Uma incursão do capitão Dinis de Melo de Castro a Almonaster la Real (Janeiro de 1652) – parte 3 e última

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Conclusão do episódio das memórias do soldado de cavalaria Mateus Rodrigues (Matheus Roiz), passado em Janeiro de 1652.

Havia muitos soldados que traziam malhos de Castela, que lá acharam, e mandaram logo começar a cortar muitos álamos e freixos e amieiros muito grandes que estavam pela ribeira abaixo e acima. E um a cortar e outros a levá-los às costas; e despiram-se uns quantos para os atravessarmos de uma banda à outra da ribeira, em um passo mais estreito onde os paus chegavam. E tanto que tivémos posto os paus, que eram bastantes para fazermos uma ponte, atravessámos então por os mesmos paus outros paus mais pequenos, como quem faz uma cancela, e botámos-lhe em cima muita quantidade de ramos dos mesmos paus que se cortaram, até que fizémos uma ponte muito bastante para que passasse o gado por cima dela, que ovelhas e cabras passam por onde quer sendo coisa enxuta. Finalmente que botámos além todo o gado, mas já em a ribeira se havia perdido muito e nos caminhos, com o grande rigor do tempo.

Agora me perguntarão como passou a cavalaria, que ela não podia passar a vau sem que esperasse ali três dias. Não tivémos outro remédio senão tirarmos as selas aos cavalos e passá-las além da ribeira por cima da ponte às costas e logo tornávamos outra vez a buscar os cavalos pela rédea a nado, e nós levando-os pela rédea por cima da ponte. Mas como era em Janeiro, que ia a água muito fria, deu uma dor de barriga ou terçã a 4 cavalos e morreram, de modo que esperámos um pouco que se enxugassem os cavalos para lhe pôr as selas. E logo nos pusémos em marcha, mas não havia quem não fosse passado com água, porque foi castigo de Deus, que saímos com bizarro tempo e depois que fizémos a presa, até que chegámos a casa, parece que Deus Nosso Senhor abriu o céu para que caísse sobre nós toda a água quanta estava em o céu. Chegámos a Moura muito enfadados, à uma com o tempo, à outra em ver que não trazíamos nem a terça parte do gado que havíamos arrancado de Castela, porque se havia perdido com o rigor do tempo; que a primeira noite onde dormimos com a presa diziam pessoas que entendiam de gados que o miúdo passava de 15 mil cabeças, que só de chibatos muito grandes vinham 1.600, que eram como cavalos. O gado vacum não era muito, mas ainda chegaram a Moura 800 bois e vacas e 6.000 cabeças de gado miúdo. Que não há dúvida que, se viera o gado todo a salvamento, que era uma grandiosa presa para tão pouca gente, mas assim como era ainda nos veio a cada soldado 4.000 réis de presa [um soldado de cavalaria recebia 6.000 réis de soldo por mês no exército do Alentejo, 4.800 nos outros exércitos provinciais], ficando-se os capitães bem cheios, e Dinis de Melo, que era o cabo mais que todos, e Manuel de Melo, que era o governador da vila de Moura, também levou o seu quinhão, que estes lobos grandes enchem-se primeiro muito bem; e ainda algum tostão que dão aos pobres soldados cuidam que lho leva o diabo, e o hão por mal empregado, e eles são os que ajuntam o gado e eles os que têm todo o trabalho, mas o proveito é seu deles; que são poucos os capitães que tenham amor aos soldados.

 

Fonte: Manuscrito de Matheus Roiz, pp. 282-284.

Imagem: Campo militar, óleo de Jan van der Stoffe (1611-1682).