Cerco e tomada de Olivença (10ª e última parte – de 23 a 31 de Maio de 1657)

Mapa

[23] [Nota de Horácio Madureira dos Santos: No original está erradamente indicado o dia 24] – Partiram os enviados 4ª feira pela manhã, e nesse dia tornou o padre António de Matos trazendo do Conde general largas promessas de socorro, com que foi grande a alegria que houve na vila comummente em todos. Levava João Mendes Mexia uma instrução que o governador e o Du Four fizeram, em que pediam, afora o que já tinham pedido, que creio era pólvora, que lhe mandassem 1.500 infantes, e nesses viessem duzentos rodeleiros [soldados armados de espada e rodela – escudo pequeno e redondo – que eram empregues em missões especiais], e que esses, em chegando, guarnecessem a estrada encoberta e surtissem pelos aproches do inimigo, e sustentassem o que fosse ganhado, e que ele tinha outros 200 da gente da vila com que render aos que viessem.

E assim lhe mandassem 130 cavalos com um bem valente cabo, e lhe mandassem vinho para as missas, e medicamentos para os feridos, e que se resolvessem em socorrer a praça, o que podia fazer pela parte de Santa Catarina ou pela serra. Afora estas, levava outras advertências. E o sargento-mor Manuel de Magalhães mandou outra instrução por João Rodrigues, lavrador prático, e foi à torre a lhe mostrar o sítio e lugar por onde o socorro podia entrar e por onde o havia de guiar. E para que o inimigo não buscasse os enviados e lhes achasse este papel, o estudou de memória Simão Lopes de Oliveira.

Foram os nossos enviados bem recebidos no exército, e dele partiu pela posta um, que foi João Mendes Mexia, e veio à Corte a pedir socorro. Nós estávamos na praça esperando pelo nosso exército, que viesse conforme à promessa, porém ele se não movia; assim passámos até tornarem os enviados, sem haver de novo outra coisa mais que mandar o governador dar pão de munição a quase todo o povo.

[28] – 2ª feira pela manhã chegaram os enviados à praça, tendo sido retidos um dia do exército do inimigo, e vieram com promessa de socorro; querem alguns senhores e cabos que lhes deram frias esperanças.

O capitão António Barbosa de Brito trazia, sem os outros saberem, uma ordem do Conde general para o governador, e era assinada também pelo mestre de campo general e pelo dito capitão, escrita em um pedaço de papel, que era mais de um quarto, e nela dizia que Sua Majestade, que Deus guarde, por carte de 25 do corrente lhe ordenava que o avisasse de sua parte, lhe mandasse que não guardasse a capitulação feita com o inimigo, nem entregasse a praça,antes a defendesse até pela defensa dela derramar a última gota de sangue. Continha este papel o modo e sinais que se farião, e finalmente que o exército socorreria a praça a todo o risco, em conduzindo a gente que dele se tinha divertido [quer dizer, após reagrupar os soldados que se encontravam dispersos ou que tinham desertado do exército de socorro].

Para ver esta ordem chamou o governador a câmara, nobreza e povo, clérigos e todos os cabos da guarnição, capitães e daí para cima, e propôs que El-Rei [na verdade, a Rainha regente] mandava aquilo, mas que para o executar não havia pólvora para mais que três dias, e poupando-a para quatro, que o punha a votos, e que me pedia que eu os tomasse a todos, assinando cada um o seu.

A mim me pareceu que a ordem se devia executar, e não pôr em conselho, e entre outras coisas que mais disse foi este meu voto. Mandei de tudo fazer auto pelo escrivão da câmara, e por ser a casa do governador pequena e a gente muita, e estar mal acomodada, me passei paraa igreja de Santa Maria, aonde me chegou recado que somente a câmara, clero, governança e povo tomasse os votos, e que os da guerra lhos tomaria o governador. Assim o fiz, e de todos os que votaram só seis ou sete foram de acordo que a capitulação se guardasse, e destes ficaram quatro em Castela, os mais votaram que a praça se defendesse.

Mandei estes autos ao governador e ele mos tornou, dizendo que fosse com um homem da governança a ver a pólvora que tinha e me desenganaria eu e eles; eu lhe respondi que Sua Majestade me tinha mandado uma certidão do almoxarife, em que declarava a pólvora que tinha, que me parecia quantidade bastante, se se gastasse com boa ordem, e não tinha outro parecer senão o que já tinha dito. Disse-me então o procurador, que era o capitão Manuel Mendes Mexias, que o governador, estimulado do meu voto e dos da governança, estava de acordo de queimar os armazéns e formar os terços, investir as linhas, e salva-se quem se salvar.

Eu lhe dei em resposta que a ele lhe ordenavam que defendesse a praça, e não que a perdesse desta ou da outra maneira, e que nem tudo o que dizia podia fazer. Pela tarde apareceu o nosso exército em Vila Real com cavalaria avançada, em modo de nos vir socorrer.

Neste dia entregou o governador todos os armazéns, artilharia e munições e mantimentos a D. Diego de Rueda, e fez esta entrega o Du Four.

29 – 3ª feira mandou o governador ao capitão da ordenança João Lourenço Matos que fosse levar os reféns ao nosso exército; ele foi, e os primeiros que levou não lhos aceitaram, dizendo que haviam de ser à vontade do governador que contratou e que dessa não constava. Sendo disto avisado o governador, deu um rol de seis, os quais eram o Conde de Medellin, o filho do de Montijo, o do Marquês de Barcarrota, D. Rodrigo Mexia, D. Francisco de Guzmán, o Conde del Axenal, e deu um escrito em que dizia que se satisfaria com dois; destes foram levados ao nosso exército o filho 3º do de Montijo e o de Barcarrota, e os aceitaram.

30 – Era o dia final da entrega quarta-feira pela manhã, e sendo já bem tarde, não tinha vindo o nosso capitão a nos fazer certo que os reféns estavam já no nosso exército, contudo chegou com uma hora de dia. O Duque pedia a entrega, o governador dizia que conforme o contratado não havia de sair o povo e guarnição, senão em um dia pela manhã, e que depois de ele sair entraria a sua guarnição, e que aquela hora era tarde, que amanhã faria a entrega. Contudo lhe entregou logo a praça, largando-lhe a porta de São Francisco e o baluarte do mesmo santo, e o de São Brás.

Entrou a bagagem do castelhano, o Duque e alguns cabos e particulares. O nosso exército esteve sempre à nossa vista, esperando algum movimento nosso que não houve.

Ao outro dia, que era 5ª feira, saiu o povo, ficando lá somente, por então, 43 casais, e passaram para cá 942 largando suas casas e fazendas, e ainda dos que ficaram pedem bagagem para virem muitos.

Em meio do caminho nos mandaram fazer alto, e se lançou em nome de El-Rei de Castela um bando em que prometiaa todos os que ficassem que não pagariam alcavalas, nem teriam alojamentos, nem na praça meteriam guarnição estrangeira, senão de espanhóis, que dariam aos moradores razão e o mais que dessem aos soldados, que lhes reformariam as casas que arruinou a artilharia e lhes guardariam seus foros e privilégios, e lhes concederiam outros maiores, contudo nenhum tornou para trás. E vieram ao nosso exército, e daí se repartiram pelos lugares de Borba, Vila Viçosa e Elvas, aonde pelas justiças e câmaras lhes fizeram suas boas passagens.

Antes de Manuel de Saldanha [governador da praça] chegar ao exército, foram 20 cavalos levá-lo preso a Vila Viçosa, de onde depois foi passado à Torre de Belém. O mestre de campo João Álvares de Barbuda foi levado a Évora Monte.

A perda de Olivença teve como resposta, no ano seguinte, a fracassada tentativa de tomada de Badajoz pelos portugueses. A empresa partiu da iniciativa de Joane Mendes de Vasconcelos, cuja opinião tinha sido até aí contrária  a toda e qualquer operação de cerco àquela importante praça raiana. Ainda em 1658, foi a vez de D. Luís de Haro iniciar o cerco de Elvas, que culminaria em Janeiro do ano seguinte na batalha das Linhas de Elvas, da qual o exército português saiu vencedor. Pode afirmar-se que a tomada de Olivença pelo exército espanhol inaugurou o período final da guerra na fronteira alentejana, durante o qual se registou um aumento de intensidade das operações militares. Mas ao contrário do que foi temido aquando da perda da praça pelos portugueses, o revés de Olivença não conferiu grande vantagem estratégica aos exércitos de Filipe IV: toda a região raiana, de um lado e de outro da fronteira daquela parte, estava bastante devastada e incapaz de servir de apoio a exércitos numerosos. De facto, até ao nível das operações de saque e pilhagem, a guerra no Alentejo e na Extremadura flectiu mais para sul, para os campos do Baixo Alentejo e os domínios dos Duques de Medina-Sidónia, que até aí haviam sido relativamente poupados às acções de guerra.

Olivença seria devolvida à soberania da Coroa portuguesa após o Tratado de Paz de 1668.

O texto, cuja transcrição (com ortografia actualizada) ora se conclui, corresponde a um manuscrito anónimo existente na Biblioteca Nacional, secção de Reservados, agora somente disponível em microfilme (FR 970), cujo título é Relação de tudo o que [se] passou em Oliuença e no Campo do Cerco e tomada da praça pellos Castelhanos. Abril anno de 1657.

Imagem: Nova et accurata tabula Hispaniae, de Cornelis Dancker, c. 1656 (detalhe do mapa). A vila de Olivença, que no mapa não se encontra legendada, está aqui assinalada a vermelho. Biblioteca Nacional, Cartografia, CC 1214 A.

Cerco e tomada de Olivença (9ª parte – de 16 a 22 de Maio de 1657)

Juromenha

[16] – Ao amanhecer deu o inimigo a última investida e meteu no forte quantia de cinquenta homens, sem forma, os quais chegaram até o meio do vão dele e daí tornaram a recolher-se ao vão do fosso; então se retirou a infantaria que aí estava, e o tenente Manuel Pacheco, montando já em outro cavalo, a trouxe toda a salvamento, sem perder homem algum, ainda que dos de cavalo perdeu muitos. Acudiu Domingos Álvares Rogado, cabo dos rocins e éguas da sua terra [cavalaria da ordenança], e rechaçaram aos que entraram no forte, e acabou a infantaria de se pôr em salvamento na nossa estrada encoberta.

O inimigo perdeu muita e a melhor gente nesta investida, entre eles o sargento-mor de D. Pedro Alvarez de Toledo, e a um mestre de campo irlandês, pelo qual fizeram grande sentimento; na algibeira deste se achou a relação do seu terço e tinha 159 praças, contando sete da primeira plana em cada companhia.

Neste dia se pôs em conselho se se recolheria a guarnição da estrada encoberta, porque o inimigo pela parte do forte e dos ataques nos fazia dano; resolveu-se que sim, e pelo meio-dia se recolheu com pressa, sem haver quem os seguisse, contudo deixaram por retirar mortos e munições e madeiras de cortaduras, e outras coisas, como cavalinhos de pau, que tudo ficou no fosso. Fecharam-se as portas e se terraplanaram com a artilharia do cavaleiro, e do baluarte de S. Pedro se bateu o Forte Velho ocupado pelo inimigo, e suposto lhe mataram muita gente, não lhe arruinaram a parede que ficava para a nossa parte, assim por ser a parte dela de formigão, como porque o inimigo a ia terraplanando com faxina e terra.

[17] – Todo o dia de quinta-feira trabalhou o inimigo no terraplano do Forte Velho e fez plataforma nele, ainda que lhe não vi nela artilharia. Meteu de guarda um terço, que ao parecer teria trezentos homens; a nossa artilharia lhe fazia grande dano, por estar a gente mal coberta. Neste dia, por noite, se mandou um correio ao Conde de S. Lourenço.

[18] – 6ª feira todo o dia se pelejou bem, e por noite se despediu a Diogo Soares para levar cartas ao Conde general [Conde de São Lourenço]. Pela meia-noite se viu um sinal em Juromenha, de que o nosso correio era ali chegado. Neste dia tornaram a assistir em cada um dos baluartes os três homens da nobreza e governança, que de antes estavam nomeados; o inimigo fez muitas cortaduras de faxina no fosso do forte ganhado, porque estava descoberto à nossa mosquetaria do baluarte de São Pedro, e por elas se veio chegando à estrada encoberta por aquela parte.

19 – Sábado por noite fez sinal Juromenha de que o nosso correio era chegado àquela praça; de tarde se viram na atalaia de S. Robes Vieira fumaças, de que se deu parte ao governador. De tarde fez o inimigo chamada, e a ela mandaram o capitão António Barbosa, e trouxe recado [do] que o Duque dizia. Quinta-feira, 17 do presente, acometeu o nosso exército a escalar Badajoz, e fora rechaçado com perda de 500 homens, e assim o Conde [de São Lourenço], desesperado, se recolhera com parte do exército para Campo Maior e parte para Elvas, e ele desfeito como estava ficávamos impossibilitados de socorro, e assim nos convinha entregar a praça, para o que se faziam todos os bons partidos, aliás [ou seja, em caso contrário] a força, a fogo e sangue.

Trouxe esta embaixada o general da artilharia Tarragona, e a chamada a fez o tenente João de Vilanova, soldado conhecido e prático. Recolhido o capitão com o recado, sucedeu que o inimigo, pela parte de São Pedro, disparou uma peça de artilharia, com que nos matou um soldado; fez-se queixa ao governador, e ele mandou que desde o baluarte de Santa Quitéria até o de São João atirasse quem visse a quem, e daí para diante houve cessação de armas; foi um ajudante com a ordem para uma parte, e outro para outra, mas o que mandou atirar chegou primeiro, com o que os soldados pela muralha foram atirando à roda e com tanta presteza, que por toda a parte se deu uma redonda carga que lhe matou muita gente, principalmente a artilharia, contudo se mandou cessar por uma e outra parte.

Deu-se em resposta ao inimigo que um exército de 20.000 homens como o nosso se não derrotava com perda de 500, nem o governador estava certo disso; que a ordem que tinha era de pelejar, para o que tinha pólvora e balas, que o senhor Duque fizesse o que melhor lhe parecesse. Despedido o da chamada, se deu outra carga redonda de mosquetaria e artilharia, e ficámos à bateria como dantes. Estava pela parte [do baluarte] da Rainha chegado o inimigo com o seu ataque, sem haver entre ele e a nossa estrada encoberta maior distância que a grossura da tapa que fazia face ao parapeito, e daquele lugar se pelejou muitos dias até com manguais, contudo o suposto largámos a estrada encoberta; o inimigo não rompeu para ela, nem passou ao fosso, mas porque o devia fazer para chegar à muralha, e o fazia com menos risco de noite, lhe punha o De Four uns fachos acesos, que lançava no fosso, com o que tudo ficava claro, e nós vendo se o inimigo obrava alguma coisa.

Pareceu-lhe, ao sargento-mor Manuel de Magalhães, que se o inimigo entrasse poderia facilmente apagar os fachos que estavam no chão, e assim ordenou outros, que foram os candeeiros da Misericórdia com novelos de azeite, que a Câmara deu os necessários, e pendurava estes da muralha bem acesos, e davam luz bastante, com que o fosso ficava bem claro.

Desta maneira, de dia e de noite, até terça-feira 22 deste mês, neste fatal dia para Olivença, fez o inimigo chamada pela uma hora depois do meio-dia; veio a ela o Tarragona, que sempre foi o que as fazia, e tornou a pedir que se tratasse das antigas capitulações; o governador veio nisso, e mandou ao ajudante Domingos Martins Porto que me fosse pedir o primeiro original delas, que me tinha ficado. Estava eu dormindo no corpo da guarda da Corna e chegou o ajudante e me acordou, dizendo da parte do governador que lhas desse. Eu as tirei da algibeira e lhas dei, e tornei a dormir, quando daí a pouco ouvi grande rumor, e me acordou o sargento, dizendo [“]Senhor, acuda Vossa Mercê ao capitão Barbosa, que o mata o povo[“], e me disse que era motim, em razão de que se capitulava com o inimigo. Eu acudi e o capitão já era livre e enviado ao governador, aonde fui a informar-me do que passava, e ele me disse que o nosso exército nos não socorria e que o inimigo lhe concedia três dias para mandar a ele enviados, que o queria fazer porque desse modo punha a praça nas mãos do Conde general, se a quisesse socorrer, que podia, porque cá tinha no exército tudo o que podia esperar, e se não quisesse, que então o dito general a entregava com a não socorrer, e não ele.

Eu não consenti em o termo, nem em muitos artigos, e assim chamei a Câmara e governança e povo, e juntos fomos a Santa Maria, e levei a capitulação que o governador me largou, e lá fiz quatro artigos. O primeiro, que os moradores pudessem levar tudo o que seu fosse no termo de 8 meses, ainda que as coisas que quisessem levar fossem mantimentos ou coisas defesas [proibidas] de passar de um Reino para outro, e que pudessem deixar um feitor para lhas vender se lhes estivesse bem, e remeter o procedido delas, e querendo-as trazer, lhe daria o Duque bagagem, comboio e segurança necessária.

O segundo, que de qualquer modo que o nosso exército se afrontasse com o do inimigo e pelejassem, ainda que fosse só com a artilharia, não seríamos obrigados a estar pelo capitulado. O terceiro, que de qualquer modo que fôssemos socorridos e com qualquer número de gente que fosse, ficaríamos livres do capitulado. O quarto, que o Duque nos daria tempo de dez dias, e lugar para neles mandarmos sete enviados para dar conta ao Conde general do estado da praça, e que estes poderiam dentro deste termo passar e repassar pelo seu exército com toda a segurança, e se lhes daria um comboio [escolta] até chegarem ao nosso exército.

O primeiro intento que tivemos nisto foi desavirmo-nos com o Duque, e em caso que tudo concedesse podia o nosso exército, com qualquer gente que tivesse, vir de S. Ildefonso, aonde estava, para o quartel da Amoreira, ou tomar outro que melhor lhe conviesse, e pondo-se à bateria com o inimigo, nos iria defender, e em qualquer boa hora nos socorresse, ainda que furtivamente com algum número de gente, e parece que bastaria qualquer socorro para o inimigo largar a empresa, ou nós podermos tornar a guarnecer o que lhe tínhamos ganhado.

Fizeram-se outros motins contra algumas pessoas, o governador mandou formar na sua porta três companhias de infantaria, e assim as teve até o dia da entrega. Entendeu o governador que, para dar satisfação ao Paço do que se tratava com o inimigo, convinha mandar com o seu capitão algum homem da governança, e assim mandou naquele dia ao tenente Rui Peres Sardinha [oficial da cavalaria da ordenança – era muito frequente os oficiais das companhias da ordenança serem membros do poder local; por exemplo, vereadores das câmaras], e ao outro dia a Lourenço Galego Fajardo e o padre António de Matos, e de outra vez a Fernando Gomes de Cabreira e o padre Manuel Frade Lobo, e outra vez a João Farinha Lobo; porém, estes não levavam ordem demais que ouvirem o que se dizia e o capitão tratava.

Dilatámos a resposta acima, e ficou para responder-se ao outro dia até o meio-dia, o que o inimigo levou muito contra sua vontade, mas esperou até o outro dia pelas dez horas [que] se lhe respondesse; assim, ele concedeu oito dos dez dias pedidos, e sem conceder mais coisa alguma do que de novo pedimos, concluiu o governador com o seu conselho este negócio, e mandou reféns, que foram o mestre de campo João Álvares de Barbuda e o capitão Manuel de Brito do Carvalhal, que governava o terço de Beja, e de lá vieram o Conde de Torrejon e o sargento-mor D. Diego de Rejeda.

Estando já neste estado a praça, pediu o governador que na Câmara nomeássemos os sete homens qu haviam de ir ao exército, e entre outros me nomearam a mim e ao sargento-mor Manuel de Magalhães Galvão; porém ele disse que em nenhum caso podia ficar sem nós, porque temia alguma invasão, ou desavença do inimigo; com isto nomeámos, com seu acordo, a João Mendes Mexia, que é o que passou à Corte, e Fernando Gomes Cabreira, Gil Lourenço Codesa, vereador, o capitão António Barbosa de Brito, Simão Lopes de Oliveira, João Rodrigues, lavrador, e para os levar e vir com certeza de que lá ficavam, foi o padre António de Matos Mexia, a quem Sua Mejestade fez mercê da abadia de Carrapeto.

(conclui na próxima parte)

Este texto corresponde à transcrição (com ortografia actualizada) de um manuscrito anónimo existente na Biblioteca Nacional, secção de Reservados, agora somente disponível em microfilme (FR 970), cujo título é Relação de tudo o que [se] passou em Oliuença e no Campo do Cerco e tomada da praça pellos Castelhanos. Abril anno de 1657.

Imagem: Juromenha – praça com a qual a vila de Olivença mantinha comunicação por sinais visuais à distância (fogos, à noite), durante o cerco de 1657. Foto de J. P. Freitas.

Cerco e tomada de Olivença (6ª parte – de 9 a 12 de Maio de 1657)

Olivença

9 – Pela madrugada da quarta-feira trabucou o inimigo, e a primeira bomba caiu no fosso; ao cair alcançou uma égua de Lourenço Martins Sembrano e a partiu em duas, e ao rebentar matou o sargento-mor Diogo d’Aguiar da Mota, engenheiro; deu-lhe um pedaço dela na cabeça de que logo morreu; tinha-se confessado na tarde do dia de antes e era soldado honrado.

Quinta-feira dez, pela manhã, deixou o nosso exército o quartel da Amoreira e marchou direito para o Guadiana, pelo caminho por onde tinha vindo, e o vimos [n]o cabeço de Vila Real; a cavalaria do inimigo o seguiu pouco espaço de longe. Choveu neste dia como nos mais.

Pela tarde fez o inimigo chamada pela parte do Ral, e mandou[-se] ao capitão António Barbosa de Brito que fosse saber o que queria; trouxe por resposta que o nosso exército viera para nos socorrer e estivera à vista tanto tempo, e que desenganado de que o não podia fazer, e por outras causas maiores, que alguma hora saberíamos, nos dera as costas e se recolhera, de maneira que logo aquela manhã passara o rio e assim ficávamos sem esperança de socorro [esta informação dada pelos espanhóis era correcta e reportava-se à aparentemente estranha decisão tomada pelo Conde de São Lourenço, comandante do exército do Alentejo, de retirar-se das proximidades de Olivença e desistir de socorrer a praça sitiada]; que admitíssemos as capitulações e práticas [ou seja, conversações – “prática” também significava “conversa”, tanto no século XVII como nos anteriores], que nos concertos se nos concederiam os maiores e mais honrosos partidos que em outra praça se tivessem concedido; e que isto nos escusaria de padecer hostilidades, e que para responder nos davam termo de duas horas. Houve nesta ocasião cessação de armas.

O governador me mandou dizer que importava que nos víssemos, e quando cheguei o achei na porta de São Francisco sentado com os mestres de campo João Álvares de Barbuda e os engenheiros Du Four e Gilot, e com eles Castilho [Stéphane Auguste de Castille], e também o sargento-mor Manuel de Magalhães, com mostras de grande sentimento. Disse-me o governador que tivera aquela chamada do inimigo com aquele recado, que era necessário dar conta ao povo, para o que mandasse chamar a Câmara, porque o nosso exército, com o que fez, nos tinha posto naquele extremo de desventura; que salvássemos a guarnição de El-Rei [apesar de D. João IV ter morrido no ano anterior, este termo é uma generalização que se reporta ao exército régio], as vidas, honras e fazendas dos moradores, e que se fizesse chamar logo a Câmara, porque do termo para a resposta não tínhamos mais que meia hora.

Eu respondi o que se me ofereceu, e à minha resposta disse Gilot e o [Du] Four que não evitasse tal, que eles se obrigavam a tornar a ganhar a praça dentro de doze dias, a isto respondi pior ainda; e fui à Câmara, e disse aos vereadores que advertissem que queriam entregar a praça, que vissem o que lhe propunham e o que lhe respondiam.

Negou o governador, e com ele Gilot, e assentados propôs o que o inimigo mandava dizer, e que queria dar-nos conta, porque se não admitíssemos a prática não nos ficava recurso, e que o nosso exército, em lugar de nos socorrer, se retirava, como víamos, e disse mais que a prática não era a fim de entregar a praça, senão de entretanto descansar a guarnição e propormos as munições; e o inimigo estar gastando tempo, sem proveito algum; disseram todos que, sendo só para esse fim, se admitisse a prática.

Partiu o governador para a porta e a mandou guarnecer com as companhias da terra dos capitães Francisco Lobo de Cabrera e Rui Vicente de Matos, e logo mandou aprestar ao mestre de campo João Álvares de Barbuda e [a]o sargento-mor João Álvares Coelho, para irem por reféns. Eles se foram a enfeitar [vestir o melhor trajo] e partiram para lá, e do exército vieram para cá D. Pedro Alvarez de Toledo e o Conde de Torrejón, mestres de campo, e os recolheram em casa de João Mexia, onde lhes puseram guardas.

Neste tempo se tocou na vila uma arma de boca mui viva, e como a gente toda sentia mal de se admitir a prática, andavam os mais deles furiosos, com o que correram à muralha muitas mulheres com armas e fizeram o mesmo. O governador acudiu a guarnecer e animar a gente. Estando na porta do calvário, onde eu também estava, lhe disse o padre João Lobo Freire: Senhor governador, estes velhacos não são para mais que fazer enganos e traições. Vossa Senhoria tem consigo muita e mui valorosa gente, que podem defender a praça e o Reino, não fie deles coisa alguma.

Respondeu a isto o governador que não falasse mais palavra, senão que o prenderia e o meteria em uma casa fechado de maneira que não falasse mais. A todos escandalizou uma resposta tão áspera dita a um sacerdote honrado e que, pelo que disse, a não merecia; o mesmo sucedeu ao tenente Manuel Pacheco, soldado honrado e valente, que diante de mim o descompôs, porque disse o mesmo; logo passou palavra que tornava o nosso exércio e que se vim batalhões na campanha, mas não foi assim.

Pela meia noite me mandou recado o governador, que lhe falasse; eu o achei com Gilot, e me deram as capitulações feitas sem eu nelas dar penada, e me disseram que as mostrasse aos vereadores, e que vissem se queriam para si e para o povo mais alguma coisa, e me disseram que o capítulo que falava nos frdes visse eu o que me parecia, que pediriam; e assim fiz isto só, e nesta forma os levei aos vereadores, e eles disseram que sendo para o que tinham assentado, que bons estavam, e os mandei tresladar de boa letra por João de Gusmão , escrivão do almoxarife, e os dei ao governador.

11 – Sexta-feira pela manhã entrou um correio do Conde general com carta sua, em que dizia que estranhava ao governador não lhe fazer aviso nenhum havia tanto tempo, que ele os fizesse mais amiúde que pudesse, e que o dito Senhor se tirava daquele quartel pelo discómodo grande dos soldados e cavalaria, mas que estivesse certo que quatro dias ou menos os havia de socorrer. O primeiro que trouxe a carta deu boa notícia do nosso exército. Vimos a carta todos e nos alegrámos muito, porque soubémos das mentiras e enredos que o inimigo nos contou chegando à fala, dizendo que tinham morto o Conde general e que cinco fidalgos, que o fizeram, estavam no seu exército, e outras grandes pataratas deste lote.

Pela tarde veio a resposta que o inimigo deu às capitulações, em que concedia algumas e negava outras; e no tocante aos cabos e soldados eram mal respondidos, com que se tornavam a enviar os seus reféns, e cobrámos os nossos, e tornámos às armas, o que foi de tanta alegria para todos que parece cobraram novos corações.

Pelejou-se valorosamente à noite e [n]o dia seguinte de sábado. Neste, sendo pelo meio-dia, saiu André Fernandes, filho de João Rodrigues, lavrador, pela estrada encoberta, e com um capacete na cabeça e um chuço na mão se arrojou ao aproche do inimigo pela parte da Corna e saltou dentro dele, e fez fugir vergonhosamente toda a guarnição [e] a gente fo trabalho, e lhe tomou ferramentas e armas que ficaram, e fez um feixe que carregou e trouxe depois de ter dado a três soldados que chegaram lá depois dele lá estar, as que puderam trazer, e com elas se vieram para a vila.

[12] – Neste dia mandou o governador para aquela parte de guarnição 200 homens dos moradores, com quatro cabos dos mais valentes que houve, e foram Cristóvão de Macedo, Rui Vicente de Matos, capitão da ordenança, e Domingos Gordo prado, filho do sargento-mor Gil Lourenço Cabeça, e o capitão Lopo Vieira Miguens. Estes guarneceram desde Santa Quitéria até ao revelim de São Lázaro, que é por onde o inimigo atacava por aquela parte. O nosso exército foi visto passar de Vila Real e marchar para os Matos de Ferreira; o inimigo saiu com a sua cavalaria para o outeiro de Castelo Velho, e por noite tornou para a sua linha.

(continua)

Este texto corresponde à transcrição (com ortografia actualizada) de um manuscrito anónimo existente na Biblioteca Nacional, secção de Reservados, agora somente disponível em microfilme (FR 970), cujo título é Relação de tudo o que [se] passou em Oliuença e no Campo do Cerco e tomada da praça pellos Castelhanos. Abril anno de 1657.

Imagem: Olivença na actualidade. Imagem obtida a partir do site Google Earth.

Cerco e tomada de Olivença, 1657 (1ª parte – 13 e 14 de Abril de 1657)

Luís XIV com soldados franceses no cerco de Tournai, 21-6-1667, Adam Meulen

Inicio aqui a transcrição de um manuscrito existente na Biblioteca Nacional, secção de Reservados, agora somente disponível em microfilme (FR 970), com o título Relação de tudo o que [se] passou em Oliuença e no Campo do Cerco e tomada da praça pellos Castelhanos. Abril anno de 1657. Este manuscrito anónimo foi transcrito e publicado por Horácio Madureira dos Santos em 1973, em Cartas e outros documentos da época da Guerra da Aclamação, Lisboa, Estado-Maior do Exército, pgs. 185-212. No entanto, dado o interesse do documento e a restrita divulgação do mesmo, creio ser oportuna a sua apresentação aqui. A diferença em relação ao original e à transcrição efectuada por Horácio Madureira dos Santos consistirá na actualização da ortografia utilizada, da pontuação (para facilitar a inteligibilidade do texto), na correcção de alguns erros de transcrição da versão de Horácio Madureira dos Santos e o acrescento de alguns apontamentos (mantendo, porém, os que foram da lavra de Madureira dos Santos, identificados com HMS). Trata-se um documento longo, que irá ocupar uma série de entradas superior à habitual, pelo que será possível que intercale esta série com outros artigos.

Relação de tudo o que [se] passou em Olivença e no campo do cerco e tomada da praça pelos Castelhanos. Abril ano de 1657

A 12 de Abril tocaram arma as atalaias que ficam dando vista à ribeira, quarta-feira [erro; trata-se de quinta-feira, conforme notou HMS] pelas sete horas da manhã, e como não tínhamos particular aviso que o inimigo marchava para Olivença, tivemos que seria rebate ordinário. Montou-se a cavalaria governada pelo tenente-general Achim de Temarachut [Tamericurt], e foram descobrindo para aquela parte [de] Joana Castanha. Tinham parado doze batalhões direito ao caminho que vai de Juromenha para Olivença, a fim de não deixarem passar pelo porto de Guadiana nenhuma coisa de uma praça para a outra. Com este aviso se acolheram à praça todos bem sentidos de ficar a cavalaria dentro, pela falta que faria aquele troço de nove companhias no nosso exército.

Pelas dez horas do dia vimos a vanguarda do exército marchando da coutada da ventana pela de Fiselha para a fralda da serra de Olor e se foram entrando pelos olivais, ocupando o outeiro do Espinhaço de Cabra e Vale de São Francisco o Velho, e ali começaram o seu primeiro quartel que por muitos dias foi o da Corte [ou seja, o do Estado-Maior do Exército].

Sexta-feira 13 do dito mês saíram da guarda as companhias dos tenentes-generais e as de D. Luís da Costa e João do Crato da Fonseca, que por ser mais antigo as governava, e indo ele descobrindo pela parte do Pereirão, deu vista de uma partida do inimigo, que trazia língua [ou seja, um civil português, capturado para da informações] e uns burros; arrojou-se a ela com cinco cavalos e tomou doi do castelhano e a presa.

Pelas dez horas do dia quis o inimigo reconhecer a praça e a viu em redondo, e todos os sítios em que podia aquartelar-se. A artilharia da praça fazia com que eles vissem tudo mais ao largo e com pouca segurança.

Estava o capitão D. Luís da Costa com a sua companhia junto da ponte de Ramapalhas e os batalhões do inimigo iam pela outra parte do ribeiro, e atrás deles dois soldados infantes por verem também, mas logo que foram vistos da nossa tropa mandou o capitão três soldados que pegassem deles, e intentando tomaram um que era vilão [civil, paisano], e não acharam o outro.

Nesta vista que o inimigo deu à praça chegou ao olival de João cabelo e para receber melhor o sítio, travou uma escaramuça com a companhia do tenente-general Dinis de Melo [de Castro], governada pelo seu tenente Manuel Dias Veloso, que se houve com muito valor e resolução. Da muralha e do forte lhe deram, ao inimigo, carga alguns mosqueteiros [dar carga, neste sentido, significa disparar], com que se  afastou e foi continuando em ver a praça e quartéis ou sítio acomodado para eles, e no fim se recolheu para o vale de São Francisco o Velho.

Pelo meio-dia veio marchando a bagagem e artilharia do inimigo e retaguarda do seu exército pelo mesmo caminho, e se recolheu tudo em o mesmo sítio que a vanguarda.

Logo que o inimigo chegou, mandou o governador Manuel de Saldanha guarnecer a estrada coberta tudo ao redor da muralha, a qual, em poucos dias que havia que estava na praça, tendo vindo da Corte, a mandou reformar com estacas de novo, que eu tinha nos meses de antes conduzido, e mandou consertar os parapeitos que em muitas partes estavam arruinados, e com o terço do mestre de campo João Álvares de Barbuda mandou trabalhar ao forte que Gilot [Jean Gilot, engenheiro militar] tinha principiado defronte da porta do Calvário, o qual era uma obra curva que continha três baluartes e dois meios, tudo pequeno, e fechava na estrada coberta com duas linhas, ficando a porta ou rastilho dela em o meio delas.

Estava esta obra muito imperfeita e a meu juízo feito menos de metade dela, conforme ao voto de todos se pudera escusar com um forte pequeno que ali tinha mandado fazer o mestre de campo João Lopes Barbalho, o qual se guarnecia com cinquenta mosqueteiros e bastava para impedir ao inimigo o alojar-se ali e bater daquela parte, e este outro nos ocupava nove companhias de guarnição com um cabo [no sentido de “cabo de guerra”, oficial superior, provavelmente um sargento-mor], e assim ficava a estrada coberta menos sortida de gente, e aquela ocupada com pouca utilidade e grande discómodo.

Abril 14. Teve notícia por algumas pessoas que passaram de Juromenha para Olivença que o inimigo não tinha impedido o caminho, o que foi parte para que a guarnição da atalaia de São João se recolhesse à praça depois de queimar a pólvora que tinha.

De tarde se mandaram aplicar as cavalgaduras que tinham vindo com o último comboio, e sendo noite as mandaram pelo caminho de Juromenha a cargo de um condutor da artilharia que tinha vindo com elas e passaram todas segundo nos informaram. Nesta noite partiu para o nosso exército [o exército de socorro, comandado pelo Conde de São Lourenço], com cartas, o ajudante de cavalaria Manuel da Silva Falcão, e chegou a ele com elas. Também entrou na praça um correio do Conde de São Lourenço.

(continua)

Imagem: Um cerco dez anos posterior ao mencionado na relação que acima se transcreve, e noutra latitude – Luís XIV de França assistindo ao cerco de Tournai em Junho de 1667. Quadro de Adam Meulen.