O ataque ao Vale de Matamoros, 25 de Novembro de 1653 – Parte 2

1650

A uma légua da vila, a cavalaria adiantou-se à infantaria, que continuou a marchar devagar. Divididos em duas colunas, os cavaleiros acercaram-se da localidade, procurando controlar todas as entradas desta. Mas a parte da cavalaria que estava a cargo do comissário geral da cavalaria de Olivença, o francês Pierre Maurice Duquesne, aproximou-se demasiado das defesas da vila, constituídas por terraplenos de protecção, à laia de baluartes.

Prossegue a narrativa de Mateus Rodrigues: [Os habitantes da vila] havia muitos dias que andava[m] de suspeitas, e além disso mui bem sabiam que íamos lá naquele dia, porque já tinham o melhor fatinho posto em seguro [fato, neste caso, significa todo o tipo de roupa e outros artigos de uso pessoal, e não um grande rebanho de cabras ou ovelhas, como às vezes também surge nas narrativas da época]. E os castelhanos daquele lugar eram os piores que havia em toda Castela, que quando apanhavam algum algumas partidas que lá iam, muitas vezes não se haviam de render senão feitos em pedaços, nem nunca jamais pediam quartel. Quando viram a cavalaria ao redor da vila sem a infantaria imaginaram que a não levávamos, e tomaram tanto ânimo, que (…) saíram fora da vila a pelejar com a cavalaria. Mas suposto que eles o fizessem de valentes ou animosos, contudo ajudava-os muito a terra, que ainda que nós lhes quiséssemos ir fazer algum dano não podíamos chegar aonde eles andavam, e eles nos abrasavam com balas, que estávamos mui cerca deles; e sobretudo não havia ali homem nenhum naquela vila que não fosse caçador do ar [ou seja, caçador de aves], vejam se nos errariam.

Mateus Rodrigues, que participou na operação ainda combalido do ferimento sofrido em Arronches, semanas antes, queixa-se do despropósito do comissário geral Duquesne, o qual expôs a cavalaria às balas certeiras do inimigo, de tal modo que em pouco tempo 10 ou 12 cavaleiros tinham já caído mortos. E como se tal não bastasse, ainda ordenou o francês ao tenente da companhia do capitão Manuel Peixoto – um oficial pouco experiente, segundo o memorialista – que fosse com 50 homens, todos com carabinas, atacar o inimigo: “sai, tenente, bota a Cristo a degolar aqueles cornudos, e se não mos não botar dali fora, você mo há-de pagar”. Os soldados ficaram perplexos com esta ordem, porque o inimigo, isso era o que queria, que lhe fossem lá fazer floreios e escaramuças, que (…) estavam seguros de que lá não havia de chegar cavalo nenhum (…). Apesar da ordem quase suicida, o inexperiente tenente, brioso e mui honrado, lançou-se animoso ao seu destino, mas o pobrezinho o deitaram logo do cavalo abaixo com uma bala e mais alguns dez ou doze dos que levava consigo. Os restantes retiraram apressadamente a incorporar-se com o grosso da cavalaria. Levantou-se então um burburinho entre os soldados, quase princípio de motim, com remoques à grande parvoíce do comissário geral, que era estarem ali parados a servir de alvo, até que por fim o oficial francês mandou retirar as unidades sob o seu comando para um vale abrigado, e aí esperar pela infantaria.

Uma pequena observação a respeito do destacamento enviado por Duquesne ao encontro do inimigo: é provável que os cavaleiros tivessem formado em escaramuça, pois Mateus Rodrigues frisa bem que todos eram carabineiros, e que tivessem principiado por (ou, ao menos, tentado) fazer fogo por fileiras, quer utilizando a táctica do caracoleio, quer revezando-se as fileiras através dos intervalos dos soldados da frente. De qualquer modo, seriam manobras lentas e exporiam os cavaleiros ao tiro certeiro dos experientes caçadores que defendiam a vila de Matamoros.

(continua)

Bibliografia: veja-se a Parte 1 deste artigo.

Imagem: Philips Wouwerman, “Soldados pilhando”, c. 1650, Reiss-Engelhorn-Museen, Mannheim.

O ataque ao Vale de Matamoros, 25 de Novembro de 1653 – Parte 1

Matamoros1

Matamoros2

Uma das consequências imediatas da vitória portuguesa no combate de Arronches, em 8 de Novembro de 1653, foi a supremacia que a cavalaria portuguesa conseguiu alcançar durante algum tempo, o que permitiu lançar incursões a localidades em território inimigo com reduzida oposição.

A primeira dessas incursões ocorreu em 25 de Novembro de 1653. D. João da Costa, Conde de Soure, governador das armas do Alentejo, incumbiu da operação o tenente-general da cavalaria Achim de Tamericurt. O oficial francês comandava a cavalaria da província alentejana enquanto o seu general, André de Albuquerque, recuperava dos graves ferimentos sofridos em Arronches. A História de Portugal Restaurado faz apenas uma breve referência à incursão, na qual participaram as companhias de cavalaria de Elvas, Campo Maior e Olivença e dois terços pagos da guarnição desta vila, sob o comando do mestre de campo de um deles, Manuel de Saldanha (quando Olivença foi tomada pelos espanhóis em 1657, era este oficial o governador da praça). Conforme narra o Conde de Ericeira, saíram estas forças a queimar dois lugares vizinhos à cidade de Jerez [de los Caballeros], chamados os Vales de Matamoros e Santa Ana. Mas a acção é descrita em poucas linhas, ocupando muito menos espaço do que a operação que se lhe seguiu, a tomada da vila de Oliva.

O soldado de cavalaria Mateus Rodrigues, que participou em ambas as operações, deixou nas suas memórias um registo mais detalhado e pitoresco da acção do Vale de Matamoros, contada “a partir de baixo”, da perspectiva do combatente comum. De acordo com Rodrigues, a cavalaria espanhola, derrotada em Arronches, deixara o Vale de Matamoros sem defesa alguma (assim garantiam as línguas – soldados e paisanos capturados para obter informações), pois não tinha gente paga que o defendesse nem castelo onde se fizessem fortes. O Vale de Matamoros ficava a 7 léguas (cerca de 35 quilómetros) de Olivença, que era distância que uma força mista de cavalaria e infantaria, sem outro impedimento (trem e artilharia), podia cobrir em 24 horas de marchas.

Ajustado o dia da operação, juntou-se a cavalaria em Elvas e daí partiu para Olivença, para se incorporar com a infantaria. Chegando o tenente-general Tamericurt com a força montada, estava tudo fora da vila esperando por ele, que assim como chegámos nos pusemos em marcha na via de Alconchel, que é um castelo nosso que está guarnecido e por ali era a nossa marcha [a praça de Alconchel estava então na posse dos portugueses]. E quando ali chegámos seriam dez ou onze horas do dia. Ali fizémos alto todos, descansando um pouco enquanto os corpos se alentavam com alguma coisa, e a dar de comer aos nossos cavalos.

Depois do descanso, Achim de Tamericurt e Manuel de Saldanha mandaram formar as tropas e passaram-nas em revista, ocasião para se assentarem os róis detalhados dos efectivos, de forma a saber quantas baixas se sofrera uma vez finda a operação. Acharam 800 infantes e 1.400 cavalos, e tomado tudo em boa conta e posto tudo em boa forma começamos a marchar, que já dali nos não ficava mais de 4 léguas e sempre por campanha donde nos podia ver o inimigo a maior parte do caminho, porque tem o lugar à roda dele serras tão altas que se vê de cima delas meio mundo.

(continua)

Bibliografia:

ERICEIRA, Conde de, História de Portugal Restaurado, edição on-line (facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro XII, pgs. 438-439.

Manuscrito de Matheus Roiz, versão transcrita (AHM), pgs. 360-366.

Imagens: De cima para baixo, localização do Vale de Matamoros em relação à fronteira luso-espanhola e pormenor do palco de operações (imagens retiradas do programa Google Earth).

Província da Beira – infantaria e cavalaria do distrito de Penamacor em 1663

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Uma relação anexa à consulta do Conselho de Guerra de 19 de Novembro de 1663 (ANTT, CG, Consultas, 1663, maço 23-A, caixa 87) apresenta os efectivos detalhados que existiam no distrito militar de Penamacor, província da Beira. Eram os seguintes:

Infantaria

Salvaterra do Extremo

Compª do capitão D. Fernando de Chaves, 5 oficiais, 28 soldados, total: 33 homens.

Compª do capitão Inácio Arnaut, 4 oficiais, 19 soldados, total: 23.

Compª do capitão Manuel Vieira, 4 oficiais, 21 soldados, total: 25.

Compª que foi do capitão Sebastião de Elvas, agora governada pelo alferes Manuel Rodrigues,  3 oficiais, 30 soldados, total: 33.

Compª que foi do capitão Luís de Lima, agora governada pelo alferes Manuel Marques,  3 oficiais, 28 soldados, total: 31.

Segura

Compª do capitão António Rodrigues de Figueiredo, 5 oficiais, 35 soldados, total: 40.

Compª do capitão Hipólito Cardoso de Moxica, 5 oficiais, 28 soldados, total: 33.

Compª que foi do capitão Martim de Melo, agora governada pelo sargento Domingos Gonçalves,  3 oficiais, 21 soldados, total: 24.

Rosmaninhal

Compª do capitão João da Rocha, 5 oficiais, 35 soldados, total: 40.

Zebreira

Compª que foi do capitão Andrade Gouveia Coelho, agora governada pelo alferes José de Matos,  3 oficiais, 34 soldados, total: 37.

Cavalaria

Penamacor

Compª dos cavalos da guarda do governador das armas, 3 oficiais, 47 soldados, total: 50. Cavalos: 30.

Idanha a Nova

Compª do tenente-general D. Martinho da Ribeira, 2 oficiais, 30 soldados, total: 32. Cavalos: 32.

Salvaterra do Extremo

Compª do capitão Paulo Correia Rebelo, prisioneiro em Espanha, agora governada pelo furriel Pedro Fernandes, 1 oficial, 25 soldados, total: 26. Cavalos: 26.

Compª do capitão António Estaço da Costa, prisioneiro em Espanha, agora governada pelo tenente Domingos Homem, 2 oficiais, 20 soldados, total: 22. Cavalos: 21.

Segura

Compª de auxiliares (amunicionada, como refere o documento) do capitão Manuel de Sousa de Refóios, 3 oficiais, 13 soldados, total: 16. Cavalos: 16.

TOTAIS: Infantaria, 40 oficiais, 279 soldados, ao todo 319. Cavalaria, 11 oficiais, 135 soldados, ao todo 146, com 125 cavalos.

Imagem: Pormenor da fronteira beirã em Tabula Portugalliae et Algarbia, Amsterdam, Frederick de Wit, c. de 1670; Biblioteca Nacional, Cartografia, C.C. 1660 A.

The Municipal Administration in Elvas During the Portuguese Restoration War (1640-1668) – artigo online, em inglês

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Apesar de este artigo estar disponível on-line apenas na língua de Shakespeare, o seu interesse levou-me a incluir aqui a ligação para o mesmo.

FONSECA, Teresa, “The Municipal Administration in Elvas During the Portuguese Restoration War (1640-1668)”, in e-Journal of Portuguese History, Vol. 6, nº 2, Porto, 2008.

O resumo do artigo em língua portuguesa encontra-se aqui.

Imagem: “A carta recusada”, quadro de Gerard Terborch, 1655. Note-se no pormenor do trombeta, à esquerda.

A chegada a Elvas do novo governador das armas em 1645 – uma descrição coeva

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Uma carta anónima de 1645 refere a chegada ao Alentejo, em Abril, do novo governador das armas daquela província, o 2º Conde de Castelo Melhor. Nela se descreve o equipamento das companhias de cavalos couraças (introduzidas em Setembro do ano anterior) e de cavalos arcabuzeiros, bem como se aponta também a força de infantaria existente na província transtagana. Em complemento ao artigo já aqui publicado em 2008, passo a transcrever (modernizando a ortografia) a carta que se encontra num conjunto de manuscritos em português do espólio do Arquivo Histórico de Badajoz, cujas cópias me foram gentilmente enviadas pelo historiador e amigo Sr. Julián García Blanco, a quem presto os meus agradecimentos.

Entrada do Conde de Castelo Melhor em Elvas

A entrada do Conde de Castelo Melhor se fez com a maior festa e e aplauso que se viu nesta cidade. Joane Mendes de Vasconcelos o foi esperar caminho de Estremoz, no campo de Alcarapinhais, [com] dez tropas de cavalos, duas de couraças (que são armados) todos de armas sem mais que espadas para romper, e os outros com suas pistolas e clavinas [ou seja, os cavalos arcabuzeiros]. Os terços de infantaria repartidos em cinco terços, e no meio 6 peças de campanha, seis carros cobertos, com que formou campo com excelente ordem, tão boa que se esta se tivera em ocasiões de mor importância, fora de grande efeito. Formado o campo se adiantou o mestre de campo general com os fidalgos e nobreza da cidade, que o acompanhou por lho mandar pedir cada um em particular, e foram receber o Conde, vindo acompanhado-o. E chegando à vista se fez salva com a artilharia, e ao passar pelos esquadrões, cada qual deu salva com carga cerrada [ou seja, dispararam todos a um tempo] e vieram marchando. Para esta ocasião se tinham feito em o fosso da muralha 200 minas, a que se pôs fogo em todas como vieram chegando, e foram outras tantas peças a que respondeu o forte de Santa Luzia, disparando a artilharia e dando carga de mosquetes. O mesmo se fez em os muros da cidade em roda, e vista de Badajoz, saíram danças e chacota adiante da nossa cerca. Foram acompanhando até sua casa com a costumada rapazia [rapaziada], que tudo atroava com vivas. A infantaria que veio diante se pôs em alas pelas ruas por onde havia de passar e foi dando cargas, a da praça foi muito grande, e neste tempo, que pareceu mais excesso, se repicaram continuamente os sinos da Sé, relógio da cidade, e à noite assim na Sé como [em] toda a cidade houve iluminárias, de que também gozaram à entrada por serem horas de Avé Marias. Entrou dia da Cruz, que é prognóstico de grandíssima felicidade e venturosos sucessos. O Marquês de Legañez também dizem que é entrado em Badajoz. Ordene Deus tudo a seu Santo Serviço, e a bem de todos.

O prognóstico não se concretizou. Divergências graves entre o governador e a oficialidade portuguesa, incluindo o mestre de campo general Joane Mendes de Vasconcelos, a que se juntou uma abortada tentativa de pôr cerco a Badajoz, ditaram a demissão de João de Vasconcelos e Sousa, 2º Conde de Castelo Melhor, ao fim de quase um ano como governador das armas do Alentejo.

Imagem: Armadura de couraceiro. Foto retirada da página http://www.bunrattycollection.com.

Os Sermões da Restauração (1640-1668): um exercício cartográfico; artigo online

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Um interessantíssimo estudo sobre os sermões pregados durante a Guerra da Restauração, os seus conteúdos e frequência e a distribuição geográfica. Da autoria de João Carlos Garcia e Miguel Nogueira, o artigo está incluído na colectânea Estudos em homenagem a João Francisco Marques, vol. I, Porto, Universidade do Porto – Faculdade de Letras, 2009, pgs. 475-488.

Ligação aqui:

Os sermões da Restauração

Imagem: Apetrechos diversos usados pelos militares durante o período da Guerra da Restauração: estoque, caixa de guerra, ampulheta, papel, pena e tinteiro, canecas e, no chão, um saco com gravetos para alimentar uma fogueira. Foto de J. P. Freitas, obtida durante uma reconstituição histórica do período da Guerra Civil Inglesa.

A propósito de cercos

Esta entrada não está directamente relacionada com a Guerra da Restauração. Na verdade, excede a baliza temporal do conflito peninsular em cerca de 15 anos. Mas não é descabida, pois foca um dos aspectos mais característicos da guerra durante o século XVII: o cerco a uma praça e o desenrolar das correspondentes actividades bélicas. Penso que irá complementar a longa descrição do cerco de Olivença em 1657, aqui apresentada em 10 partes.

No documentário em cinco partes sobre o cerco de Viena e a batalha que lhe pôs fim, em 12 de Setembro de 1683, travada entre as forças do Império dos Habsburgo (na verdade, uma coligação polaco-austro-alemã, comandada pelo Rei da Polónia Jan III Sobieski) e as do Império Otomano (sitiantes de Viena, sob o comando do Grão-Vizir Merzifonlu Kara Mustafa Pasha), encontraremos a reconstituição de pormenores que são inúmeras vezes focados nos textos e documentos relativos à Guerra da Restauração. Ainda que surjam algumas particularidades bem características dos exércitos envolvidos no cerco de Viena e subsequente batalha (por exemplo, os hussardos alados do exército polaco, ou os janízaros do exército otomano), são em muito maior número as referências ao armamento e às situações experimentadas durante um cerco, comuns a qualquer operação desse tipo durante o século XVII, incluindo a Guerra da Restauração.

Deste modo, o leitor poderá visualizar revelins, bastiões, estradas cobertas, fossos, trincheiras de aproche à praça cercada, cavalinhos de pau (não exactamente a versão aqui descrita e usada pelo exército português, mas aproximada), o processo de construção de minas e contra-minas (e como detectar, com um artifício simples mas engenhoso, os trabalhos de escavação de minas do inimigo), o emprego de mensageiros e espiões, o uso de arcabuzes, mosquetes, bacamartes e granadas de mão, etc.

O documentário é narrado em alemão (originalmente tinha inserido aqui a versão narrada em inglês, mas a conta a ela associada foi encerrada no Youtube).

Parte 1

Parte 2

Parte 3

Parte 4

Parte 5