que a constituíam – presume-se que combatesse unicamente com espada, como a restante cavalaria)

Regimento de cavalaria ligeira de du Boucquoy. Coronel: Jean du Boucquoy de La Motte; capitães: Arnaud Bruneau de La Chabatière, Bernabé Brisson de La Touche, Théodore de Murasson.

Regimento de cavalaria ligeira de Montjouant. Coronel: Claude de Montjouant, Barão de Cornau; capitães: Jacques de Grille de Roubiac, Jean Danse d’Erbauvillins, Stéphane Paschier de Brussy.

Regimento de cavalaria ligeira de Gravelines. Coronel: Jean Pierre de la Roque, Marquês de Gravelines; capitães: Achim Avaux de Tamericurt, Jean Heitor de Nier, Stéphane Boule de Rosières (m. 1653).

Regimento de cavalaria ligeira de Chantereine. Coronel: François de Huybert de Chantereine; capitães: Louis de Chivray du Plessis, Henri de Belys de Billon, Michel du Bocage (a partir de Dezembro de 1641).

Regimento de cavalaria ligeira de Mahé. Coronel: Sebastian de Mahé de La Souche; capitães: Adrien de Mahé du Plessis, Pierre Guerineau de La Tortinière, Jacques Talonneau de La Popelinière.

Regimento de carabineiros de Boisemont. Coronel: Esme de Pillavoine de Boisemont; capitães: Jean Baptiste Lambert de Gransan, Urbain de Boissey de Chandonville, Nicolas Verniere de Lousières.

Regimento de dragões de Mazeros. Coronel: Pierre de Berfriert de Mazeros; capitães: Jean Chevallier de La Blanchardière, Jean de La Valée de Beaulieu, Henri de La Morlaye, o Maltês (m. 1642).

Nota: com os militares franceses chegou também a Portugal um capitão genovês, Francisco Fiesco, Conde de Lavagna, que comandou uma companhia de cavalos. Embora não estivesse originalmente integrada em nenhum regimento, a sua companhia é sempre incluída na cavalaria francesa nos documentos da época, pois os oficiais e soldados eram franceses. Francisco Fiesco foi capturado pelos espanhóis na batalha de Montijo, tendo passado alguns anos no cárcere.

Infantaria (os regimentos nunca tomaram forma)

Regimento de infantaria de Viole d’Athis. Coronel: Eustache Pierre Viole d’Athis (m. 1643); capitães: François Bouchel de Mirville, Stephan Damar de La Molière, Charles Yvelin de Roquemont.

Regimento de infantaria de Orelio (ou O’Reilly, irlandês). Coronel: Hugo Orelio (ou O’Reilly, irlandês); capitães: Carlos Orelio (ou O’Reilly, irlandês), Nicolas de La Rocca, Volant de Roufiat.

Regimento de infantaria de MacSuey (escocês). Coronel: Maurice MacSuey (escocês); capitães: Henri Marast de Loges, Louis de La Motte de La Prelle, Guillaume Giroult de La Vardin

Regimento de infantaria de Tirel (italiano). Coronel: Gualtiero Tirel (italiano); capitães: Rodrigo Chiogo (italiano – em 1644 deixou o exército e tornou-se frade), John Dungan (irlandês).

Imagem: Soldados franceses – um cavaleiro e um infante mosqueteiro da década de 1640. Gravura extraída da obra de Philip Haythornthwayte The English Civil War 1642-1651. An Illustrated Military History, London, Brockhampton Press,1994.

Um escocês ao serviço de D. João IV – o mestre de campo David Caley (2ª parte)

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No início do ano de 1644, David Caley recebeu o comando de outro terço da ordenança de Lisboa, que devia ser formado com uma mescla de recrutas inexperientes e reformados (oficiais tornados excedentários devido à dissolução das suas unidades, os quais passavam a  receber uma pequena fracção do soldo e podiam ser incorporados de novo, mesmo como simples soldados). Estas unidades novas da ordenança, destinadas a combater nas fronteiras, eram constituídas apenas por um período de três meses, findo o qual oficiais e soldados eram desmobilizados. Em Fevereiro de 1644 ainda faltavam três companhias para completar o terço, que também necessitava de capitães e de um sargento-mor. Foi com este terço que, em Maio, Caley se bateu na batalha de Montijo, a qual provocou uma razia no exército do Alentejo. David Caley regressou a Lisboa para assumir o comando de um de três novos terços da ordenança, rapidamente levantados para suprir as baixas sofridas. Ainda com pouca instrução militar e sem armas, os cerca de 1.000 homens foram conduzidos pelo mestre de campo até Estremoz, onde finalmente receberam armas e munições capturadas aos espanhóis durante a campanha do ano anterior. Daí, partiram para Olivença, onde ficariam a fazer parte da guarnição.

David Caley conhecia agora muito bem o exército português, as suas características e principalmente as suas fraquezas. Ele e outros oficiais providenciavam instrução militar com regularidade aos soldados, mas tudo isso seria desperdiçado quando a unidade fosse desmobilizada, findos os três meses de serviço. Escreveu ao Conselho de Guerra a esse propósito e foi o próprio Rei que, em resposta à solicitação do escocês, enviou uma carta ao então governador das armas da província, Matias de Albuquerque, Conde de Alegrete:

Conde de Alegrete amigo, Eu El-Rei vos envio muito saudar como aquele que amo. David Caley me pede em uma carta que me escreveu, mande que a gente do seu terço seja paga, pois se conhece que de o não ser resulta grande desserviço [ou seja, prejuízo] meu, servindo os oficiais da primeira plana só três meses do ano e estarem ociosos os nove restantes no castelo de Lisboa, e por outras razões que se deixam considerar, para que o ensino e exercício que se vai dando à gente de que hoje se compõe o terço, se não perca por se ir afeiçoando a este exercício, estando já hoje de sorte que os mais aceitarão o não sair dele, podendo-se também considerar grande conveniência em que se pode poupar o trabalho e gasto que se faz em novas levas, encomendo-vos que inteirado de tudo e mandando-vos informar por um tenente de mestre de campo general, ou por quem melhor vos parecer, se os soldados deste terço, sendo da leva dos três meses, se acomodarão de sua própria vontade a assentar praça e ficar servindo nele de soldados pagos, me avisais do que se vos oferecer sobre esta matéria para se tomar nela a resolução que mais convenha a meu serviço. Escrita em Alcântara a 30 de Junho de 1644. Rei. (ANTT, Secretaria de Guerra, Livro 5º, fl.153 – a ortografia foi actualizada; as restantes fontes e bibliografia serão referidas no final desta série de artigos.)

O terço foi elevado à categoria de tropas pagas, mas as previsões optimistas não se confirmaram. Muitos soldados acabaram por não se adaptar à vida na fronteira de guerra e as deserções foram aumentando. Em Março de 1645 o terço foi dissolvido. A próxima etapa na carreira de David Caley passaria pela província da Beira.

(continua)

Imagem: Infantaria do período da Guerra Civil Inglesa. Reconstituição histórica, Kelmarsh Hall, 2007. Foto de Jorge P. Freitas.

Um escocês ao serviço de D. João IV – o mestre de campo David Caley (1ª parte)

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Desfeita a Monarquia Hispânica, o conflito entre os reinos vizinhos ibéricos atraiu muitos mercenários estrangeiros, dispostos a oferecer os seus serviços a qualquer dos exércitos. No caso de Portugal, eram muito apetecidos, no início da guerra, os militares que pela sua experiência e capacidade pudessem ocupar postos na cavalaria, onde se notava mais a falta de capitães e oficiais superiores com efectiva experiência de comando em cenário de guerra. Já na infantaria o caso não era tão premente, pois havia muitos oficiais com anos passados na guerra contra os holandeses no Brasil, ou contra os inimigos de Filipe IV (III de Portugal) na Flandres. O caso do escocês David Caley é uma dessas excepções, em que um estrangeiro acabou por comandar terços de infantaria portuguesa.

O mercenário David Caley chegou ao Reino em meados de 1641, acompanhado de um outro oficial, o inglês Christopher Potley. Ambos tinham uma longa carreira, tendo servido durante 30 anos nos exércitos dos reis da Suécia e da Dinamarca. Potley atingira o posto de coronel, enquanto Caley, que fizera o mesmo percurso, chegara a tenente-coronel. Em Portugal, propuseram a D. João IV constituir cada um o seu regimento de infantaria, recebendo em troca a patente de coronel e a respectiva paga, que era, em regra, o dobro da que usufruía um mestre de campo português. No caso destes súbditos do rei Carlos I de Inglaterra, o soldo atribuído foi bem mais generoso: 64.000 réis por mês (um mestre de campo português recebia 23.200 réis).

Não foi possível formar os regimentos conforme pretendiam os oficiais, que no entanto receberam as patentes de coronel. Em Agosto de 1641, David Caley e Christopher Potley acompanharam o governador das armas Martim Afonso de Melo na jornada para Elvas, quando o futuro Conde de São Lourenço assumiu pela primeira vez o governo das armas do Alentejo. Deviam servir a título individual e esperar que vagasse um posto de comando num dos terços portugueses do exército da província. Em 28 de Outubro de 1641, Caley e Potley estiveram presentes no assalto e saque de Valverde, na primeira operação ofensiva do exército português desencadeada na província da Extremadura espanhola. Uma operação confusa, dirigida pelo mestre de campo D. João da Costa (futuro Conde de Soure), na qual perdeu a vida o comissário geral Francisco Rebelo de Almada, que comandava operacionalmente a cavalaria então existente no Alentejo. O exército português sofreu muitas baixas nessa ocasião, tendo David Caley ficado ferido nos combates.

No início de 1642, Caley e Potley estavam de regresso a Lisboa. Como muitos outros oficiais estrangeiros ao serviço da Coroa portuguesa, abandonaram os seus postos na fronteira, exasperados com a falta de cumprimento no pagamento dos soldos. Regressaram ao Alentejo em Abril, após receberem o soldo de dois meses (entre os vários que estavam em atraso) e a promessa de que não veriam os pagamentos diminuídos. Corriam então rumores que os contratos com os estrangeiros iriam ser revistos, baixando-lhes as exageradas pagas, as quais eram incomportáveis para as finanças da Coroa; de facto, tal medida veio a ser tomada nos primeiros meses de 1643.

Talvez por isso Christopher Potley tenha decidido regressar a Inglaterra entre Abril e Junho de 1643 (viria a participar na Guerra Civil Inglesa, nas forças fiéis ao Parlamento). Entretanto, em 14 de Abril de 1643, recebera nova patente, a de mestre de campo, e o comando de um dos dois novos terços da ordenança de Lisboa que iriam ser formados e enviados para o Alentejo. Nunca chegou a assumir o posto, pelo que a unidade foi “herdada” por David Caley, que também recebera patente de mestre de campo. Foi à frente desse terço a 10 companhias que Caley fez a campanha de Setembro de 1643, no Alentejo e na Extremadura espanhola. O sargento-mor era um francês, João de Canton (o nome próprio era quase sempre aportuguesado nos documentos), o ajudante era Francisco Vaz Aranha, e os comandantes das companhias os seguintes: Roland Baix (alferes que comandava a companhia do mestre de campo – todos os outros a seguir referidos eram capitães), Lourenço Lousado, D. Vasco Coutinho, Álvaro de Carvalho, Francisco Barreto, Aires de Figueiredo, Manuel da Veiga, António Fernandes de Lima, Guilherme De Brum e Fernando Yanses. Note-se a seguinte curiosidade: as grandes unidades da ordenança de Lisboa eram tradicionalmente designadas por regimentos e não por terços, e os seus comandantes eram coronéis e não mestres de campo; todavia, os dois terços temporários que se formaram propositadamente para a campanha de 1643 não partilharam dessa tradição.

No decurso da campanha de 1643, Caley regressou a Valverde, onde tinha sido ferido cerca de dois anos antes. Desta feita, a localidade caiu nas mãos dos portugueses, bem como Villanueva del Fresno, rebaptizada Vila Nova de Portugal. Foi aqui que o terço de David Caley se manteve em guarnição durante algum tempo. Finda a campanha, a unidade foi dissolvida, e o mestre de campo escocês passou os meses seguintes alojado no castelo de S. Jorge.

(continua – fontes e bibliografia serão referidas no final da série).

Imagem: Piqueiros exercitando-se sob as ordens de um capitão. Reconstituição histórica do período da Guerra Civil Inglesa, em Old Sarum. Foto de Jorge P. Freitas.

Uma família em armas – os César de Meneses

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A figura controversa de Sebastião César de Meneses é bem conhecida dos estudiosos do século XVII português. Doutor em Direito Canónico, ligado à Inquisição desde 1626 (será Inquisidor Geral em 1663), foi Conselheiro de Estado de Filipe IV e, após 1640, de D. João IV. O ziguezague político foi frequente na sua carreira: Bispo do Porto, de Coimbra e de Braga depois da Restauração, esteve preso entre 1654 e 1656, acusado de servir os interesses de Filipe IV. Reabilitado pela Rainha regente D. Luísa de Gusmão, virou-se contra ela mais tarde, em 1662, ao apoiar o golpe palaciano de D. Afonso VI e alinhar com a facção liderada pelo 3º Conde de Castelo Melhor. Acabou por cair em desgraça em 1663, quando o exército de D. Juan José de Áustria conquistou Évora, cidade onde residia e era Inquisidor Geral. Em 1669 perdeu todos os cargos eclesiásticos que detinha, morrendo três anos depois. A sua obra marcante foi o tratado de teoria política Summa Politica (1649-50).

Não é deste eminente clérigo e estadista que o presente artigo trata, apesar da introdução ter sido dedicada ao membro mais famoso de uma família que também se distinguiu no campo das armas. Os irmãos e sobrinhos de Sebastião César de Menezes serviram com distinção durante a Guerra da Restauração, tendo alguns deles chegado a atingir postos e cargos de importância. Aliás, o progenitor, Vasco Fernandes César, fora capitão de cavalos na Flandres, “com muito boa opinião“, segundo o Conde de Ericeira (História de Portugal Restaurado, Porto, Civilização, 1945, vol. I, pg. 331).

Luís César de Meneses, irmão de Sebastião César e de Pedro César, era o mais velho dos três. Sucedeu a seu pai e foi alcaide-mor de Alenquer, comendador de Lomar e de Rio Frio, e titular do ofício de Provedor dos Armazéns e Armadas, o qual trocou pelo de Alferes Mor do Reino no reinado de D. Afonso VI (um cargo honorífico, que lhe garantia uma renda anual mais elevada que o anterior). Casou com D. Vicência Henriques, filha do Monteiro Mor e Conselheiro de Estado Manuel de Melo, da qual teve Vasco Fernandes César, Pedro César de Meneses e D. Guiomar Henriques. Faleceu em 1666.

Pedro César de Meneses (pai) era irmão de Luís César e de Sebastião César. Capitão-general de Angola em 1639, foi membro do Conselho de Guerra durante a Guerra da Restauração. Recebeu em 1659 a comenda de S. Salvador de Minhotães. Casou com a sobrinha, D. Guiomar Henriques, filha do seu irmão Luís César. Quando ainda servia nas fileiras do exército da monarquia dual, teve em Castela um filho bastardo, ao qual também chamou Pedro César (veja-se a última entrada deste artigo). Faleceu em 1666.

Vasco Fernandes César, filho primogénito de Luís César, serviu no exército do Alentejo. Morreu em 1659, na sequência de ferimentos recebidos durante o cerco de Badajoz, no ano anterior.

Pedro César de Meneses, outro filho de Luís César, sucedeu a seu pai na casa familiar. Durante a Guerra da Restauração, ocupou vários postos no exército do Alentejo. Serviu como general da cavalaria nos exércitos das províncias de Entre-Douro-e-Minho e de Trás-os-Montes. Após a guerra, foi nomeado governador e capitão-general de Angola, mas não chegou a ocupar o cargo, pois morreu num naufrágio a 40 léguas da costa angolana. Nunca casou, mas teve vários filhos ilegítimos: de Catarina de Jour, filha de um mercador francês, teve três filhos, e de uma mulher do Minho, duas filhas. À excepção do filho mais velho, que morreu ainda criança, todos seguiram a vida monástica.

Pedro César de Meneses, filho ilegítimo de Pedro César, nascido em Castela, foi capitão de cavalos, comissário geral da cavalaria e mestre de campo de um terço de infantaria no exército do Alentejo. Após a Guerra da Restauração, foi nomeado governador e capitão-general do Maranhão. Morreu solteiro, no Brasil.

Bibliografia:

ALBUQUERQUE, Martim de, “Para uma Teoria Política do Barroco em Portugal. A Summa Politica de Sebastião César de Meneses (1649-1650)”, in Estudos de Cultura Portuguesa, 2º vol., Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2000, pgs. 355-442.

SOUSA, D. António Caetano de, História Genealógica da Casa Real Portuguesa, Tomo V, Coimbra, Atlântida Livraria Editora, 1948, p. 174-176.

Imagem: Combate entre infantaria e cavalaria. Reconstituição histórica, período da Guerra Civil Inglesa, Kelmarsh Hall, 2008.

Efectivos dos terços do Alentejo após a mostra de Setembro de 1661

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A relação de efectivos de infantaria agora apresentada surge na sequência das listas publicadas no post anterior. Resulta de uma mostra que teve lugar em Setembro de 1661, actualizando as contagens das listas elaboradas entre finais de 1660 e inícios de 1661 (acrescidas das reconduções entretanto realizadas).

O facto mais relevante a constatar é o aumento do total de efectivos da infantaria paga em relação à mostra anterior: mais 457 homens. Número não menosprezável, considerando que, nessa mesma mostra, quase metade dos terços de infantaria que não conseguia ter nas suas fileiras um tal efectivo. Só três terços viram diminuir o número de militares: o de D. Luís de Meneses (talvez devido à ausência do futuro Conde de Ericeira na corte), o do napolitano D. Pedro, o Pessinga, e o de Agostinho de Andrade Freire, estes com uma quebra muito ligeira.

Terços e respectivos mestres de campo (MC)

Oficiais

Soldados

Totais

Variação em relação à mostra anterior

MC D. Luís de Meneses

90

880

970

– 47

MC D. Francisco Mascarenhas

103

737

840

+ 24

MC D. Pedro, o Pecinga

98

607

705

– 16

MC D. Jorge Henriques

82

366

448

+ 116

MC João Leite de Oliveira

86

550

636

+ 87

MC D. Pedro Mascarenhas

92

415

507

+ 176

MC Agostinho de Andrade Freire

101

670

771

– 19

MC Pedro de Melo

71

361

432

+ 112

MC Francisco Pacheco Mascarenhas

66

271

337

+ 69

MC Fernão da Mesquita Pimentel

78

377

455

+ 187

TOTAIS

867

5234

6101

+ 457

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1661, maço 21-A, “Relação dos Officiais, e Soldados da Infantaria e Cauallaria deste Ex.to que se acha effectiua, Conforme consta dos roes de Lista da ultima mrª, que se lhes passou na maneira seguinte”.

Imagem: Piqueiros em exercícios. Foto JPF, reconstituição histórica em Old Sarum, Inglaterra.

Efectivos dos terços pagos do Alentejo entre os finais de 1660 e os inícios de 1661 (incluindo reconduções até Setembro de 1661)

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A organização teórica dos terços de infantaria já foi aqui apresentada. No entanto, quase sempre os efectivos reais se afastavam (e muito) do que estava previsto no papel. As listas de pessoal, enviadas ao Conselho de Guerra após a realização das mostras, permitem-nos entender as tremendas variações existentes entre os terços pagos do exército da província do Alentejo. As listas que a seguir se publicam reportam-se à situação das unidades entre Setembro de 1660 e Setembro de 1661. Na segunda desta datas, os dez terços pagos compreendiam 855 oficiais (na verdade,  aqui incluíam-se também os sargentos do número e supranumerários) e 4.789 soldados, ou seja, 5.644 militares pagos de infantaria. Nota: as reconduções dizem respeito a soldados que se tinham ausentado das unidades sem licença (regressando a suas casas) e que eram de novo levados para a fronteira.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1661, maço 21, “Relação dos officiais e Soldados de Infantrª e Caurª q Se acharão neste Exc.to pla ultima mostra”.

Imagem: D. Luís de Meneses, Conde de Ericeira. No período acima referido, comandava um dos terços do Exército do Alentejo.

Terço do mestre de campo  D. Luís de Meneses

Oficiais

Soldados

Total

Mostras de 22 e 23/9/1660

98

554

652

Entrados (até Setembro de 1661) das levas do mesmo mestre de campo nas comarcas de Coimbra e Esgueira

323

323

Reconduzidos

42

42

TOTAIS

98

919

1017

Terço do mestre de campo D. Pedro, o Pecinga

Oficiais

Soldados

Total

Mostras de 21 e 22/9/1660

104

483

589

Entrados (até Setembro de 1661) das levas do mestre de campo Luís de Mesquita Pimentel na comarca de Évora

160

160

Reconduzidos

22

22

TOTAIS

104

665

769

Terço do mestre de campo D. Francisco Mascarenhas

Oficiais

Soldados

Total

Mostras de 22, 23, 24 e 25/9/1660

103

502

605

Entrados (até Setembro de 1661) das levas do tenente-general Francisco Velho de Avelar, governador de Stª Luzia, na comarca de Leiria e coutos de Alcobaça

130

130

Reconduzidos

81

81

TOTAIS

103

713

816

Terço do mestre de campo João Leite de Oliveira

Oficiais

Soldados

Total

Mostras de 14 e 16/12/1660

79

380

459

Até Setembro de 1661 não lhe tinha entrado recondução alguma da comarca de Santarém, nem de outra parte

TOTAIS

79

380

459

Terço do mestre de campo D. Jorge Henriques

Oficiais

Soldados

Total

Mostras de 13 e 16/12/1660

84

225

309

Entrados (até Setembro de 1661) das levas e reconduções na comarca de Torres Vedras

23

23

TOTAIS

84

248

332

Terço do mestre de campo Agostinho de Andrade Freire

Oficiais

Soldados

Total

Mostras de 10, 11 e 15/10/1660

114

676

790

Até Setembro de 1661 não lhe tinham entrado reconduções e levas das comarcas de Beja e Ourique

TOTAIS

114

676

790

Terço do mestre de campo Pedro de Melo

Oficiais

Soldados

Total

Mostras de 2 e 20/10/1660

85

235

320

Até Setembro de 1661 não lhe tinham entrado reconduções e levas da comarca de Ourique

TOTAIS

85

235

320

Terço do mestre de campo Francisco Pacheco Mascarenhas

Oficiais

Soldados

Total

Mostra de 15/12/1660

75

179

254

Até Setembro de 1661 lhe tinham entrado reconduzidos

14

14

TOTAIS

75

193

268

Terço do mestre de campo Fernão da Mesquita Pimentel

Oficiais

Soldados

Total

Mostras de 22 e 24/2/1661

84

268

352

Entrados (até Setembro de 1661) das levas do mesmo mestre de campo nas comarcas de Tomar e Ourém

182

182

Reconduzidos

8

8

TOTAIS

84

458

542

Terço do mestre de campo D. Pedro Mascarenhas

Oficiais

Soldados

Total

Mostras de 25 e 26/2/1661

29

249

278

Entrados (até Setembro de 1661) das levas

51

51

Reconduzidos

2

2

TOTAIS

29

302

331

As mostras (2ª parte)

Concluindo com o Regimento do Vedor Geral do Exército da Província do Alentejo acerca das mostras

Mostras

Cap. 32 – E o mestre de campo, ou pelo menos o sargento-mor, assistirão presentes à mostra do seu terço, para a infantaria, e para a cavalaria o tenente-general, ou ao menos o comissário geral, porque têm mais razão de conhecer os seus soldados, e estando eles presentes não é de crer algum se atreva a passar mostra por outro, porque seria descrédito grande seu fazer isto em suas presenças, e da mesma maneira cada capitão assistirá à mostra de sua companhia, porque também conheça os soldados dela, e neles se castigará com grande culpa deixar passar praça suposta [ou seja, alguém fazer-se passar por outro soldado], pois é impossível deixar de conhecer os seus soldados; e sucedendo nisto algum engano a que o capitão não acuda, se lhe dará em culpa, e constando que a teve, e que conhecia o soldado que se chamava pela lista, e que não declarou ser aquele que se apresentou falsamente, será privado da companhia para nunca mais a haver.

(…)

Cap. 34 – E porque as mostras se fazem, não só para se pagar aos soldados com boa ordem, e sem engano, mas para se tomar notícia de como está o exército, e que gente há nele, e como está armada, e aparelhada, mando que os oficiais que assistirem às mostras, que serão os que faz menção o capítulo 31, terão particular cuidado se os infantes trazem as armas bem limpas e consertadas, e se os de cavalo trazem as suas como convém, e os cavalos bem pensados [isto é, com os devidos pensos, rações individuais de aveia], e as selas bem consertadas, e vendo que nisto há falta os castiguem conforme a culpa que tiverem, logo por conta de seus soldos fará rebater o vedor geral o que for necessário para conserto das armas e selas, e feitasestas diligências, e as contidas nos capítulos antecedentes, e achando-se que o soldado é aquele, e a arma boa para servir, e havendo-se-lhe assinalado com a letra que passou a mostra, lhe contará o pagador sobre a mesa o dinheiro que se montar nos dias que se der socorro [ou seja, a quantia a que o soldado tiver direito].

(…)

Cap. 39 – E acabada de tomar a mostra, e feitos os pagamentos em mão própria, logo sem dilação alguma nas mesmas listas, no papel que ficar em branco depois dos assentos dos soldados, se farão e encerrarão os pés de lista, dizendo-se que em tal parte, a tantos de tal mês, se tomou a mostra a tal companhia, e que se acharam nela tantos oficiais da primeira plana, e declarando-se o soldo de cada um se sairá com ele por algarismo à margem, e depois se dirá que se acharam tantas praças ordinárias de mosqueteiros, e tantas de cossoletes [piqueiros], e arcabuzeiros, que todos fazem número de tantas praças, e desde tantos de tal mês até tantos de que naquela mostra se deu socorro (…), e nesta forma se encerrarão os pés das listas, e o assinará o oficial que o fizer, e o capitão de cada companhia no da sua, e do mesmo modo se fará em todos.

Fica assim completa a descrição do procedimento que era tido em cada mostra – excepto nas secas, onde não pingava o dinheiro e, portanto, eram abreviadas.

Imagem: Militares dando de beber aos cavalos. Quadro de Philips Wouwerman, séc. XVII, Museu do Louvre.

As mostras (1ª parte)

Por sugestão de João Torres Centeno, autor do blog Lagos Militar, e a propósito de um assunto que ali foi recentemente tratado, deixo aqui um artigo em duas partes sobre as mostras.

As mostras consistiam numa formatura geral das unidades – terços de infantaria e companhias da cavalaria (a artilharia era tratada à parte) -, durante as quais eram passados em revista os militares e o estado do equipamento individual, bem como das montadas. Se a finalidade era apenas fazer uma contagem dos efectivos, confirmando (ou não) as listas previamente elaboradas pelos sargentos das companhias de infantaria ou furriéis das companhias de cavalaria, entregues aos respectivos oficiais comandantes e confrontadas com as da vedoria, chamava-se mostra seca. Esta era motivo de desapontamento para os soldados. A mais desejada era a mostra que terminava com o recebimento do soldo, conforme estava estipulado no Regimento do Vedor Geral. O vedor geral era o responsável máximo pela administração e finanças do exército de cada província – num futuro artigo irei abordar este cargo, bem como os outros oficiais de pena, isto é, funcionários não-militares do exército provincial. Por ora, passarei a transcrever (em português corrente, como é hábito neste blog para facilitar a compreensão do texto) o que estipulava o Regimento do Vedor Geral do Exército da Província do Alentejo acerca das mostras.

Mostras

Cap. 30 – O vedor geral procurará achar-se presente a todas as mostras que lhe for possível, para que assim se tome com maior satisfação, e quando não puder assistir mandará que assistam seus comissários [de mostras, ajudantes do vedor], e o dia antes que a mostra se houver de tomar dará conta ao governador das armas para que mande lançar os bandos [editais militares], nos quais se diga a parte e o lugar onde os terços e as companhias hão-de acudir, e que venham todos com suas armas, e que ninguém se atreva a passar mostra por outrem sob pena de quatro anos de galés [a condenação a servir, como remador, nas galés da armada de costa, era um castigo muito temido].

Cap. 31 – E quando a mostra se tomar estarão os soldados recolhidos em algum pátio, ou parte que não tenha mais saída que uma porta, aonde estará a mesa, e estarão os oficiais, convém a saber, o vedor geral com os seus, que para aquele acto forem necessários, o contador [geral] com os seus, e o pagador geral com os seus, e com o dinheiro para ir logo fazendo os pagamentos, e um dos oficiais lerá as listas, e começando primeiro pelos oficiais maiores do terço, os irá nomeando um por um, e eles irão acudindo assim como forem chamados, e reconhecendo que são aqueles pelo sinal do assento, lhe porão em cima dele uma letra do A B C somente, que será uma mesma a todos em cada mostra, começando-se na primeira mostra pelo A e continuando-se nas mostras seguintes com as outras.

(continua)

Fonte: Regimento do Vedor geral do exercito da Prouincia do Alentejo, Arquivo Histórico Militar, 1ª divisão, 2ª secção, caixa 3, nº 1, cópia manuscrita, do séc. XIX, do original seiscentista.

Imagem: Formatura de uma companhia de infantaria. Note-se que se trata de uma reconstituição histórica (no caso, da Guerra Civil Inglesa), pelo que a “companhia” é necessariamente reduzida para efeitos de escala visual com o resto do “regimento” e do “exército” – todavia, na realidade, as companhias de infantaria do séc. XVII estavam por vezes tão desfalcadas de efectivos como as das sociedades de reconstituição histórica actuais. Foto do autor. Kelmarsh Hall, 2007.

Postos do exército português (13) – o mestre de campo

Os mestres de campo ou são feitos por grande qualidade [fidalguia] ou por grandes serviços [desempenhados na guerra].

(carta de Matias de Albuquerque, Conde de Alegrete, 22 de Agosto de 1644, in Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI, publicadas e prefaciadas por P. M. Laranjo Coelho, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, vol. II, pgs. 57-58).

O posto de mestre de campo tinha grande prestígio. Ao tempo da Guerra da Restauração existia também nos exércitos espanhol e francês. Encontrava-se apenas na infantaria e correspondia ao posto de coronel, designação que em épocas posteriores iria substituir por completo a de mestre de campo. Em rigor, havia coronéis no exército português em simultâneo com mestres de campo, pois por tradição as grandes unidades da ordenança de Lisboa eram designadas regimentos (e não terços, embora este nome surja de vez em quando nos documentos, um pequeno erro gerado pelo hábito).

De facto, atendendo ao que exigiam as regras militares, reflectidas no projecto de Ordenanças Militares de 1643, para se ascender ao posto de mestre de campo era necessário ter servido durante 12 anos em cenário de guerra, dos quais 4 no posto de capitão. Desta conformidade estavam isentas as pessoas de qualidade e nobreza, o que na prática significava que os terços podiam por ser entregues a elementos da fidalguia sem a necessária experiência militar. Sobre o sargento-mor recaía então uma responsabilidade maior.

De qualquer modo, se exceptuarmos os primeiros anos da guerra, esta situação foi relativamente rara. Houve fidalgos que se revelaram bons mestres de campo. Ao posto ascenderam também vários soldados de fortuna, com tirocínio feito nos escalões inferiores, vários deles estrangeiros. Isto no exército pago, pois nos auxiliares e na ordenança era frequente o sargento-mor ter de desempenhar o comando efectivo do terço, dado o absentismo dos mestres de campo, ou a sua inexperiência militar.

O mestre de campo dispunha de um cavalo, se bem que houvesse quem preferisse desmontar e munir-se de espada e rodela, combatendo a pé no calor da refrega.

Imagem: Combate de infantaria. Recriação histórica da Guerra Civil Inglesa, Kelmarsh Hall, 2007. Foto do autor. Reorganizar o esquadrão de infantaria depois da confusão do choque era uma tarefa difícil, mesmo que se rompesse o contacto com alguma ordem. A maioria dos mestres de campo confiava na experiência dos seus sargentos-mores para esse fim.

Relação do saque e queima da vila de Membrio em 28 de Abril de 1644 (3ª e última parte)

Enquanto a força comandada pelo tenente de mestre de campo general Diogo Gomes de Figueiredo (pai) se preparava para iniciar o assalto a Membrio,

(…) O terço de Dom Nuno Mascarenhas (…) fez alto, formado em dois batalhões para aquela parte donde podia vir socorro inimigo, e os nossos batedores de cavalo bem ao largo do lugar por fora da cavalaria, para avisar se de Valença [Valencia de Alcántara], Ferreira [Herreruela], Carvajo [Carbajo] e outros lugares daqueles redores lhe vinha algum socorro.

É de notar a referência ao emprego, muito vulgar nas incursões, de uma força de cobertura e apoio, normalmente composta por um ou mais terços de infantaria e alguma cavalaria. A sua missão era aguardar, num determinado ponto afastado do objectivo, pelas unidades mais móveis que executavam o golpe de mão, evitando a intercepção destas por eventuais forças inimigas de reforço. Finda a acção de saque e pilhagem, a força pilhante incorporava-se com a de cobertura e apoio, regressando às suas praças de origem com o produto do saque. Este procedimento era posto em prática por ambos os exércitos beligerantes nas respectivas entradas em território inimigo. Mas prossigamos com a acção em Membrio:

Resistiram os nossos pelejando contra o inimigo fortificado na igreja mais de quatro horas, fazendo-lhe muito dano com a mosqueteria e granadas, e porque o principal intento era queimar o lugar depois de saqueado (…), brevemente ardeu de sorte que nenhuma casa ficou por abrasar, aproveitando-se do saque mais os moradores de nossas fronteiras do que os soldados, que nesta ocasião só se empregaram em pelejar, não largando nunca as armas da mão.

Vendo o tenente [de mestre de campo] general Diogo Gomes que tinha satisfeito com a ordem que levava, porque para o mais que a ocasião e o ânimo dos soldados lhe oferecia não levava instrumentos convenientes, e que os mesmos capitães, por falta deles, faziam torneiras [buracos por onde podiam disparar] nas paredes com as adagas e as espadas, e que as informações que se deram do lugar foram que não havia nele coisa forte, e que da igreja lhe matavam alguma gente, não podendo atalhar este dano por[que] as nossas granadas não eram de proveito por ser muita a distância, mandou pôr fogo às casas junto da igreja, para que com o fumo, ou não fôssemos vistos, ou se o inimigo saísse nós entrássemos com ele de companhia na sua fortificação. E reconhecendo tudo pessoalmente, ordenou aos capitães que retirasse a gente com estes intentos, o que se fez com muito vagar e boa ordem, e porque então com mais ousadia se descobria o inimigo, é provável que se lhe matou muita gente, assim o disse um prisioneiro (…).

Retirada toda a gente à parte donde havia desmontado a infantaria das cavalgaduras de albarda, juntamente cinco soldados mortos e dois artilheiros, catorze ou quinze feridos, entre os quais foi o capitão Inácio Pereira com três balázios, o ajudante António da Costa e três sargentos e os demais soldados, a que o padre Frei Simão de Lima acudia entre as balas a confessar e fazer curar com grande caridade e valor, e postos todos a cavalo por caminho mais breve se marchou para Castelo de Vide à vista de Valença, recolhendo a nossa cavalaria toda a sorte de gado que se achou por aqueles distritos, que foi muito, e fermoso.

O inimigo saiu de Valença com intento de impedir-nos o passo no rio de Sever, que por ali não é tão fragoso, e tendo disto notícia (…) [Diogo Gomes] se adiantou com 200 mosqueteiros e duas tropas de cavalos da vanguarda a ocupar primeiro aquele passo (…).

Passou a nossa gente o rio antes da noite, e (…) a sexta-feira de madrugada se entrou em Castelo de Vide, donde depois de se refrescarem os soldados e a cavalaria com pão e cevada que ali tinha Dom Nuno Mascarenhas, prevenido se partiu cada um a seu alojamento, entrando nesta cidade de Elvas ao sábado último de Abril passado (…).

Fonte: Rellação do saque e queima da Villa de Membrio em 28 de Abril deste prezente anno de 644 (AHM, 1ª divisão, 2ª secção, caixa 2, nº 26).

Imagem: Cavalaria e infantaria do período da Guerra Civil Inglesa, contemporânea da Guerra da Restauração. Foto do autor. Kellmarsh Hall, 2007.

Relação do saque e queima da vila de Membrio em 28 de Abril de 1644 (2ª parte)

A força portuguesa comandada por Diogo Gomes de Figueiredo (pai) chegara a Portalegre e fazia os preparativos para a jornada até ao objectivo. Continuando a narrativa:

Chamados os homens práticos que havia[m] de guiar ao tenente [de mestre de campo] general (…) se resolveu que se não podia partir aquela mesma tarde, (…) porquanto se não podia ir amanhecer a Membrio pela distância do caminho, pela sua fragosidade, pelos ruins passos de dois rios que desembocam no Tejo, Sever e Alburrel, e pelo cansaço das cavalgaduras, que até então não haviam parado, nem comido, e que assim mais convinha partisse ao outro dia pelas nove horas, para ir ao lugar à quinta-feira ao amanhecer, tempo mais acomodado para semelhantes facções.

Marchou-se na hora sinalada a quarta-feira, por caminhos tão ásperos e estreitos que sempre iam soldados enfiados uns atrás outros. Fez-se alto de noite, depois de passar os rios, [a] duas léguas [c. 10 km] de Membrio até sair a lua, que foi pela meia-noite, em que houve tempo, ainda que breve, para refrescar a infantaria e cavalaria.

Daqui se começou a marchar com grande silêncio e boa ordem por não serem sentidos, e chegados ao romper da alva à vista do lugar de Membrio, ocupou a cavalaria os postos mais altos, rodeando, e detrás de umas árvores, a pouco mais de tiro de mosquete, se apeou a infantaria, e formada em troços de mosqueteiros, depois de reconhecidas as partes por onde se havia de investir o lugar, se repartiu a todos com grande brevidade as granadas, os fechos e as escadas que haviam de levar (…).

Separou o tenente [de mestre de campo] general 80 piques, que levava em um batalhão com suas guarnições, que todos pelo desejo que tinham de pelejar ficaram de má vontade, e logo adiante com quatro mangas de mosqueteiros (…) a bom passo se foi para o lugarejo debaixo de sua mosquetaria. Dividiu aos quatro capitães para quatro partes sinaladas, para que se investisse a praça, e detrás, em socorro destas mangas, ordenou outras quatro (…).

Com pouca resistência treparam as primeiras trincheiras até abarbarem de carreira com a igreja [para] onde o inimigo se retirou fugindo, e se fez forte, porquanto uma hora antes de se avistar o lugar foi a nossa gente sentida, ou já por se haverem adiantado uns cavalos holandeses a furtar o gado, ou já porque a gente solta de nosso país, que saiem à pilhagem, deram com uns lavradores, de que escapando algum, foi dar aviso à vila, e fez recolher com tempo a mais da gente e mulheres à igreja, que assim o disse (…) um castelhano que pouco antes se havia tomado, e que no lugar havia uma companhia de 80 homens pagos e mais de 300 que tomaram armas.

A narrativa terminará no próximo artigo.

Imagem: Tropa de Cavalaria. Quadro de Peter Snayers, c. 1640. Kunsthistorisches Museum, Viena.

Relação do saque e queima da vila de Membrio em 28 de Abril de 1644 (1ª parte)

A relação que hoje aqui trago não consta do rol de narrativas propagandísticas impressas, nomeadamente do levantamento coordenado por Martinho da Fonseca em 1927 (Elementos bibliográficos para a história das guerras chamadas da Restauração 1640-1668, separata de Arquivo de História e Bibliografia, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1927). Dela existe uma cópia manuscrita no Arquivo Histórico Militar, feita provavelmente nos finais do século XIX. Não sendo muito diferente de outras narrativas apologéticas, esta tem um interesse acrescido pela informação detalhada acerca dos procedimentos tácticos numa incursão mista de cavalaria e infantaria (na versão de dragões improvisados).

A acção ocorreu depois da primeira incursão do governador das armas do Alentejo, Matias de Albuquerque (futuro Conde de Alegrete), à vila de Montijo, cerca de um mês antes da segunda incursão que culminaria na célebre batalha campal. Eis a relação dessa entrada, nas passagens mais significativas e numa escrita actualizada.

Depois de vir o senhor Matias de Albuquerque da jornada de Montijo em 20 de Abril passado, começou a dispor outra, para a qual elegeu por cabo a Diogo Gomes de Figueiredo, tenente de mestre de campo general deste exército [do Alentejo], que com 800 mosqueteiros montados de dois em dois, em quatrocentas bestas de albarda, e duzentos cavalos a empreendeu com particular disposição pela maneira seguinte.

Dos terços que aqui se acham nesta praça de Elvas escolheu oito companhias de infantaria, a 90 mosqueteiros e a dez piques cada uma, e foram os capitães Domingos Carneiro, Inácio Pereira de Aragão e Fulgêncio de Matos, do terço do mestre de campo João de Saldanha, e do terço de Luís da Silva os capitães João de [A]Morim, André de Araújo, Francisco Fernandes o Canastreiro [o mesmo que iria participar na defesa da ponte de Olivença, dois anos mais tarde] e Fernão de Mesquita, e do terço do Conde do Prado o capitão Cristóvão Pantoja; levou consigo para a distribuição das ordens o capitão Bernardim de Sequeira, ajudante de tenente [de mestre de campo general] e os ajudantes Francisco Manuel e António da Costa, aquele do terço de João de Saldanha, e este do terço de Luís da Silva, e todos estes oficiais levaram soldados de muito valor (…). A cargo de um gentil-homem de artilharia [posto de oficial artilheiro] iam doze artilheiros com cem granadas, cem fechos, seis escadas, quatro cargas de pólvora, quatro de corda e quatro de balas sortidas; acompanhou ao tenente [de mestre de campo] general o cirurgião-mor do terço da Armada, e o capelão-mor do terço de João de Saldanha, o padre Frei Simão de Lima, que para isso se lhe ofereceu, como também o fez o capitão reformado Amador Rodolfo.

Partiu desta cidade segunda-feira pela manhã, que se contavam 25 do passado [Abril] (…), e pelo caminho de Barbacena e de Assumar se foi dormir a Portalegre, que são oito léguas [c. de 40 km] desta cidade, e ao outro dia a Castelo de Vide, donde pelo ruim caminho chegou às três horas da tarde, ali deu umas ordens que levava do governador das armas ao mestre de campo Dom Nuno Mascarenhas [morreria na batalha de Montijo, um mês depois], que assiste naquela cidade com o seu terço, e outro ao capitão de cavalos João de Saldanha da Gama, que por mais antigo governava as companhias de cavalo que ali se achavam, como eram a de António de Saldanha, a de Fernando Pereira de Castro, e as Holandesas de Vagenheim, e outra de dragões da mesma nação, com mais uma companhia de cavalos da ordenança de Portalegre.

Achou aqui o tenente [de mestre de campo] general Diogo Gomes de Figueiredo segunda ordem do Senhor Matias [de Albuquerque] para que com o mestre de campo Dom Nuno e os capitães de cavalos, assentassem a parte aonde ele havia de ir fazer a facção, porquanto aquela para que o tenente [de mestre de campo] general trazia as primeiras ordens se havia alterado com segunda informação de Dom Nuno, (…) porque a primeira ordem era uma praça distante de Castelo de Vide 12 léguas [c. de 60 km], e os soldados não levavam mantimentos para gastar tantos dias, e assim se resolveu que a empresa fosse à vila de Membrio, 7 léguas [c. de 35 km] distante daquela praça.

Era esta vila de mais de 100 vizinhos [c. de 450 habitantes] e com fama de rica pelo trato que tinha das lãs, situada em um lhano, e quase toda de casas terreiras, estava cercada de trincheiras de terra e barro, e as mais das bocas das ruas com suas costaduras da mesma; tem no meio uma igreja com sua torre quadrada, alta e coroada de ameias, donde se descortinavam as mais das ruas, ou por suas bocas, ou por cima dos telhados das casas, por serem baixas, defronte da porta da igreja todo o terreno, adro à maneira de meia lua, com uma parede de altura de dois homens, e vinte pés afastada do adro outra parede a modo de barbacã, que testavam nas esquinas das ruas que iam para a igreja, pelo lado esquerdo dela havia um cercado, onde estava algum gado, e pela direita outro cercado a modo de cemitério, que tornejava a sacristia, tudo com suas torneiras, donde se disparava.

Está montado o cenário. Será continuada a narrativa na próxima entrada.

Nota: os tenentes de mestre de campo general eram considerados oficiais colaterais, que hoje diríamos de Estado-Maior, destinados a distribuir as ordens emanadas do mestre de campo general pelas unidades. Não deveriam comandar contingentes de tropas, excepto em circunstâncias muito extraordinárias. O prestígio de Diogo Gomes de Figueiredo e Bobadilha (pai – o seu filho homónimo também se celebrizou durante a guerra) foi motivo para uma dessas excepções.

Imagens: em cima, Membrio (grafado como Membrilho, forma que aparece por vezes na narrativa transcrita) no mapa de João Teixeira Albernaz, c. de 1650. Biblioteca Nacional, Iconografia, CC254A; em baixo, Membrio na actualidade. Reprodução de imagem obtida a partir do programa Google Earth.

Uma entrada nos campos de Brozas – Dezembro de 1652 (2ª parte)

Continuemos a narrativa de Mateus Rodrigues (Matheus Roiz), que deixámos com o resto da força incursora já em território espanhol, na zona de Albuquerque, nos cabeços denominados As Duas Hermanas.

Assim como chegámos começaram logo de ir acomodando tudo mui bem para que ficasse bem formado de noite; e logo mandaram muitas partidas ao largo, a vigiar a campanha, e a tudo isto fazendo o mais notável frio e água que nunca fez, e o pior de tudo que nunca o mestre de campo general quis deixar fazer fogo a ninguém, para que o inimigo não soubesse aonde ele estava, nem lhe visse o poder que levava. (…) [O inimigo] veio aquela mesma noite com 100 cavalos por uma estrada que vem de Badajoz para Albuquerque para ver o nosso poder e onde estávamos; mas nunca o pôde saber, porquanto por donde ele vinha estava um tenente nosso, muito grande soldado, por nome Francisco de Matos, o Coxo, com 40 cavalos todos escolhidos das tropas, e tendo as sentinelas postos mui ao largo na estrada e fora dela.

Dado o alarme, foi alertado D. João da Costa, que enviou reforços ao tenente Francisco de Matos. No entanto, a força de cavalaria espanhola não atacou, nem houve mais incómodos durante aquela noite. Mas o governador de Badajoz fôra posto a par da incursão, desconhecendo todavia a real dimensão da força portuguesa. Mandou buscar reforços de cavalaria a todas as guarnições da região, pensando que seria o bastante para enfrentar o inimigo, sem saber que havia terços de infantaria entre os invasores.

Assim como amanheceu, logo Dom João da Costa se começou [a] aparelhar para marchar, para ir esperar as tropas que tinham ido a Brozas, porque já lhe parecia que faziam mais dilação [ou seja, demora] do que eles tinham lançado conta, e assim que pondo-se em marcha para as ir esperar quando logo vem um aviso de que vinham já as tropas. Folgou muito Dom João da Costa, porque lhe davam elas grande cuidado, e assim que as viu as mandou logo incorporar connosco, porque não traziam pilhagem de consideração, porquanto foram sentidos na entrada e não acharam que trazer mais que 200 bois e 1.000 carneiros.

Incorporadas as forças regressadas da expedição a Brozas e iniciada a marcha, chegou a notícia de que o inimigo ia aparecendo á vista com muita cavalaria, mas sem infantaria. Logo D. João da Costa tratou de formar em batalha o seu pequeno exército – nesta época ainda não se praticava a marcha de costado, ou seja, as forças marchando em formação de batalha, a qual, embora fosse conhecida em teoria pelos portugueses, só após 1661 foi utilizada, graças ao Conde de Schomberg. Ofereceu-se o capitão francês Stéphane Boule de Rosières para dispor as forças em formação de batalha, o que foi aceite por D. João da Costa, conhecedor da grande experiência na matéria por parte daquele oficial (promovido a comissário geral, Rosières morreria no ano seguinte ao desta incursão, em consequência de ferimentos recebidos no combate de Arronches). Não demorou muito para que ficasse o exército pronto para a peleja.

(…) Quando neste meio tempo vem o inimigo apresentar-se por cima de uns outeiros com tanta cavalaria que a todos nós pôs certeza de haver choque (…); e assim que logo começaram muitos a buscar confessor para se confessarem, e o nosso general da cavalaria André de Albuquerque se vestiu de suas couraças, com suas plumagens brancas na viseira do murrião mui bizarro, fazendo grandes práticas [ou seja, discursos] aos capitães e soldados, que todos cuidavam que não passasse o dia sem choque.

O combate acabaria por não se dar. A força de cavalaria espanhola contava 1.800 efectivos, mas o seu comandante, verificando que o total da sua força era muito inferior aos 1.400 cavalos e 3.000 infantes dos portugueses, optou por retirar-se. Apenas aconteceu uma escaramuça entre companhias que faziam o reconhecimento de ambos os lados, na qual entre 20 a 30 cavaleiros espanhóis foram capturados. Curiosa é a observação de Mateus Rodrigues a respeito do general da cavalaria inimiga, que não nomeia, mas que

(…) os soldados castelhanos bem o diziam, enquanto ele serviu, que su general de la cavalaria era bueno para fraile, mas para soldado no, pues no queria pelejar nunca jamás [em castelhano no original].

Quanto ao saldo da incursão, depois de três dias de muita chuva e muito frio, só 200 bois foram pilhados, e esses acabaram por ser repartidos entre os generais, mestres de campo e capitães de cavalos. Mateus Rodrigues não esconde o seu desapontamento a este respeito. Ficaram a perder os soldados… e as populações às quais o gado fora roubado.

Bibliografia: Manuscrito de Matheus Roiz, transcrição do códice 3062 [Campanha do Alentejo (1641-1654)] da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Lisboa, Arquivo Histórico Militar, 1952, pgs. 314-318.

Imagem: “O alto dos cavaleiros numa floresta”, Peter Snayers, década de 1650, Museu Hermitage, S. Petersburgo. Note-se a cena de pilhagem, à direita – uma constante da passagem de militares por qualquer zona povoada, mesmo que minimamente o fosse.

Uma entrada nos campos de Brozas – Dezembro de 1652 (1ª parte)

Num cenário mais a jusante do que foi descrito no artigo imediatamente anterior ocorreu a incursão que a seguir é narrada. Os campos de Brozas foram o alvo da rapinagem perpetrada pelas forças portuguesas. Desta feita, a propaganda coeva dá lugar à palavra escrita pela pena de um combatente, o soldado Matheus Roiz (Mateus Rodrigues), em cujo testemunho se baseia a descrição da operação – corresponde ao capítulo 49 da versão transcrita, pertencente ao acervo do Arquivo Histórico Militar e já aqui referida.

Os campos de Brozas ficam já no distrito da província da raia da parte de Cidade Rodrigo e A Sarça [La Zarza], onde está um comissário do inimigo por nome Mazacan, que tem o seu regimento 700 cavalos, e como estes campos de Brozas são terras aonde o inimigo traz sempre muita quantidade de gados, quis o nosso mestre de campo general e governador das armas [do Alentejo] Dom João da Costa ver se por esta via podia armar ao inimigo a que lhe saísse, de modo a que pelejasse com ele.

Observe-se a semelhança de propósitos entre os chefes militares de ambos os lados, confrontando com o que foi descrito no artigo anterior. Era a constante da pequena guerra, causadora de desgaste para as forças militares, mas principalmente para as desgraçadas populações raianas. Era também um modo de assegurar alguns recursos para os combatentes, uma vez que os soldos eram escassos no provimento.

E assim se determinou a mandar aos ditos campos 10 ou 12 tropas de cavalo, porque tinham boa entrada pela parte de Campo Maior indo por Albuquerque, de modo que não fossem sentidas (…). Dois dias antes que Dom João da Costa o fosse aguardar, entrou [o capitão] João da Silva [de Sousa] ao longo de Albuquerque uma légua, mas não foi sentido, que nisso constava sua segurança.

Agora atentemos na disposição táctica da força mista de cavalaria e infantaria em marcha:

Assim como lhe pareceu a Dom João da Costa que eram horas de sair [de noite], marchou com os três terços de Elvas e com toda a mais cavalaria. (…) [Levou] toda a cavalaria de vanguarda e uma companhia muito mais avançada diante, que ia descobrindo a campanha, e levava batedores por todas as partes e a companhia que então ia diante era a minha, e o capitão dela Francisco Pacheco Mascarenhas, (…) levava o meu capitão dois batedores de cada lado, avançados da tropa um tiro de cravina [carabina], e um pela estrada adiante, (…) [que] era eu.

Na noite de claro luar, a cavalaria passou um curso de água conhecido por ribeiro do Judeu, que ficava no meio do caminho para Campo Maior, mas teve de deter-se para dar tempo a que a infantaria atravessasse o ribeiro, o que levou muito tempo. Enquanto se estava neste impasse e o grosso da cavalaria aproveitava para desmontar e descansar os animais, o batedor Mateus Rodrigues vigiava uma vereda que era habitual ponto de passagem de tropas espanholas quando faziam as suas incursões. Foi então que

(…) eu vi vir uma partida de seis ou 7 cavalos, uns atrás dos outros, pela mesma vereda; (…) não podiam ser dos nossos, que os [nossos] batedores eram menos e além disso iam já adiante, e tanto que os vi levanto o cão da pistola, que a tinha na mão, (…) e perguntando-lhe[s] quem vive duas ou três vezes (…) me não responderam nada senão avançar a mim à rédea solta, ao que eu logo toquei arma [ou seja, disparou um tiro de aviso] com a pistola.

Toda a cavalaria portuguesa entrou em alvoroço e o que se passou a seguir foi confuso. Mateus Rodrigues fugiu para junto da sua companhia. Procuraram os supostos inimigos, mas não toparam ninguém, pelo que Mateus Rodrigues foi acusado pelos camaradas de ter confundido tropas portuguesas com castelhanos. O memorialista manteve-se firme na afirmação de que avistara um grupo de 6 ou 7 cavaleiros inimigos, e segundo escreve, no decurso da operação os factos demonstraram que tinha tido razão. Encerremos por ora esta primeira parte com a narração da aproximação e entrada em território hostil:

Fomos marchando até Campo Maior aonde já os dois terços nos estavam aguardando cá fora no rossio; e assim como chegámos logo nos pusémos em marcha, (…) e quando o sol saía já nós íamos passando a ribeira de Xévora; fomos marchando pela campanha à vista de Albuquerque, que era aonde nós íamos fazer a espera da nossa gente que ia a Brozas, e assim quando era a tarde com duas horas de sol já tínhamos chegado ao posto que chamam ali As Duas Hermanas, porque são dois cabeços mui altos que estão um à vista do outro e por isso lhe puseram tal nome.

Bibliografia: Manuscrito de Matheus Roiz, transcrição do códice 3062 [Campanha do Alentejo (1641-1654)] da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Lisboa, Arquivo Histórico Militar, 1952, pgs. 310-313.

Imagens:

Em cima, zona dos campos de Brozas na actualidade (a amarelo, a linha de fronteira); reprodução de imagem obtida a partir do programa Google Earth.

Em baixo, “Combate sobre uma ponte”, água-forte do pintor flamengo Peter Snayers (1592-c. 1667), Courtauld Institute of Arts, Londres.

O uso de uniformes entre a infantaria

A dotação de vestidos de munição aos infantes dos terços portugueses não significava a existência de qualquer uniformização quanto à cor do vestuário ou ao padrão. É provável que, por uma questão de aprovisionamento do vestuário, as casacas, camisas e calças tivessem pontualmente uma cor comum, consoante o lote fornecido pelo vendedor. Contudo, isso seria fruto do acaso e não da determinação de qualquer ordem específica. Julgando pelas representações iconográficas coevas, já aqui apresentadas em anteriores artigos, os castanhos e os cinzentos predominavam entre os soldados. Mas no essencial, o trajo básico do militar de infantaria pouco diferia do trajo civil. A evolução da moda da época, com as variantes locais e as influências externas, encarregava-se de marcar as diferenças ao longo dos anos.

A este respeito, há equívocos que ainda hoje subsistem. Por exemplo, é muito vulgar encontrarmos desenhos e pinturas supostamente representando militares “do período da Guerra da Restauração”, que no entanto são quase decalcadas das ilustrações do célebre manual The exercise of arms de Jacob de Gheyn, impresso em 1607. A moda civil e militar das décadas de 40, 50 e 60 do século XVII já muito pouco tinha em comum com a representada naquelas gravuras, conforme revelará uma observação cuidada de algumas fontes iconográficas genuínas.

A influência estrangeira terá estado na origem da uniformização registada em algumas unidades portuguesas de infantaria na década de 60. As forças inglesas e francesas que combateram em Portugal nesse período já tinham uniformes – casacas vermelhas com vivos de diferentes cores para cada um dos regimentos ingleses, e casacas em cinzento claro debruadas com as respectivas cores regimentais no caso das francesas. Exceptuando os ingleses, cujo uniforme teve génese em 1645, com o New Model Army de Oliver Cromwell, os restantes exemplos parecem ter tido origem na vontade dos respectivos comandantes, embora em França a tendência corresse já para o uso de uniformes nos regimentos. Há também referências a unidades do exército de Filipe IV de Espanha que se apresentavam com uniformes na mesma época. Quanto ao exército português, as descrições mais completas surgem no Mercurio Portuguez, publicação mensal lavrada pela pena de António de Sousa de Macedo, que no número de Abril de 1664 reportava:

Aos 14 (…) à tarde fez uma bizarra mostra e exercício militar no Terreiro do Paço (estando Sua Majestade o Senhor Infante [D. Pedro] vendo de uma janela) o terço da Armada Real, de que é mestre de campo Simão de Vasconcelos e Sousa; saiu todo com casacas verdes, forradas e guarnecidas de amarelo; a do mestre de campo e oficiais e alguns soldados eram mais custosas, conforme ao cabedal [capacidade financeira] de cada um, mas as cores as mesmas; assim o eram também as bandeiras e a pintura das caixas [de guerra, tambores], e certo que faziam a vista mais alegre que se pode imaginar. (…)

Aos 17, também à tarde, à vista de Suas Majestades e Alteza, fez outra semelhante mostra e exercício no mesmo Terreiro o terço novo da guarnição desta Cidade de Lisboa, de que é mestre de campo Roque da Costa, todo com casacas azuis forradas e guarnecidas de vermelho, mais ou menos custosas, conforme a possibilidade de quem as vestia.

(Como é hábito, transcrevi as passagens em português corrente).

Note-se que as casacas seriam quase certamente compridas, ao estilo francês, imitando as usadas pelo Conde de Schomberg e pelas tropas francesas. Aliás, a influência estendeu-se ao exército espanhol, onde este tipo de casacas passou a ser conhecido por “xombergas”.

Bibliografia: Mercurio Portuguez, com as novas da guerra entre Portugal, e Castella.

Imagem: O uso de uniformes regimentais era comum no exército sueco de Gustavo Adolfo, bem como em ambos os campos da Guerra Civil Inglesa (1641-51). Foto do autor, reconstituição histórica, Kellmarsh Hall, 2007.

Postos do exército português (8) – o capitão de infantaria

O capitão de infantaria comandava uma companhia. A insígnia do seu posto era uma gineta, espontão rematado com borlas na parte superior da haste. Em combate, o capitão podia encarregar o seu pajem do transporte da gineta e armar-se com um pique, um mosquete ou (o que era mais vulgar) combater com espada e rodela. O posto de capitão de infantaria era considerado inferior ao de capitão de cavalos, todavia era um posto de grande consideração na hierarquia militar seiscentista. Sobre a maneira de prover os capitães das companhias, tanto das tropas pagas como das milicianas, esclarece o título 9 do projecto de Ordenanças Militares de 1643:

Para capitães das companhias de infantaria se elegerão alferes reformados e ajudantes, em que uns e outros hajam servido oito anos na guerra com praça assentada debaixo de bandeira, que tenham as partes necessárias para exercitarem com prática e experiência o muito que a cada um deles se oferece e encarrega cada hora que exercitar, e os que forem de mais serviços e aprovados merecimentos nas ocasiões para maiores riscos e empenhos, precederão para serem escolhidos (…).

Porém, como em muitas outras passagens das Ordenanças Militares de 1643, Joane Mendes de Vasconcelos discordou de pormenores do projecto. No caso dos capitães de infantaria, a proposta ia contra a prática assente e instituída de facto, pelo que o experiente cabo de guerra contrapôs:

Nos terços fazem vantagem aos alferes reformados e vivos [isto é, no activo] os que são actualmente da companhia do mestre de campo, porque como governam (de ordinário) a melhor companhia deles, têm maior capacidade a este respeito que os outros, escusa consultarem-se a segunda companhia, que vaga em seu tempo, como também nos esquadrões a segunda manga de bocas de fogo do corno direito se lhes entrega firme. [Note-se, na parte final deste comentário, a referência à disposição e comando táctico.]

Também se devem admitir os alferes vivos para capitães de infantaria, toca também ao alferes entrar em capitão quando em ocasião de peleja morre o capitão da companhia, achando-se o tal alferes na mesma ocasião e proceder nela conforme as suas obrigações, e em sua pessoa concorrem as partes e requisitos convenientes.

As observações de Joane Mendes de Vasconcelos foram todas dirigidas à promoção dos alferes ao posto de capitão nas companhias de infantaria, pois que as funções inerentes ao posto eram bastante claras e sabidas, nem sendo sequer focadas no projecto – excepto no que respeitava aos ditames de ordem comportamental e moral que o capitão devia seguir. Mas aí, a resposta de Mendes de Vasconcelos foi clara:

A repreensão dos vícios que contém este capítulo toca a todos os postos, e assim me parece que se devia encomendar em título particular a conta que hão-de ter os conselheiros e os generais e não proporem a Vossa Majestade para os cargos militares pessoas conhecidas perniciosas, com escândalo.

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 55-56.

Imagem: Nesta foto de uma reconstituição histórica levada a cabo pela English Civil War Society, representando uma força de infantaria do New Model Army de Oliver Cromwell, é visível em primeiro plano, à direita, com gola de aço (protecção para o peito), um capitão carregando a gineta (sem borlas). Repare-se na diferença entre a gineta e as alabardas dos sargentos que marcham na primeira fileira da formação, mais atrás.

Postos do exército português (5) – o sargento

O posto de sargento só existia nos terços de infantaria do exército pago e nos terços milicianos de auxiliares e da ordenança (que em Lisboa tinham a designação tradicional de regimentos).

Sobre o sargento especificava o projecto de Ordenanças Militares de 1643 no título 24, aqui transcrito em português actual:

Os sargentos hão-de nomear os seus capitães [entenda-se: os capitães hão-de nomear os seus sargentos] de cabos de esquadra ou soldados, de partes, e valor, e que hajam servido na guerra quatro anos, e aprovados na mesma forma que os alferes; (…) e os ditos sargentos ajudam aos mesmos capitães, em todo o governo e meneio das companhias, e neles vem a consistir a maior parte da observância das ordens militares.

Ao que Joane Mendes de Vasconcelos respondeu nos seus comentários:

Os sargentos devem ser eleitos com os mesmos anos de serviços e considerações que se disse dos alferes sobre o seu título [quatro anos de guerra viva – ou seja, servindo em zonas de combate – ou seis debaixo de bandeira, mesmo sem participar em acções militares].

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pg. 65.

Imagem: Armas de infantaria usadas pelos sargentos: na vertical, uma alabarda, arma pessoal e insígnia do posto. Vê-se também um capacete ou murrião (ambos os termos eram comuns na época e designavam qualquer tipo de protecção metálica para a cabeça), um peito de armas (peitoral, como se diria mais tarde) e um estoque. Foto do autor, Museu da Escola Prática de Infantaria, Mafra.

Infantaria portuguesa, década de 1650

Pormenores de um quadro atribuído ao pintor flamengo Dirk Stoop (1610-1686), patente no Museu da Cidade de Lisboa. Representa um cortejo (provavelmente régio) no Terreiro do Paço, saudado por uma pequena força militar. É plausível que a cena retratada se situe na  primeira metade da década de 50 do século XVII. Dirk Stoop trabalhou em Portugal durante os anos 50 e 60.

Na primeira imagem estão representados piqueiros sem armadura (piques secos; também se dizia picas secas, embora o termo pica fosse castelhano e Joane Mendes de Vasconcelos recomendasse a sua substituição pelo termo português).

Na segunda, a cavalo e à frente de uma fileira de mosqueteiros está um mestre de campo (embora também possa ser um sargento-mor, uma vez que este oficial também tinha direito a montada). No entanto, caso a força fosse oriunda da ordenança de Lisboa, o oficial não seria mestre de campo mas coronel, e em vez de terço, a unidade seria designada por regimento, por tradição. A propósito do posto de sargento-mor, veja-se esta nota num outro blogue de História Militar, o excelente “Lagos Militar”.

Na terceira e última imagem, igualmente à frente da fileira de mosqueteiros, está um sargento, reconhecível pela alabarda que servia como insígnia do seu posto, arma pessoal e instrumento para alinhar as fileiras.

Bandeiras, estandartes, guiões – exército português (1)

É escasso o que nos resta de documentação sólida sobre este assunto. Em 1755, o arquivo da Tenência (Arsenal do Exército) foi destruído pelo Terramoto, e nos anos 30 do século XIX, um incêndio consumiu o arquivo da Junta dos Três Estados, privando-nos assim de informações preciosas sobre as bandeiras, estandartes e guiões utilizados durante a Guerra da Restauração pelo exército português. O que existe, tanto em fontes escritas como iconográficas, é muito fragmentado. Tanto quanto conheço, resta apenas uma relíquia do período, provavelmente um guião de capitão-general do exército – e nesse caso seria o do Marquês de Marialva, ostentado na batalha de Montes Claros em 1665. Foi oferecido à Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Vila Viçosa, e aí se mantém em exposição.

Apesar das ambivalências dos termos, podemos tentar discernir, através da frequência com que são empregues, algumas diferenças no uso: o guião, apesar de Diogo do Couto (séc. XVI) se lhe referir como “pequena bandeira”, designava no século XVII uma bandeira principal, destinada a guiar o exército, ou a assinalar a presença de um general. Apresentava forma rectangular. A bandeira era de uso regulamentar em cada companhia de infantaria, fosse do exército pago (profissional) ou da milícia de auxiliares ou de ordenança. Tinha forma quadrada. Do mesmo formato, mas mais pequeno, era o estandarte das companhias de cavalaria. Por norma, só as companhias de couraceiros (cavalos couraças) deviam ter direito a estandarte (e portanto, incluírem um alferes na sua composição) mas, na prática, era vulgar as companhias de cavalos arcabuzeiros também os terem. Curiosamente, D. Luís de Meneses, 3º Conde de Ericeira, refere que, enquanto general da artilharia do exército do Alentejo em 1663, se fazia acompanhar de dois estandartes (em rigor, seriam guiões) – um com as armas reais (provavelmente semelhante ao que se conserva em Vila Viçosa) e outro com as suas próprias armas, “e ao pé delas uma peça de artilharia [bordada ou pintada], entre as quais se viam umas letras de ouro, que diziam: Sine qua non” (História de Portugal Restaurado, 1946, vol. IV, pg. 212).

Este tema continuará a ser abordado nas próximas entradas.

Bibliografia:

MATOS, Gastão de Melo de, Bandeiras militares do século XVII e a bandeira da Aclamação, sem local, sem nome, 1940.

SALES, Ernesto Augusto Pereira de, Bandeiras e Estandartes Regimentais do Exército e da Armada e outras Bandeiras Militares, Lisboa, Centro Tipográfico Colonial, 1930.

Foto: Guião de capitão-general do exército, batalha de Montes Claros (1665), preservado em Vila Viçosa. Note-se que era esta a configuração do guião – a haste à qual se prendia ficava do lado esquerdo da presente foto. As armas reais apareciam “sobre o lado”.

A formação táctica da infantaria – o esquadrão

A imagem mostra a infantaria formada em esquadrão, com a respectiva batalha de piques e as guarnições e mangas de mosqueteiros e arcabuzeiros. Faltam na imagem as alas, que se colocavam a alguma distância das mangas, em ambos os lados da formação e paralelos às guarnições laterais.

Quando uma força militar se dispunha no terreno, preparada para um recontro ou batalha, cada terço de infantaria constituía o núcleo de um esquadrão (a menos que estivesse tão desfalcado que não bastasse para tal). A realização de uma formação destas no terreno era complexa. Implicava muita prática por parte dos sargentos-mores, o quais deviam saber calcular com presteza raízes quadradas, de forma a conseguirem organizar os soldados no terreno. Para isso eram auxiliados por dois ajudantes e pelos sargentos do terço. Esta formação era utilizada apenas para a defesa estática e para a progressão no terreno após o contacto estabelecido com o inimigo. As marchas de aproximação não eram efectuadas com os esquadrões formados, pois tornar-se-iam demasiado lentas e impraticáveis.

Na década de 60, o esquadrão guarnecido de mangas e alas caiu em desuso. A evolução da táctica passou a favorecer formações mais lineares e de maior capacidade de movimento debaixo de fogo. Em Portugal, o advento da marcha de costado (já conhecida dos portugueses na teoria, mas não praticada antes da chegada do Conde de Schomberg), em que o exército progredia já em formação de batalha, impôs o abandono do complexo esquadrão herdado da escola militar espanhola, que tão bons resultados havia dado na primeira metade do século XVII. No entanto, essa transição não terá sido muito rápida. Escrevendo sobre a situação do exército português do início da década de 60, o francês Frémont d’Ablancourt observou que os portugueses mantinham o hábito de colocarem sobre as alas dos seus esquadrões “quatro a cinco filas de mosqueteiros, cujos mosquetes se assemelham a pequenos arcabuzes pesados” (Mémoires de Monsieur d’Ablancourt, Amsterdam, J. Louis De Lorme, 1701, p. 30). Referia-se, com toda a probabilidade, às mangas.

Gravura baseada numa outra, apresentada em JÖRGENSEN, Christer, e outros, Fighting Techniques of the Early Modern World, AD 1500-AD 1763, Equipment, Combat Skills and Tactics, London, Amber Books, 2005.

Organização do exército português (1) – Infantaria: a estrutura dos terços

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A grande unidade administrativa para a infantaria era o terço, designação de origem espanhola (tercio) que remonta ao século XVI. Correspondia ao regimento, termo então em uso em vários exércitos da Europa central e do norte: agrupamento de várias companhias, cujo comando era atribuído a um coronel. Em Portugal, os termos regimento e coronel, na infantaria, só eram aplicados por tradição às unidades da ordenança de Lisboa. O terço era comandado por um mestre de campo, coadjuvado por um sargento mor, a quem competia a parte técnica.

1. A organização segundo a proposta das Ordenanças Militares de 1643 

Segundo o preconizado no projecto de Ordenanças Militares (regulamento – não confundir com a categoria militar das ordenanças) de 1643, cada terço devia constar de 1.500 homens, compondo-se de uma primeira plana (Estado-Maior, com o mestre de campo, o sargento-mor, dois ajudantes e um tambor mor) e de 12 companhias a 125 homens. Cada companhia, para além da respectiva primeira plana (capitão, alferes, abandeirado, capelão, dois sargentos, dois tambores e um pífaro), compreendia 40 piqueiros, 60 mosqueteiros e 25 arcabuzeiros, distribuídos por 5 esquadras, cada uma comandada por um cabo de esquadra. O mestre de campo comandava a primeira companhia, a qual não tinha, por isso, capitão – todavia, o comando efectivo era sempre delegado no alferes. No total, haveria num terço 480 piqueiros (32% do efectivo), 720 mosqueteiros (48%) e 300 arcabuzeiros (20%). Esta era a dotação preconizada pela proposta de regulamento de 1643 que, embora nunca tivesse passado do rascunho, reflectia a prática organizativa então vigente. Note-se que os efectivos globais apontados não contemplavam os elementos das primeiras planas. Contudo, entre o idealizado no papel e o que tomava forma no terreno existiam várias discrepâncias.

2. A organização segundo as listas existentes nas unidades

Uma das divergências mais evidentes  era no número de companhias, na verdade já fixadas em 10 por terço ainda antes da proposta de Ordenanças Militares ter sido elaborada. Ocasionalmente era possível encontrar terços com um número de companhias superior ao estipulado (12 e 13, por exemplo), em virtude da agregação de companhias soltas, mas os decretos do Conselho de Guerra são peremptórios na imposição do máximo de 10 companhias.

Segundo organizações detalhadas de 1645 e 1646, cada terço compreendia uma primeira plana com 8 elementos: mestre de campo, sargento-mor, dois ajudantes do número, um ajudante supranumerário, um tambor-mor, um cirurgião e um capelão (estes dois últimos elementos, porém, nem sempre estavam presentes, dada a falta de pessoas que servissem como cirurgiões e capelães militares). A primeira companhia (a do mestre de campo) tinha 5 elementos na primeira plana: um alferes, um sargento, um abandeirado (não se tratava de um oficial, mas de um pagem do alferes, cuja função era transportar a bandeira da companhia quando o alferes estivesse ocupado com outra tarefa – o seu estatuto e pagamento era inferior ao de um soldado) e dois tambores; as restantes 9 companhias tinham, cada uma, 7 elementos na primeira plana: os mesmos acima referidos, mais o capitão (comandante da unidade) e um pagem de gineta, que carregava o espontão (gineta) que era a insígnia do posto do capitão, quando este oficial estava ocupado nas funções de comando da companhia; ao contrário do abandeirado, o pagem de gineta recebia a mesma paga que um soldado. As 10 companhias do terço tinham 4 cabos de esquadra e 96 soldados cada. O total perfazia 76 elementos das primeiras planas do terço e das companhias, e no conjunto das companhias 40 cabos de esquadra e 960 soldados – 1.076 elementos no total de um terço. Não havia diferenças entre a estrutura interna de um terço de tropas pagas e um terço de auxiliares.

Esta era a organização efectiva, de acordo com as listas emanadas dos comandos provinciais. No entanto, podia haver ocasionalmente algumas diferenças entre províncias, sobretudo no número de indivíduos pertencentes à primeira plana dos terços. Ainda assim, estas listas destinavam-se ao cálculo das despesas para efeitos de pagamento das tropas, pelo que apenas faziam referência aos efectivos completos. A realidade que transparece de outras listas – as que eram elaboradas nas ocasiões das mostras, quando se contavam os efectivos reais, ou quando se fazia o levantamento do material de guerra existente – era muito menos uniforme. Mas aí estamos já a entrar numa outra esfera, a do atrito provocado pela guerra sobre a estrutura dos terços. Será um tema a tratar proximamente, quando passarmos em revista a composição e o material de guerra de que dispunha cada companhia, de acordo com os registos de certidões de armas de que cada oficial tinha de dar conta quando entrava e saía do comando da unidade. É que, se o terço era a grande unidade administrativa para a infantaria no que tocava a pagamentos, já para o material de guerra toda a administração se efectuava tendo por base a companhia. Tais documentos, ainda que parciais, permitem estabelecer, por exemplo, a relação entre os soldados munidos de armas de fogo e os que estavam equipados com piques por companhia.

Bibliografia de base para o estudo da organização da infantaria portuguesa e espanhola nos séculos XVI e XVII:

MATOS, Gastão de Melo de, Notícias do têrço da Armada Real (1618-1707), separata dos Anais do Club Militar Naval, Lisboa, Imprensa da Armada, 1932.

QUATREFAGES, René, Los Tercios, Madrid, Servicio de Publicaciones del Estado Mayor del Ejército, 1983.

 

Foto: Combate entre piqueiros – reconstituição histórica da Guerra Civil Inglesa; foto do autor.