Conflitos entre civis e militares estrangeiros: um exemplo de 1663

975532-main-62d129800f8a8

Durante a Guerra da Restauração, Lisboa manteve uma vida mundana característica de capital de Império ultramarino e de porto de comércio internacional. Estrangeiros de várias partes da Europa circulavam na Corte, designação vulgar para a principal cidade do Reino, tendo aí negócios estabelecidos ou estando somente de passagem.

O conflito trouxe a Lisboa milhares de estrangeiros, mas de outra natureza: eram militares. Vindos em contingentes contratados pela Coroa ou por iniciativa particular, oferecendo os seus préstimos como soldados de fortuna, espalharam durante algum tempo as suas línguas estranhas pela capital do reino. Os momentos principais desse afluxo foram Agosto e Setembro de 1641 e os primeiros anos da década de 60, coincidentes com a chegada de unidades militares provenientes de França, Países Baixos e Inglaterra. Mas fora de Lisboa não era vulgar encontrar naturais de outros reinos, exceptuando alguns que tinham sido súbditos de Filipe IV até à ruptura da monarquia dual e que, sendo de nação espanhola, tinham aceite D. João IV como seu soberano e continuado a sua vida normal. E estes encontravam-se principalmente na raia.

É longe da Corte, nas comunidades rurais das províncias que foram teatros de operações militares, que o impacto da chegada de centenas de militares estrangeiros provoca mais estranheza. Não só o linguajar é impenetrável, como as diferenças de religião (quando se tratava de Protestantes calvinistas ou luteranos) causam uma forte clivagem com a população local. Note-se que a obrigação dos povos alojarem em suas casas militares portugueses já era motivo de alguma conflitualidade, devido a abusos provocados pelos aboletados. Tudo se tornava pior quando eram estrangeiros a entrar portas adentro, sendo as diferenças mais vincadas do que, por exemplo, as que separavam o camponês do Alentejo do soldado proveniente de Trás-os-Montes ou de Entre-Douro-e-Minho. A convivência não era fácil e ultrapassava o limite de quatro paredes.

Os testemunhos de confrontos violentos entre civis e militares estrangeiros tornam-se mais frequentes na década de 60. Nessa fase final da guerra, os efectivos estrangeiros, presentes sobretudo no Alentejo, são incomparavelmente superiores em número aos que tinham ali estado no início do conflito, entre 1641 e 1645. E a conflitualidade não se resume ao choque com a população civil: há casos em que militares portugueses e estrangeiros se batem devido a querelas pessoais (e por vezes em grupo).

Os franceses são alvo de mais queixas do que os ingleses. Enquanto os militares enviados por Carlos II são profissionais da guerra, na maior parte veteranos, os franceses chegados em 1663, após a batalha do Ameixial, têm uma origem diferente: muitos foram recrutados à força nos locais mal-afamados de Paris, eram em boa parte pequenos criminosos, proxenetas, jogadores, enviados para Portugal por ordem do Visconde de Turenne, em resposta ao pedido do Conde de Schomberg (que esperaria, sem dúvida, um lote diferente de reforços).

Os episódios que aqui se apresentam são dois entre vários, ambos ocorridos em 1663. Na consulta do Conselho de Guerra de 24 de Setembro desse ano é apresentada uma carta do Auditor Geral do Exército do Alentejo, Inácio de Guevara, datada de 17 de Agosto e escrita em Arraiolos, onde se encontrava desde 21 de Julho para fazer a devassa (audição) do que sucedera poucos dias antes, envolvendo o regimento francês alojado naquela vila. Verificou que tinham ocorrido dois casos.

O primeiro foi que sendo em os seis dias do passado, estando umas mulheres daquela vila lavando em uma horta do termo dela, chegaram ali uns franceses e quiseram entender com elas, e achando-se presente um João Marques e seu filho Manuel Gomes, e Pedro Gonçalves da porta das Santas, e outros paisanos, acudiram pelas mulheres, e uns e outros se descompuseram, de maneira que os franceses mataram os três nomeados e feriram os mais que puderam, e vindo-se para a vila se formaram todos, fazendo arrastar pelas guedelhas a um Gregório da Cunha da Mota, pessoa nobre daquela vila e que nela serve de vereador, por ser dono da horta em que se principiou a pendência, e saindo o juiz de fora o descompuseram, de maneira que lhe foi forçoso retirar-se a casa pelo não matarem [para que não o matassem]. Mas não constava dos franceses e pessoas certas que cometeram estas mortes, por não serem conhecidas dos naturais, nem lhe saberem os nomes, mas somente falam as testemunhas genericamente, dizendo que os franceses cometeram este delito, e as mais coisas de que se queixam.

E o segundo caso foi, que indo uns seis soldados franceses em  vinte e um do passado a uma herdade daquele termo que chamam a Pastaneira, e entrando em um rebanho de ovelhas pegaram em algumas delas, ao que acudiu o lavrador da herdade por nome Manuel Dias, e dois irmãos, Estevão Dias e Domingos Dias, e um seu cunhado por alcunha o Chaveiro, e dois pastores seus, a que se não sabe o nome, com espingardas [armas de caça], pistolas e espadas, e dois dardos, e avançando aos franceses, que eram outros seis homens, lhes foram fugindo até junto ao monte de um Manuel Rodrigues, da herdade que chamam Boletas, distância donde as ovelhas estavam; e ouvindo a gente do monte tiros de espingarda saíram à porta e viram os sobreditos, que depois já de terem derrubado no chão a quatro franceses às espingardadas, os acabavam de matar às estocadas. ficando logo quatro mortos e dois tão mal feridos, que um deles morreu daí a poucos dias, e lastimado, e queixoso o dito lavrador deste caso, por ser junto da sua casa, quis acudir, mas Manuel Dias, que era o principal dos matadores, levou o cão à espingarda para lhe [a]tirar, e assim se retirou pelo não matarem, e eles se foram para outra herdade. O juiz da terra mandou fazer exame nas feridas dos mortos, em que se viu bem o mau ânimo dos delinquentes e a atrocidade do caso, na quantidade das feridas, nos instrumentos com que se fizeram e na distância em que os seguiram. O primeiro morto, que se chama João de Achino, tinha oito balas por diferentes partes de seu corpo; Jean Lombican, uma bala na cabeça e sete estocadas pelos peitos; Jacques Serman uma bala numa mão, outra numa virilha esquerda e seis cutiladas na cabeça. Nicolau Nezelé seis estocadas na barriga; Martin Berten, três feridas de bala, uma pelas costas e outra na cabeça, e outra num braço. Jacques Lomeo uma bala na barriga, seis cutiladas na cabeça e sobretudo lhes levaram as espadas, alguns capotes e chapéus. E este era o sucesso que aconteceu a estes pobres franceses, que todo aquele povo, sem embargo de estar queixoso, sentiu, estranhou com grande lástima.  […]

O Conselho de Guerra enviou a carta do Auditor Geral para o Juiz Assessor, Dr. Jorge da Silva Mascarenhas, para este dar o seu parecer. Tendo este visto a carta, disse “que é muito para considerar, que vindo os estrangeiros franceses e ingleses a este Reino em serviço de Vossa Magestade e em ajuda e favor da defensão dele, tratem os vassalos de Vossa Magestade nas pessoas, honras e fazendas como se foram os maiores inimigos nossos”.

Considera que o primeiro caso “é atrocíssimo, pois quiseram os homens defender as honras de suas mulheres e os franceses os mataram, e ainda que Vossa Magestade deve servir-se, guardando-se-lhe a imunidade de seus privilégios, ordenar ao cabo desta gente que, informado dos delinquentes, os castigue com a pena exemplar”.

Também no segundo caso o juiz considera serem merecedores de castigo exemplar os culpados, pois apesar de ser direito natural e divino defender a sua propriedade, os lavradores excederam o modo como o fizeram, pois não contentes de haver defendido a sua propriedade, passaram à crueldade e à atrocidade, seguindo por espaço largo os pobres, “que já pode ser que com fome intentassem aquele caso”. E que devia ser motivo de castigo exemplar, “para satisfação dos franceses, e exemplo do modo com que eles devem castigar os seus, porque ficando um e outro caso sem castigo exemplar, se pode temer se origine uma guerra civil entre os estrangeiros e naturais, persuadindo-se uns e outros, lhes é lícito tomar vinganças próprias por si, sem temor do castigo”.

O Conselho de Guerra deu  o parecer de que o segundo caso não devia ser castigado por via de alçada, por ser muito moroso, mas que se encarregasse a um ministro dos que assistem naquela província, com urgência.

 Fonte: ANTT, CG, Consultas, 1663, mç. 23-A, consulta de 24 de Setembro de 1663.

Imagem: Joost Cornelisz Droochsloot  (1586–1666), soldados procedendo a um recrutamento forçado.

Deixe um comentário