1653, Agosto – tentativa espanhola de reconquistar Alconchel (parte 2)

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Conclui-se aqui a transcrição da narrativa de Matheus Roiz (Mateus Rodrigues) acerca da tentativa espanhola de recuperar o castelo de Alconchel em 1653. O assunto não fica concluído, pois o estimado amigo Juan Antonio Caro del Corral apresentou, num comentário à primeira parte desta narrativa, uma diferente perspectiva, baseada em fontes espanholas, a qual não coincide com o que o soldado português deixou escrito, quanto ao tempo, ao modo e às personalidades envolvidas. Interessante, porém, é a corroboração de fontes portuguesas acerca do essencial do testemunho de Mateus Rodrigues. O ponto da situação sobre este episódio da guerra será retomado no próximo artigo, onde será dado destaque à análise de Juan Antonio Caro del Corral e ao que contrapõem as fontes portuguesas, de modo a trazer a lume as diferentes versões. Mas deixemos correr a pena do memorialista, para já. 

Como o soldado se via em reino estranho e sem cabedal, nem quem lhe desse comer facilmente, se venceu às promessas do tal capitão, finalmente. Volveu o soldado com ele, e quando chegaram a Badajoz avaliou o capitão muito o soldado ao governador, dizendo-lhe que tinham ali uma grande guia, porquanto havia [no] passado estado em o dito castelo. Folgou o governador muito de que o soldado se volvesse com o capitão. E assim que com grande segredo trataram a jornada, juntando toda a sua cavalaria e a infantaria que tinham, mas com tanto segredo que nunca mais se soube nada.

Andava o soldado sempre com o capitão e já em Elvas sabíamos que ele trazia de Madrid uma patente para que em Badajoz lhe dessem uma companhia de cavalos. De modo que assim como o inimigo avistou a jornada, mandou juntar toda a cavalaria um dia em Badajoz e já tinha 1.500 infantes juntos, e assim como a cavalaria se juntou toda se puseram em marcha com tudo isto. A sua cavalaria era 1.800 cavalos e a tudo isto o capitão dando ordem e ia diante da gente, e ele mesmo dizia que havia de pôr o petardo às portas do castelo, e mais o soldado que ia com ele sempre diante e guiando a gente diante.

Este tal soldado foi fazendo uma consideração consigo no decurso do caminho, que não podia ele ter melhor ocasião para lhe perdoarem o caso em que se havia achado do que era aquela, em razão de fugir ao inimigo e vir a dar aviso a Olivença, que era a retirada mais breve que tinha. E assim fazendo esta consideração se resolveu aventurar-se a fugir aquela noite e dar consigo em Olivença. E assim como foi noite, fez que se ficava fazendo uma necessidade atrás, e como era de noite e em terra de azinhais muito bastos, deixou passar toda a gente. E assim como não viu ninguém, mete pernas a um muito bom cavalo que trazia. E em breves tempos chegou às muralhas de Olivença, que como ele sabia muito bem a campanha não se podia perder, e assim como chegou mandou recado ao governador da vila, que viesse Sua Senhoria logo muito depressa à muralha a falar com ele, que importava muito ao serviço d’El-Rei.

Tanto que deram o recado ao governador, ergueu-se logo da cama como um raio e veio à muralha a falar com o soldado, o qual lhe deu conta que o inimigo ia a tomar o castelo de Alconchel e que lhe mandasse abrir as portas, não viessem em seu seguimento alguma cavalaria do inimigo para o apanharem no caminho.

Logo o governador mandou muito depressa disparar muita artilharia para que o castelo estivesse alerta, e além disso visse o inimigo que era sentido, para que não fosse mais por diante.

Entrou o soldado para dentro, o governador avisou logo pela posta a Elvas, a Dom João da Costa, do caso que o soldado lhe havia dito, e assim mais logo mandou montar 60 cavalos escolhidos das tropas da vila, e com um tenente mesmo natural de Olivença por nome Francisco de Matos, um dos mais bizarros soldados que há hoje na cavalaria e muito prático na campanha, assim na nossa como na sua. E logo mandou o governador tirar 60 infantes dos terços, bons soldados, e disse ao tenente que Sua Mercê havia de levar ao castelo de Alconchel aqueles 60 infantes à garupa dos cavalos, e que os havia de meter dentro sem que os perdesse todos no caminho, que assim importava, e que lá visse por donde podia ir melhor, de modo que o inimigo o não visse nem sentisse. E como isto era de noite, era coisa que se podia fazer, mas com grande risco.

Saiu o tenente da vila já depois da meia-noite com os 60 cavalos e infantes à garupa, mas quando foi uma hora ante manhã já ele estava metido dentro do castelo e levava a ordem do governador para assistir lá por cabo enquanto o inimigo pelejasse com  ele lá. Assim como o tenente lá se viu, ficou logo pedindo a Deus que lhe levasse lá o inimigo, porque bem sabia ele que havia de ganhar ali boa comenda, porque o inimigo, nem que levasse toda Castela, uma vez que tinha gente de novo e bom cabo. Mas quando o tenente lá se viu, benzia-se mil vezes da miséria em que o castelo estava, assim de gente como de tudo, e dizia que não havia de custar ao inimigo nem 10 homens a tomá-lo, e que foi um notável aviso o do soldado, e assim que merecia que lhe dessem um bom prémio por isso.

Assim que o inimigo ouviu a nossa artilharia de Olivença, ficou parvo. E ainda a este tempo não tinha o capitão achado, nem nós, ao soldado. Mas procurando logo por ele para falar com ele sobre as peças de Olivença, como o haviam de achar se ele lá estava dentro da vila. E fazendo grandes diligências por ele, viram que não havia novas dele. Logo o capitão disse para o governador que ali ia [“]voto a Cristo que me há hecho este pícaro la mayor traição que jamás se há visto[”], e dizia coisas do diabo sobre o soldado, da traição que fizera.

Logo o inimigo fez alto com a gente toda, fazendo conselho sobre a matéria ajustaram entre si que já não era possível ir ao castelo, porque haviam de ter lá metido gente e era força estarem de mão posta, que era arriscarem-se muito. E resolutos neste conselho se volveram outra vez para trás e já estavam meia légua do castelo.

Assim como o mestre de campo general Dom João da Costa viu o aviso de Olivença. Logo começámos toda a gente de Elvas com grandíssima pressa a sair para fora da cidade e marchar na via de Olivença. E logo despachou muitos correios por todo o reino e a El-Rei para lhe mandar gente, e toda a gente paga das fronteiras lhe ia ordem para nos ajuntarmos em Juromenha, junto do Guadiana, para irmos a pelejar com o inimigo lá ao castelo. E assim como chegámos a Guadiana fizémos alto, aguardando que se ajuntasse toda a cavalaria e infantaria que havia por todas as fronteiras do Alentejo.

Estando ali quando veio o soldado de Olivença, o que havia trazido a nova e o que havia fugido ao inimigo, assim como chegou a gente logo foi a falar com Dom João da Costa, e ajuntou-se à roda do soldado toda a gente, ouvindo-lhe o que dizia do inimigo e o como lhe fugira. Dom João da Costa lhe falou, dizendo-lhe [“]Vossa Mercê, senhor soldado, pode dizer que foi um dos mais afortunados homens que se hão visto, pois que fugiu para Castela por um tão grande caso como foi o que Vossa Mercê, que todos três haviam feito, mas eu lhe dou minha palavra que não tão somente fica livre do caso, senão que logo em chegando a Elvas tem uma bandeira de alferes em um terço, e que não há-de parar aí senão em capitão de infantaria, pois soube dar um aviso de tanta importância como foi este[”]. E logo lhe meteu na mão 100 patacas [3.200 réis – pouco mais de metade do soldo que recebia, por mês, um soldado de cavalaria no exército do Alentejo] por uma gala [prenda]. O soldado abraçou, beijando-lhe a mão pela mercê e favor que lhe fazia de o honrar tanto.

De modo que logo naquele dia nos volvemos para Elvas, porquanto veio um aviso de Olivença, de como o inimigo era já retirado. De maneira que foi um caso notável da fortuna, que viu este soldado enforcar dois companheiros que com ele mataram ao lavrador, e ele quando os viu enforcar era já alferes, e os que enforcaram muito bem o viram com o dito posto, vejam bem que mágoa levariam no seu coração, vendo-se padecer e seu companheiro com tanta fortuna.  Por isso não há que fiar nela, porque dá mais rodeios e voltas do que dá o mar, que não há dúvida que neste caso se viu grande fineza, como foi o ver-se um dos três companheiros, que em tão raro caso se viram, como foi ver enforcar aos dois e ele ficar-se gloriando-se com o posto de alferes e ser hoje capitão. Mas nasceu já para ter tal ventura, que como ele se averiguava ir forçado à força com os dois para matarem ao lavrador, para efeiro de sua culpa já não ficava com tanta como os outros dois, mas contudo foi grande fineza a mudança que a fortuna fez.

Fonte: MMR, pgs. 321-326.

Imagem: Fortaleza de Juromenha, mencionada no texto. Foto de JPF.

 

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