O episódio que aqui se traz, mais um respigado das memórias de Matheus Roiz (Mateus Rodrigues), não mereceu mais do que meia dúzia de linhas por parte do Conde da Ericeira na História de Portugal Restaurado. Trata-se da tentativa espanhola de recuperar o castelo de Alconchel, na posse dos portugueses desde 1643, depois de já ter sido ocupado brevemente em 1642. No entanto, o soldado de cavalaria ocupa várias páginas do seu manuscrito com a descrição do sucedido, provavelmente por ter conhecido alguns intervenientes ou ter ouvido contar, em primeira mão, os pormenores mais intricados do processo.
Havia em a cidade de Elvas um capitão de infantaria reformado, por nome Manuel da Cunha, o qual havia já servido a El-Rei Filipe antes da Aclamação em o Brasil. Este tal capitão era um homem muito estragado no modo de beber, que um negro que lhe desse vinho na rua, lá o havia de aceitar no meio da rua. E assim que para encarecimento da sua estragação e pouca alma, averiguavam que tinha cinco mulheres, todas vivas, com quem se havia casado e recebido: uma em Holanda com uma holandesa, que são hereges, e outra em Inglaterra e outra em França e uma em Castela, e a que tinha em Elvas com dois filhos. Vejam que casta de homem podia ser quem tais coisas fazia, e assim fez ele caso como quem era.
Este capitão havia já estado de guarnição com a sua companhia, sendo ele capitão viveu em o castelo de Alconchel alguns dois ou três anos. E como sabia muito bem o estado em que o castelo estava e a pouca gente que tinha, intentou uma notável traição para tomar o castelo e netregá-lo ao inimigo. De modo que se resolveu a fugir para Castela. E assim que como a mulher com quem ele estava vivendo era natural de Elvas, tinha parentes na cidade, e assim que formou que queria ir a Nossa Senhora dos (…) [em branco no original], a uma romaria e pediu cavalgaduras, as que lhe eram necessárias, as quais os parentes lhe emprestaram, que foram três éguas, uma em que ele foi, e uma para a mulher e a outra para os dois filhos. E assim com esta traça se saiu um dia de Elvas à tardezinha, dizendo que ia dormir a Vila Boim, que é uma légua da cidade. E tanto que foi noite, deu volta outra vez para trás e se foi andando para Badajoz. Quando a mulher se viu em Badajoz havia de morrer de paixão [ou seja, de desgosto], vendo o que havia feito seu marido. Contudo, como era sua mulher, era força ter paciência.
Assim como chegou à ponte de Badajoz, disse que estava ali um capitão que vinha fugido de Elvas. Deram logo parte ao governador, que logo lhe mandaram abrir as portas. Entrou para dentro foi logo diante do governador, dizendo-lhe muitas pataratas, que era grande embusteiro e sabia muitas velhacarias. E assim que queria ir a Madrid falar com Sua Magestade, que tinha um grande alvitre para lhe dar, o qual lhe disse logo ao governador que, como ele havia estado em aquele castelo de Alconchel, sabia muito bem suas fraquezas e sabia que estava em muito miserável estado de gente. E não há dúvida que falava verdade […]. Assim como o governador o ouviu e viu que lhe dava tão boas informações, deu-lhe logo o dinheiro para o caminho. E vendeu logo as três éguas e fez tudo em moeda e deixou algum à mulher para enquanto ele lá andasse. E logo pôs-se a caminho e deu consigo em Madrid, e falando com El-Rei Filipe, tais embustias e enredos lhe formou que lhe deu El-Rei uma patente de capitão de cavalos, para que o seu governador lhe desse em Badajoz, e assim mais lhe deu 100 escudos de renda e 50 para sua mulher e filhos. E que tomando Alconchel o fazia ser dele. De modo que, despachado desta sorte, lhe deu El-Rei uma ordem para que o seu governador fizesse tudo o que ele dissesse, que como este castelo foi seu e está há onze anos tomado e guarnecido com gente nossa e ser castelo de muita importância para o inimigo, porquanto fica próximo de Olivença e muito metido pela nossa campanha.
Chegou este tal capitão a Badajoz muito ufano e contente, brasonando dos portugueses e do nosso Rei, mas contudo não deixavam os fidalgos castelhanos de lhe notar muito aquilo e o tinham em má conta, contudo, como lhe viam as ordens de El-Rei e viam que dizia que havia de tomar o castelo ou morrer em a demanda. E não há dúvida que fazia uma notável traição, que o tomar-se não havia dúvida, em razão que não havia lá mais que 30 soldadinhos, tudo rapazes sem capitão nem quem defendesse o castelo, que não podia ser melhor ocasião para o bêbado do capitão fazer a sua a seu gosto. Mas a causa por onde a coisa foi desviada, é de notar que foi uma novela, e bem enredada.
Depois deste capitão ser fugido já para Castela, sucedeu matarem uns três soldados de Elvas a um lavrador da mesma cidade, por nome o Guita, muito rico, e os três soldados que o mataram, um era de infantaria, de alcunha o Aguiar, e os dois eram de cavalo, por nome um o Salgueiro e outro António Pinto. De modo que assim como mataram, trataram de fugir cada um por donde pôde. Dois deles foram parar ao Algarve e um, que era o Pinto, foi para Castela, que como viu o caso tão grande, considerou que não haviam de escapar em Portugal. Os dois que foram para o Algarve fizeram lá outro caso pior do que haviam feito, mas prenderam-nos e logo avisaram a Elvas, ao mestre de campo general Dom João da Costa, o qual mandou logo o preboste geral em busca deles lá, e assim como vieram logo os pôs na forca e os fez em quartos. E agora vão notando: o companheiro que fugiu para Castela, que sorte foi a sua que veio a passear em Elvas, aonde anda hoje feito capitão de infantaria. Mas foi tão bem afortunado que quando fugiu para Castela ia-se para Madrid, para ir a servir em as guerras da Catalunha.
De modo que andando este soldado em Sevilha, se encontrou com este capitão que vinha já na volta de Madrid para Badajoz, e assim como se toparam fez-lhe o capitão muita festa, porque o conhecia muito bem, que era este soldado grande pilhante e sabia muito bem o capitão que ele era bom soldado. E assim que lhe descobriu o capitão ao soldado a tenção que levava, dizendo-lhe se o queria acompanhar, que se obrigava a sustentá-lo enquanto durasse a coisa, e que se tomasse o castelo que lhe havia de fazer dar um posto com que tivesse de comer para todos os dias da sua vida.
(continua)
Fonte: MMR, pgs. 318-321.
Imagem: Elvas na actualidade (foto JPF).