O cerco de Vila Viçosa (9 a 17 de Junho de 1665), segundo um manuscrito coevo – 1ª parte

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Existem pelo menos três narrativas sobre o cerco que o Marquês de Caracena pôs a Vila Viçosa, entre 9 e 17 de Junho de 1665, o qual antecedeu e foi causa da batalha de Montes Claros. A mais completa está incluída na Relación Verdadera, y Pontual, de la Gloriosissima Victoria que en la famosa batalla de Montes Claros alcançò el Exercito delRey de Portugal (…) (Lisboa, Oficina de Henrique Valente de Oliveira, 1665). Outra, bastante detalhada, encontra-se num manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa (FG 8998, fls. 208-230 v), tendo sido publicada por Horácio Madureira dos Santos na sua obra Cartas e outros documentos da época da Guerra da Aclamação (Lisboa, Estado-Maior do Exército, 1973, pgs. 117-150). Outra ainda, que foi transcrita por Cristóvão Aires de Magalhães Sepúlveda na História Orgânica e Política do Exército Português – Provas, vol. II, pgs. 99-105, é referida pelo autor como um manuscrito encontrado no British Museum (Mss. Port. Add. 20. 953-7, fl. 238 – Relação do Sítio que o Marquês de Caracena pôs a Corte de Vila Viçosa), mas que se trata muito provavelmente de uma cópia de um outro manuscrito, este existente na Biblioteca da Universidade de Coimbra (Descrição do Cerco de Vila Viçosa em 1665), e de que Belisário Pimenta apresenta breve referência no “Catálogo e sumário dos documentos de carácter militar existentes nos mss. da Biblioteca da Universidade de Coimbra”, sob o nº 490 (Boletim do Arquivo Histórico Militar, vol. VII, 1937, pgs. 139-140). Pelo conteúdo, aparenta ser uma carta redigida por um clérigo de Vila Viçosa, dirigida a um outro eclesiástico de Évora, dando um testemunho pessoal dos incidentes do cerco.
É a transcrição de Cristóvão Aires, ligeiramente corrigida nos pequenos erros detectados, que aqui se reproduz, vertida para português actual. Deixo aqui os meus agradecimentos ao estimado amigo Julían Gracia Blanco, que me tem dado preciosas informações a respeito deste assunto.

Relação do Sítio que o Marquês de Caracena pôs à Corte de Vila Viçosa
Aos 4 deste mês de Junho se passou a Castela o capitão de cavalos Luís de Póvoas, residente nesta praça de Vila Viçosa, suspeitando-se daria aviso do estado dela; logo aos 5 vieram os senhores generais à vila, e em primiero lugar tomar a benção à Senhora da Conceição. Partiram-se da praça e logo veio aqui anoitecer um terço do sr. Conde de S. João com um mestre de campo muito valente e experimentado, muita soma de pólvora, porque ainda que cá estava muita, perdia-se pouca em que sobejasse. Ficou a fortaleza com 2 terços pagos e um de auxiliares, muita gente da ordenança da terra, principalmente os espingardeiros, que foram os que muito dano fizeram ao inimigo.
Aos 6 começou a abalar o exército inimigo com tão grande pressa, que dormindo aos 7 em a terra de Segura, aos 8 ao meio-dia o vimos já vir descendo os outeiros da Atalaia dos Sapateiros, em demanda da fonte e tanque que ali está para beberem os cavalos. D. João da Silva, que sempre lhe andou à vista, tendo-lhes entulhado a fonte e desfeito o tanque, os obrigou a continuar a marcha, vindo no mesmo dia dormir a Alcaraviça e logo se partiu desta praça, conforme a ordem que tinham. O tenente-general D. Luís da Costa com o seu terço de cavalaria comboiando as carretas de El-Rei, que aqui andavam trabalhando, carregadas de fato e mais fazenda, que ainda restava para retirar da praça; após ele se partiu a mais cavalaria, com os comissários João do Crato e António Coelho de Góis. Aos 8 se deu rebate, que estava o inimigo em Borba queimando e assolando tudo; de Borba fez frente para Sousel. Tivemos logo aviso de sua resolução, dizendo marchava para Portalegre, e em efeito partiu um oficial de artilharia de aqui a toda a pressa, mas o inimigo, voltando de repente sobre nós, ao meio-dia andava já connosco de pelouradas. Guarneceram os nossos as trincheiras da vila até o Forte de S. Bento principiado, não para resistir, mas para quebrar o ímpeto primeiro da cavalaria. Carregou-se esta sobre a porta dos Nós com tanta temeridade como quem vinha de Borba, de tal maneira que, ficando descobertos aos do forte de S. Bento e à queima-roupa da trincheira, saíram com os mosqueteiros e não se queriam retirar. Confessaram alguns castelhanos que perderam ali até 50 homens, outros dizem que foram 70. Já vinha descobrindo o mais restante da cavalaria parte pelo outeiro da Mina, parte pelas vinhas e olivais da parte de Évora, em demanda do Reguengo de toda aquela campina de olivais.
Cerrada a noite se retiraram os nossos à fortaleza e os de S. Bento, porque seria fácil acostá-los o inimigo por terem pouca defensa, ficando na vila só os religiosos e algumas mulheres graves, que se tinham recolhido em os conventos das freiras, e deixaram as portas da vila fechadas e empedradads de pedra solta.

Pelas duas horas da madrugada, amanhecendo para o 10 entrou o inimigo bem a medo pela porta do Carrascal, e abrindo brecha na porta do corredor da casa dos Padres da Companhia, que estava fechada de ladrilho, por onde entrou uma manga de mosqueteiros com um sargento-mor do terço de Don Rodrigo Mochigua; este achou aos Padres postos na igreja com o Senhor exposto. Logo segurou-lhe não havia de fazer mal, e buscou toda a casa com medo se havia gente dentro, e os soldados lhe levaram todo o pão que tinham, dizendo havia 3 dias que não comiam. Aclarou o dia, e tendo já minadas as casas para a fortaleza começaram a pelejar, de sorte que logo diremos. Arderam muitas casas grandes, quebrando portas e janelas, arruinando-se os edifícios. Tudo nadava em vinho e azeite e mel, que por muito não se pôde retirar de todo. Não havia coisa que não fizessem em pedaços as nações estrangeiras, o que atalharam os castelhanos. Passou finalmente o incêndio, mas não cessou a mina, porque com grande inumanidade, chegou aos templos sagrados, como experimentaram os religiosos de São Paulo, tendo pedido guardas. Mas tiveram tão pouca ventura, que lhos deram de estrangeiros, e guardavam-nos de maneira que, não deixando roubar os outros, eles só lhes roubaram tudo; roubaram as celas e camas e arruinaram a livraria; despiram os altares, sacristia e todas as mais oficinas, sem deixarem coisa em que se pudesse pôr os olhos, senão que com advertência de um religioso, que acudiu logo, a consumir o Senhor já aqui não chegou a impiedade. Contudo desapareceu o sacrário, os mausoléus de madeira do Sr. Duque D. Teodósio e do Sr. Alexandre, que ali estavam em depósito; fizeram em pedaços e quiseram levantar os sepulcros, para ver se tinham neles algum tesouro; afrontaram de palavras e ainda de obras alguns religiosos, foram estes fazer queixa ao Marquês; mas voltando se viram em novos perigos e assim se foram em comunidade agasalhar com os Padres da Companhia; aonde uns e outros passaram as fomes que costuma haver em cercos apertados, dormindo em o chão por lhe terem levado as camas; também as freiras da Esperança padeceram e essas porque as encontraram no coro, servindo-se do mais convento para pelejarem contra a fortaleza; roubaram as do que tinham dentro de algumas pessoas seculares e ainda do próprio e até das imagens. Os religiosos da Piedade do convento do Bosque, junto a Borba, com 28 clérigos, vieram todos presos por dizerem eram traidores, por darem sinal para que uns batalhões nossos lhe viessem degolar outros do castelhano que ali estavam. (pgs. 99-101)

(continua)

Imagem: planta de Vila Viçosa, em Planos, Guerra y Frontera. La Raya Luso-Extremeña en el Archivo Militar de Estocolmo (Isabel Testón Núñez, Carlos Sánchez Rubio e Rocío Sánchez Rubio, Junta de Extremadura, 2003).

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