O mestre de campo Francisco da Silva de Moura nas derradeiras batalhas da Guerra da Restauração

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A batalha do Ameixial (8 de Junho de 1663) permanece hoje bem recordada na História de Portugal. A vitória aí obtida pelas armas portuguesas foi o primeiro passo importante para acelerar o desfecho da Guerra da Restauração ou da Aclamação. O segundo seria dado dois anos volvidos, em Montes Claros. As evocações laudatórias contemporâneas destas vitórias, bem como a historiografia tradicional que as perpetuou na memória colectiva, ofuscaram a trama – por vezes menos gloriosa, mas não menos interessante – de acontecimentos vividos por alguns participantes, cujas referências permaneceram esquecidas nos arquivos.

Um desses exemplos é o do mestre de campo Francisco da Silva de Moura, comandante de um dos terços que combateu na batalha do Ameixial. Francisco de Moura, anteriormente capitão de cavalaria, foi promovido a mestre de campo em Dezembro de 1662, substituindo no comando do terço João Leite de Oliveira, que fora nomeado governador da praça de armas de Campo Maior. A unidade encontrava-se desfalcada de efectivos, pois em Fevereiro de 1663 estavam em formação duas companhias para incorporar o terço.

O terço de Francisco da Silva de Moura participou na campanha de 1663, tendo combatido no recontro do Degebe e na subsequente batalha do Ameixial. De acordo com a lista detalhada dos efectivos do exército português, contabilizados após uma mostra (passagem em revista das unidades e respectivo armamento) dias antes da batalha, o terço de Francisco de Moura contava somente 400 homens em estado de prontidão, metade do efectivo previsto na orgânica. No Ameixial, participou na decisiva fase da batalha em que as unidades de infantaria inglesa e portuguesa assaltaram as posições do exército espanhol no monte Ruivinho, acção que precipitaria a derrocada do exército espanhol. Mas o desempenho de Francisco de Moura levantaria algumas suspeitas.

Enquanto as unidades inglesas progrediam pelo flanco do dispositivo inimigo, o terço português lançou-se frontalmente para a áspera colina. O cerrado tiro de mosquetes e artilharia provocou baixas no terço e o avanço vacilou. É nesta ocasião que Francisco da Silva de Moura dá a ordem de “Alto!”, suspendendo a progressão. A alguns oficiais seus subordinados, que dele estavam próximo, disse que iam a caminho da perdição, pois receava que, por detrás da infantaria espanhola, houvesse cavalaria pronta a carregar (o que seria impossível, dada a natureza do terreno e do dispositivo defensivo espanhol); e acrescentou que deviam marchar mais para o lado esquerdo, para se juntarem ao regimento inglês que progredia no flanco. Porém, os seus subordinados recusaram obedecer, considerando que seria um sinal de cobardia. O sargento-mor do terço Manuel de Sequeira Perdigão ofereceu-se de imediato para fazer um reconhecimento, indo a cavalo pela planície do flanco esquerdo, onde a cavalaria dos dois lados combatia. Voltou pouco tempo depois, assegurando – como seria de esperar – que não havia cavalaria inimiga na elevação a que tinham de subir. E o avanço foi retomado, contribuindo o terço para a quebra da linha defensiva espanhola na colina.

Francisco da Silva de Moura foi acusado, após a batalha, de estar conluiado com o inimigo e de ter recebido dinheiro para trair o seu próprio exército. A denúncia terá partido dos seus subordinados, provavelmente de alguns capitães. E assim, o mestre de campo foi conduzido sob prisão a Lisboa.

Nas operações de cerco e retoma de Évora, ocupada pelos espanhóis desde 21 de Maio e recuperada a 26 de Junho, o terço foi comandado interinamente pelo sargento-mor Manuel de Sequeira Perdigão. Este oficial continuaria a comandar o terço até meados de Setembro, quando um decreto régio ilibou Francisco da Silva de Moura das acusações que sobre ele pendiam e mandou restituir o posto ao mestre de campo, considerando que tinha procedido na batalha como vassalo fiel e zeloso do seu serviço ao rei:

Mandando averiguar a causa, por que foi trazido de Alentejo preso o mestre de campo Francisco da Silva, se achou que nela não fora culpado, antes tinha procedido como vassalo mui fiel e zeloso de meu serviço, do que fico com grande satisfação. O Conselho de Guerra, tendo-o assim entendido, o faça restituir a seu posto, e se lhe diga, que tendo algum requerimento sobre seus serviços, lhe mandarei deferir como for justo, e com o favor que houver lugar. Em Lisboa, a 19 de Setembro de 1663.

No último dia de Dezembro de 1663, encontrando-se o terço aquartelado em Elvas, Francisco da Silva de Moura recebeu a visita do açoriano Sebastião Correia de Lorvela, que como ele fora mestre de campo e comandara um terço na batalha do Ameixial. Os ventos da fortuna sopraram de modo diferente para Sebastião de Lorvela, promovido ao posto de general da artilharia e responsável por passar mostra às unidades de Elvas. A lista que mandou coligir indicava que o terço de Francisco de Moura contava 590 soldados, dos quais somente 439 se encontravam capazes para pegar em armas, estando os restantes doentes.

O terço participaria na batalha de Montes Claros, em 17 de Junho de 1665. No meio dos combates, o mestre de campo Francisco da Silva de Moura viria a ser mencionado, mas desta feita nos relatos da refrega e por motivos diferentes do que sucedera no Ameixial. Assim, logo no início da batalha, adiantou-se com o seu terço, aparentemente por querer demonstrar o seu valor, destacando-se da linha inicial do dispositivo. As unidades de mosqueteiros foram desbaratadas perante a carga da cavalaria inimiga; todavia, perante a admiração de todos, reorganizaram-se duas vezes entre o furor do conflito, enquanto a firmeza da formação de piqueiros manteve os inimigos à distância. E desta forma o mestre de campo limpou a afronta que sobre ele tinha recaído dois anos antes.

Fontes: ANTT, CG, Secretaria de Guerra, Lvº 28, fl. 132 v, de 15 de Dezembro de 1663 – carta patente copiada com erro da data (seria 1662), pois as seguintes datam de Janeiro de 1663; idem, fl. 135; Decretos, 1663, mç. 22, dec. de 19 de Setembro de 1663.

Imagem: Batalha do Ameixial (pormenor do painel de azulejos da Sala das Batalhas, Palácio dos Marqueses de Fronteira e Alorna).

Conflitos entre civis e militares estrangeiros: um exemplo de 1663

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Durante a Guerra da Restauração, Lisboa manteve uma vida mundana característica de capital de Império ultramarino e de porto de comércio internacional. Estrangeiros de várias partes da Europa circulavam na Corte, designação vulgar para a principal cidade do Reino, tendo aí negócios estabelecidos ou estando somente de passagem.

O conflito trouxe a Lisboa milhares de estrangeiros, mas de outra natureza: eram militares. Vindos em contingentes contratados pela Coroa ou por iniciativa particular, oferecendo os seus préstimos como soldados de fortuna, espalharam durante algum tempo as suas línguas estranhas pela capital do reino. Os momentos principais desse afluxo foram Agosto e Setembro de 1641 e os primeiros anos da década de 60, coincidentes com a chegada de unidades militares provenientes de França, Países Baixos e Inglaterra. Mas fora de Lisboa não era vulgar encontrar naturais de outros reinos, exceptuando alguns que tinham sido súbditos de Filipe IV até à ruptura da monarquia dual e que, sendo de nação espanhola, tinham aceite D. João IV como seu soberano e continuado a sua vida normal. E estes encontravam-se principalmente na raia.

É longe da Corte, nas comunidades rurais das províncias que foram teatros de operações militares, que o impacto da chegada de centenas de militares estrangeiros provoca mais estranheza. Não só o linguajar é impenetrável, como as diferenças de religião (quando se tratava de Protestantes calvinistas ou luteranos) causam uma forte clivagem com a população local. Note-se que a obrigação dos povos alojarem em suas casas militares portugueses já era motivo de alguma conflitualidade, devido a abusos provocados pelos aboletados. Tudo se tornava pior quando eram estrangeiros a entrar portas adentro, sendo as diferenças mais vincadas do que, por exemplo, as que separavam o camponês do Alentejo do soldado proveniente de Trás-os-Montes ou de Entre-Douro-e-Minho. A convivência não era fácil e ultrapassava o limite de quatro paredes.

Os testemunhos de confrontos violentos entre civis e militares estrangeiros tornam-se mais frequentes na década de 60. Nessa fase final da guerra, os efectivos estrangeiros, presentes sobretudo no Alentejo, são incomparavelmente superiores em número aos que tinham ali estado no início do conflito, entre 1641 e 1645. E a conflitualidade não se resume ao choque com a população civil: há casos em que militares portugueses e estrangeiros se batem devido a querelas pessoais (e por vezes em grupo).

Os franceses são alvo de mais queixas do que os ingleses. Enquanto os militares enviados por Carlos II são profissionais da guerra, na maior parte veteranos, os franceses chegados em 1663, após a batalha do Ameixial, têm uma origem diferente: muitos foram recrutados à força nos locais mal-afamados de Paris, eram em boa parte pequenos criminosos, proxenetas, jogadores, enviados para Portugal por ordem do Visconde de Turenne, em resposta ao pedido do Conde de Schomberg (que esperaria, sem dúvida, um lote diferente de reforços).

Os episódios que aqui se apresentam são dois entre vários, ambos ocorridos em 1663. Na consulta do Conselho de Guerra de 24 de Setembro desse ano é apresentada uma carta do Auditor Geral do Exército do Alentejo, Inácio de Guevara, datada de 17 de Agosto e escrita em Arraiolos, onde se encontrava desde 21 de Julho para fazer a devassa (audição) do que sucedera poucos dias antes, envolvendo o regimento francês alojado naquela vila. Verificou que tinham ocorrido dois casos.

O primeiro foi que sendo em os seis dias do passado, estando umas mulheres daquela vila lavando em uma horta do termo dela, chegaram ali uns franceses e quiseram entender com elas, e achando-se presente um João Marques e seu filho Manuel Gomes, e Pedro Gonçalves da porta das Santas, e outros paisanos, acudiram pelas mulheres, e uns e outros se descompuseram, de maneira que os franceses mataram os três nomeados e feriram os mais que puderam, e vindo-se para a vila se formaram todos, fazendo arrastar pelas guedelhas a um Gregório da Cunha da Mota, pessoa nobre daquela vila e que nela serve de vereador, por ser dono da horta em que se principiou a pendência, e saindo o juiz de fora o descompuseram, de maneira que lhe foi forçoso retirar-se a casa pelo não matarem [para que não o matassem]. Mas não constava dos franceses e pessoas certas que cometeram estas mortes, por não serem conhecidas dos naturais, nem lhe saberem os nomes, mas somente falam as testemunhas genericamente, dizendo que os franceses cometeram este delito, e as mais coisas de que se queixam.

E o segundo caso foi, que indo uns seis soldados franceses em  vinte e um do passado a uma herdade daquele termo que chamam a Pastaneira, e entrando em um rebanho de ovelhas pegaram em algumas delas, ao que acudiu o lavrador da herdade por nome Manuel Dias, e dois irmãos, Estevão Dias e Domingos Dias, e um seu cunhado por alcunha o Chaveiro, e dois pastores seus, a que se não sabe o nome, com espingardas [armas de caça], pistolas e espadas, e dois dardos, e avançando aos franceses, que eram outros seis homens, lhes foram fugindo até junto ao monte de um Manuel Rodrigues, da herdade que chamam Boletas, distância donde as ovelhas estavam; e ouvindo a gente do monte tiros de espingarda saíram à porta e viram os sobreditos, que depois já de terem derrubado no chão a quatro franceses às espingardadas, os acabavam de matar às estocadas. ficando logo quatro mortos e dois tão mal feridos, que um deles morreu daí a poucos dias, e lastimado, e queixoso o dito lavrador deste caso, por ser junto da sua casa, quis acudir, mas Manuel Dias, que era o principal dos matadores, levou o cão à espingarda para lhe [a]tirar, e assim se retirou pelo não matarem, e eles se foram para outra herdade. O juiz da terra mandou fazer exame nas feridas dos mortos, em que se viu bem o mau ânimo dos delinquentes e a atrocidade do caso, na quantidade das feridas, nos instrumentos com que se fizeram e na distância em que os seguiram. O primeiro morto, que se chama João de Achino, tinha oito balas por diferentes partes de seu corpo; Jean Lombican, uma bala na cabeça e sete estocadas pelos peitos; Jacques Serman uma bala numa mão, outra numa virilha esquerda e seis cutiladas na cabeça. Nicolau Nezelé seis estocadas na barriga; Martin Berten, três feridas de bala, uma pelas costas e outra na cabeça, e outra num braço. Jacques Lomeo uma bala na barriga, seis cutiladas na cabeça e sobretudo lhes levaram as espadas, alguns capotes e chapéus. E este era o sucesso que aconteceu a estes pobres franceses, que todo aquele povo, sem embargo de estar queixoso, sentiu, estranhou com grande lástima.  […]

O Conselho de Guerra enviou a carta do Auditor Geral para o Juiz Assessor, Dr. Jorge da Silva Mascarenhas, para este dar o seu parecer. Tendo este visto a carta, disse “que é muito para considerar, que vindo os estrangeiros franceses e ingleses a este Reino em serviço de Vossa Magestade e em ajuda e favor da defensão dele, tratem os vassalos de Vossa Magestade nas pessoas, honras e fazendas como se foram os maiores inimigos nossos”.

Considera que o primeiro caso “é atrocíssimo, pois quiseram os homens defender as honras de suas mulheres e os franceses os mataram, e ainda que Vossa Magestade deve servir-se, guardando-se-lhe a imunidade de seus privilégios, ordenar ao cabo desta gente que, informado dos delinquentes, os castigue com a pena exemplar”.

Também no segundo caso o juiz considera serem merecedores de castigo exemplar os culpados, pois apesar de ser direito natural e divino defender a sua propriedade, os lavradores excederam o modo como o fizeram, pois não contentes de haver defendido a sua propriedade, passaram à crueldade e à atrocidade, seguindo por espaço largo os pobres, “que já pode ser que com fome intentassem aquele caso”. E que devia ser motivo de castigo exemplar, “para satisfação dos franceses, e exemplo do modo com que eles devem castigar os seus, porque ficando um e outro caso sem castigo exemplar, se pode temer se origine uma guerra civil entre os estrangeiros e naturais, persuadindo-se uns e outros, lhes é lícito tomar vinganças próprias por si, sem temor do castigo”.

O Conselho de Guerra deu  o parecer de que o segundo caso não devia ser castigado por via de alçada, por ser muito moroso, mas que se encarregasse a um ministro dos que assistem naquela província, com urgência.

 Fonte: ANTT, CG, Consultas, 1663, mç. 23-A, consulta de 24 de Setembro de 1663.

Imagem: Joost Cornelisz Droochsloot  (1586–1666), soldados procedendo a um recrutamento forçado.

Incursão portuguesa e combate de cavalaria nos azinhais de Montijo, Agosto-Setembro de 1649 (parte 2 e última)

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Numa série de três artigos publicados em Junho de 2008, sobre o combate de Cabeço de Vide (23 de Abril de 1649) a partir das memórias do soldado Mateus Rodrigues (Matheus Roiz), destacou-se a acção do comissário geral francês Achim Avaux de Tamericurt, que comandou as operações da cavalaria portuguesa nessa ocasião. Voltando às referidas memórias, retoma-se aqui o relato do memorialista sobre um combate sucedido meses mais tarde, nos azinhais de Montijo, cuja primeira parte foi publicada em Outubro de 2023.

E assim [o tenente-general Achim de Tamericurt] foi falar com o comissário Luís Gomes de Figueiredo, dizendo-lhe que Sua Mercê havia de ir com seis tropas por uma parte, e ele com as outras seis por outra, para que imaginasse o inimigo que era mais cavalaria. E além disso, como aquilo era azinhal tão basto, não podia o inimigo ver o que era e que havia de avançar com o inimigo primeiro do que ele, para o colher já desformado quando cerrasse com ele. Mas todas estas traças [ou seja, planos] eram fantásticas [ou seja, fantasiosas] a respeito de não terem todos o perigo que bem sabia ele que era certo, porque não tinha nenhum partido e queria que o inimigo se empenhasse com as seis companhias do comissário e no entretanto livrar as outras seis, como assim o fez.

De modo que o pobrezinho do comissário foi com as seis tropas entrando pelo azinhal em busca do inimigo, que já sabia aonde estava, com bom ânimo de pelejar, que era muito valente. E assim como ele se apartou do tenente-general, logo o tenente-general se foi alargando a bom passo pelo azinhal dentro e o nosso comissário a poucos passos deu vista do inimigo; mas como era terra tão coberta de mato, não viu logo o inimigo, o qual estava todo muito bem formado, esperando por nós. Assim como o nosso comissário viu o inimigo, avança com ele à espada com as seis tropas com bravo valor, e foi tanto que, com ter o inimigo uma vanguarda muito grossa e reforçada de 500 cavalos, a rompeu a nossa gente à pura pancada; mas que lhe serviu, que logo os colheram no meio com a demais cavalaria e os fizeram em migalhas. E tanto que os nossos viram tanto poder do inimigo e não viam as outras tropas nossas, logo se imaginaram perdidos e assim trataram de sua liberdade a qual podia fugir mais. Mas como o inimigo era muito e a terra era de arvoredo, assim como iam fugindo davam com as cabeças pelas azinheiras e caíam no chão. De modo que o inimigo os apertou tanto que mais de metade das seis companhias lhe ficaram nas unhas com muita gente morta e cativa. E o bom do comissário foi feito em retalhos para Badajoz, mas não lhe durou três dias. De modo que o inimigo, tanto que soube das outras seis tropas nossas que lá levava o tenente-general, foi como um raio em busca delas, mas ele já estava posto em seguro com elas. E assim se recolheu o inimigo a Badajoz com aquele gosto de ver que lavava mais de 150 cavalos nossos, aonde ficavam muitos mortos assim nossos como seus, porque ainda que a nossa gente era muito pouca e ficou com a perda, também lhe fizeram dano ao inimigo.

E volvendo ao que fez o tenente-general em mandar investir ao comissário com as seis companhias, foi que dava por razão que o perigo era certo, pois não tinham nenhum partido. E assim que, se foram todas as companhias, era verdade que faziam mais dano ao inimigo todos do que fizeram as seis, mas também a nossa perda havia de ser muito mais do que foi. E assim mais vale a perda em a metade do que em todas, porque indo todas haviam de querer pelejar e então era maior sua perdição. E essa desculpa dava ao Conde governador [das armas], e não há dúvida que foi bem mal afortunado o nosso tenente-general em fazer aquela entrada ao tempo em que o inimigo tinha a sua cavalaria junta para vir fazer uma entrada em Portugal. E foi também afortunado em que acha lá em suas terras aquela boa fortuna, mas a culpa tinha o tenente-general, pois que lhe dizia o Conde que levasse mais cavalaria, que era pouca para aquelas partes, e ele não a quis levar, dizendo que  aquelas doze tropas bastavam, e não há dúvida que assim era. Mas hoje não se confiam na fortuna, que tem muitos rodeios, senão levar tudo para o que pode suceder, que nunca a cautela fez mal, antes serve muitas vezes de uma boa fortuna. De modo que o princípio com que o tenente-general entrou no dito posto não foi com boas coisas, mas daí em diante sempre foi bem afortunado em suas coisas. Feita esta jornada em o mês de Setembro de 1647 [erro de Mateus Rodrigues: este acontecimento teve lugar entre Agosto e Setembro de 1649].

Fonte: MMR, pgs. 170-173.

Imagem: Abraham van Calraet (1642-1722), Escaramuça de cavalaria à beira de um rio.

1.º de Dezembro em Vila Viçosa

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Este ano estive presente em Vila Viçosa, a convite da Câmara Municipal daquela vila e do estimado amigo Alexandre Cabrita (Passado Vivo), para assistir à evocação do 1.º de Dezembro de 1640, numa perspectiva de recriação histórica de trajes, equipamento militar e insígnias da época.

Durante o dia houve desfiles pelas ruas da vila, com o acompanhamento da filarmónica local. À noite, nos Paços do Concelho, teve lugar uma palestra sobre o cerco de Vila Viçosa e a batalha de Montes Claros em 1665, que tive o prazer de apresentar. No dia seguinte, as duas associações de recriação histórico-militar, uma portuguesa e outra espanhola, prosseguiram a mostra no “acampamento militar” na Avenida da República, os desfiles e uma pequena simulação do ataque ao castelo, para o numeroso público presente.

Renovo os meus agradecimentos ao Alexandre Cabrita e à Câmara Municipal de Vila Viçosa, na pessoa do dr. Tiago Passão Salgueiro, pelo convite que me foi endereçado e todo o apoio prestado.

Bem hajam!

Nas fotos: em cima,  bandeiras arvoradas durante a concentração no Terreiro do Paço de Vila Viçosa, no dia 1; em baixo, pormenor do assalto ao castelo, com a bandeira da aspa de Borgonha (de um tércio espanhol) a ser arvorada em frente da igreja de Nossa Senhora da Conceição, pela primeira vez desde 1665.

 

Incursão portuguesa e combate de cavalaria nos azinhais de Montijo, Agosto-Setembro de 1649 (parte 1)

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Numa série de três artigos publicados em Junho de 2008, sobre o combate de Cabeço de Vide (23 de Abril de 1649) a partir das memórias do soldado Mateus Rodrigues (Matheus Roiz), destacou-se a acção do comissário geral francês Achim Avaux de Tamericurt, que comandou as operações da cavalaria portuguesa nessa ocasião. Voltando às referidas memórias, segue-se um novo relato do memorialista, desta vez sobre um combate sucedido meses mais tarde, nos azinhais de Montijo.

Quando Achim de Tamericurt teve a vitória em Cabeço de Vide […], era então comissário geral da cavalaria. E logo o Conde de São Lourenço, Martim Afonso de Melo, que governava então as armas [da Província do Alentejo], lhe solicitou o posto de tenente-general da cavalaria, que estava vago. E tão boas informações deu dele a El-Rei, que lhe mandou a patente do tal posto, que para um estrangeiro, na verdade, foi muito, sendo que ele era grande soldado. Mas o posto tem andado em grandes fidalgos, como foi Dom Rodrigo de Castro, e em dom João de Mascarenhas e em Dom Francisco de Azevedo, de modo que tanto que este francês se viu com o posto, logo quis tratar de ir a jornadas. Mas o princípio com que entrou no tal posto foi bem mau, que traçou uma jornada de que lhe serviu de grandes perdas e desgostos.

De modo que falou um dia ao governador, que lhe desse Sua Excelência licença para entrar nas partes de Montijo com doze tropas [companhias] de cavalo, que com as traças que ele lhe tinha dado não podia ter risco. Mas se ele não dava melhores traças do que aquelas […], foram para ele e para os que lá ficaram muito piores. De modo que concedida a licença, tomou seis tropas das que assistiam em Elvas e para não deixar a cidade sem cavalaria foi para Campo Maior, para levar as outras seis que lá estavam com o comissário que lá estava governando-as, que era Luís Gomes de Figueiredo. E havia bem pouco tempo que o era, que foi aquela a primeira ocasião em que se achou depois de ser comissário e com tão pouca fortuna que logo lá o mataram. Chegado o tenente-general a Campo Maior se pôs logo em marcha, porque já o comissário estava com as companhias fora da vila aguardando por ele, porque já tinha aviso antes. E assim como chegou, logo se puseram em marcha na via de Montijo, que são dali sete léguas, sempre por terra do inimigo, por grandes azinhais até aos campos. E naquela mesma noite marchou, de modo que amanheceu donde havia de fazer a presa, que era uma légua por cima de Montijo.

E ajuntando um grossa presa de gados se pôs em marcha com grande cuidado, porque não era lugar de fazer dilacção, porquanto lhe ficava Badajoz nas costas e Talavera e Lobón e Montijo, que em todas estas praças estavam 24 companhias de cavalo. Mas com tudo isso não havia de ter o que teve, se não fora o que sucedeu tão fora de tal não ser. De modo que o inimigo tinha junto a sua cavalaria naquele dia que ele entrou a Montijo, e assim como lhe deram aviso de que havia entrado a nossa gente para as partes de Montijo, vem-se como um raio com a cavalaria, que eram 30 tropas, que constavam de 1.500 cavalos.  E como a nossa gente vinha ainda muito longe, veio o inimigo a meter-se em o azinhal, porque ficava mais escondido para que não soubéssemos dele. E se pôs em parte por donde nós havíamos de passar forçadamente. Tinha o inimigo suas sentinelas ao largo, à nossa vista. E como a nossa gente trazia muitos batedores ao largo, deram vista das sentinelas do inimigo, e de tal arte e modo lhe armaram, que lhe apanharam uma. Mas já a este tempo a nossa cavalaria vinha formada e sem a presa, porque não era sítio aquele de zombar em se vendo qualquer cavalo do inimigo. E assim diziam todos que o inimigo estava lá diante, mas não sabendo o que podia ser. E logo que os nossos batedores tomaram aquela sentinela do inimigo, que a confessaram logo do que havia. E dizendo-lhe de como estava a sua cavalaria ali no azinhal, que eram 30 tropas, ficaram os nossos soldados admirados de ver o grande perigo que se lhes oferecia. Contudo levaram logo ali, muito correndo, a língua ao nosso tenente-general, que bem alheio vinha de tal. E assim como confessou [“confessou”, neste sentido, significa “arrancou confissão”, fê-lo falar] a parte ao castelhano, não ficou muito contente, porém já não tinha nenhum remédio senão pelejar, porquanto não tinha para onde se retirar sem grande perigo. Contudo, fez suas contas entre si e não deixou falar ninguém com o castelhano, para não saberem o que havia, senão passou uma palavra a todos, que tinham um bom dia, pois o inimigo estava lá diante com doze tropas. E não lhe[s] quis dizer de mais, porque era descoroçoá-los [desmoralizá-los] de todo. E tudo isto já muito perto donde o inimigo estava.

 (continua)

Fonte: MMR, pgs. 168-170.

Imagem: Cena de batalha, c. 1645-46, óleo de Philips Wouwerman (1619-1668), National Gallery of Art.

Capitães-mores e sargentos-mores do Reino do Algarve em Junho de 1646 – locais onde prestavam serviço, soldos e formas de pagamento

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Em Julho de 2009 publiquei um artigo sobre o   cargo de capitão-mor, seguindo-se outros dois, em Janeiro de 2012, sobre a ocupação desse cargo nas províncias que eram fronteiras de guerra em 1645  – Alentejo e restantes. Constituindo o Algarve também uma fronteira de guerra, embora raramente palco de operações, ficou no entanto de fora das relações apresentadas nos dois últimos artigos. Fica corrigida essa falta com a apresentação de um quadro onde constam os capitães-mores e sargentos-mores (da gente paga e da milícia da Ordenança) do Reino do Algarve em  Junho de 1646. Está também incluso o alcaide-mor de Loulé. O quadro, elaborado a partir do documento referido no final deste artigo, encontra-se inserido na ligação abaixo indicada. Atente-se nas observações quanto ao pagamento dos soldos e outras curiosidades.

(1646-06), Algarve, nomes e soldos de CM e SM

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, mç. 6, nº 303, Relaçaõ dos todos os capitaõs mores, e Sargentos mores que ha nas praças da Raya do reyno do Algarue enuiada com carta do conde de obidos sua data 27 de junho de 1646.

Imagem: Forte de Santo António de Tavira, ou o que dele resta no século XXI.

Incursão do mestre de campo e governador da praça de Moura, D. Manuel de Melo, em terras de El Granado (finais de Março de 1651) – parte 2 e última

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Concluímos aqui mais um episódio das memórias do soldado de cavalaria Mateus Rodrigues (Matheus Roiz), sobre a incursão de D. Manuel de Melo (?-1693), mestre de campo e governador de Moura, em finais de Março de 1651.

Logo Manuel de Melo tratou de pôr o gado em via […], porque se lhe guarda tanto respeito como ao mesmo governador das armas. Começou logo por fazer partidas do gado grande, de 80 ou 100 bois cada partida, e em cada uma um cabo com 8 ou 10 cavalos para a levar, e assim vai este gado muito melhor, que todo junto não se pode tanger, e o gado miúdo na mesma forma. De sorte que, posto tudo em marcha, nos abalámos com uma reserva detrás de todo o gado de 200 cavalos formados; e a tudo isto sem nunca ouvirmos arma nenhuma do inimigo até àquele tempo, mas era em razão de já andarem ajuntando-se para nos ir aguardar ao posto da ribeira. De modo que, como nós nos abalámos com tudo já era quase sol posto, mas ainda viémos a descansar duas léguas donde partimos com todo o gado. E onde ficámos aquela noite eram em umas várzeas muito grandes e todas estavam semeadas de trigo, que tinha já um côvado [c. de 60-70 cm] de altura, que era no cabo de Março. Mas quando amanheceu não havia quem julgasse que ali se semeara trigo, que tinha o gado tudo comido e estava a terra como [que] a haviam lavrado [n]aquela hora, dos pés dos bois. E se averiguou que mais importou a perda que o gado e cavalos fizeram nos pães [era de uso comum a referência ao cereal como “pão”] que dez vezes o que valia o gado, sendo que naquela hora valia o gado que ali se achou mais de 40 mil cruzados [dezasseis milhões de réis, salvaguardando o possível exagero do memorialista], vejam bem o que valeria a perda dos trigos, que foi uma dor de coração, que não bastava deixarmos aqueles pobres destruídos de seus gados, senão ainda dos pães, mas a culpa disto só Deus que sabe quem lhe é encargo, que suposto que é guerra. Sabe Deus quem pagará estas coisas.

De maneira que, estando nós ali, quando lá pela meia noite ouvimos muitos tiros lá pela ribeira, donde haviam ficado os 200 infantes, e logo muito depressa montámos todos. E mandou Manuel de Melo cem cavalos com Dinis de Melo por cabo, a ver o que era. E quando Manuel de Melo o mandou, logo nós todos soubemos que estava lá o inimigo com eles, mas como nós sabíamos claramente que o inimigo não os havia de desalojar donde estavam, não quis Manuel de Melo mandar lá mais que cem cavalos, e com ordem a Dinis de Melo que, se acaso o inmigo já aí não estivesse, que se deixasse estar até ele ir de cá com tudo. De maneira que, quando Denis de Melo chegou, já o inimigo era retirado, que assim como o inimigo chegou à ribeira, quis passar à outra banda, aonde estavam os infantes, porque era melhor sítio para eles estarem mais seguros e para nos fazerem mais dano quando passássemos por ali à vinda. Tanto que o inimigo chegou à ribeira quis passar à outra banda, mas como ele não sabia ainda que lá estavam os nossos, porque assim que a nossa gente sentiu o inimigo calaram-se muito caladinhos, para que o inimigo e metesse à ribeira com segurança, para lhe darem carga à sua vontade [NOTA: “carga” significa fazer fogo, disparar]. Como de feito assim foi, que assim como o inimigo foi passando a ribeira, deixaram os nossos chegá-los bem e logo dando-lhe uma carga notável. Mas como era de noite e os nossos estavam em as rochas, que são muito mais altas do que o porto, não lhe mataram muita gente, porém ainda lhe ficaram [mortos ou feridos] alguns vinte homens.

De modo que assim como o inimigo viu o porto tomado com gente nossa, retirou-se atrás outra vez. Mas contudo, como vinham muitos, que eram 1.200 homens da ordenança e traziam mais de cem cavalos consigo […], começaram da outra banda às cargas aos nossos, de que eles estavam sem bando, contudo ainda nos mataram três ou quatro homens, que estava da banda dalém uma esquadra nossa de 20 homens, e quando sentiram o inimigo vieram-se recolhendo para onde estavam os nossos. Mas como os cem cavalos vinham diante, sentiram-nos e dando após deles mataram três ou quatro e levaram dois cativos. Mas assim como souberam deles que estavam da banda dalém 200 homens e que vinham 400 cavalos, pareceu-lhes que tinham muito perigo e não quiseram aguardar que fosse de dia, senão retirarem-se. Que quando lá chegou Dinis de Melo com os cem cavalos, já não ouviam rumor nenhum da outra banda. Contudo, como não sabiam se o inimigo era já retirado, por ser ainda de madrugada, foi um soldado a pé de frágua em frágua para saber se era já ido. E como chegou lá, que não viu nada, correu tudo à sua vontade e viu que já o inimigo era ido. Mandou logo Dinis de Melo aos três capitães que aí estavam que se retirassem com ele, que assim o ordenava Manuel de Melo. De modo que se vieram embora, a ter com a demais gente, e assim como chegaram já era sol fora. Logo nos pusemos em marcha […], mas não fomos por aquele porto, senão por outro, mas trouxemos três léguas mais de rodeio e no decurso da marcha ainda vimos parte do inimigo, que saía recolhendo para Alcaria, de onde era a maior parte da gente, e esta terra estava então […] em pazes com a nossa vila de Serpa. Mas as fazendas que nós trazíamos eram de outra província, mas com tudo isso têm eles obrigação de darem socorro a quel lho pedir e fazerem como os mais fizerem.

De sorte que viemos a salvo a Moura, mas no decurso de 4 dias e em toda a jornada foram 7 com grandíssimos frios e já com muito pouco mantimento de pão. Mas os soldados, como lhe faltou, não reparavam em ser Quaresma, que comiam carne como se fora no carnal; que assim comidos como esfolados para lhe trazerem as peles, faltavam mais de 4 mil ovelhas e carneiros que nós havíamos desbaratado e os bois não chegaram a Moura mais que 1.500. Contudo, isso ainda foi uma grandiosa pilhagem para tão pouca gente como nós havíamos.

A repartição foi muito bem ajustada, que ninguém faz aquilo com mais pontualidade como Manuel de Melo, e não há ninguém que diga o contrário, porque se preza disso. Veio a cada soldado 4.000 [réis] de parte e ficou cada capitão com mais de cem mil réis e ainda haviam de ficar a Manuel de Melo bons dois mil cruzados [800.000 réis]. Com fazer tão boas repartições na presa toda se fizeram 26 mil cruzados, pagos os quintos e jóias aos generais e guias, que eram muitas, e estas levam duas partes de um soldado, e o que é boa guia sempre o contentam com mais, para que outro dia torne com boa vontade, que as mais destas guias não são soldados, senão homens da terra, que vão lá por seu proveito. Mas também se os castelhanos os apanham não lhe dão quartel, mas levem um Cristo na mão [ou seja, são executados], porque dizem que se eles não nos levaram lá, que não fôramos nós, porque não sabíamos a terra, e assim que são mofinos se acaso o inimigo os colhe. Mas quando lá vão, sempre lhe dão o melhor cavalo para irem nele, senão não querem lá ir nunca mais.

Fonte: Manuscrito de Matheus Roiz, pp. 239-242.

Imagem: Emboscada, óleo de Jan van der Stoffe (1611-1682).

Incursão do mestre de campo e governador da praça de Moura, D. Manuel de Melo, em terras de El Granado (finais de Março de 1651) – parte 1

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De novo mergulhamos nas memórias do soldado de cavalaria Mateus Rodrigues (Matheus Roiz), desta feita acerca de uma incursão de D. Manuel de Melo (?-1693), mestre de campo e governador de Moura, em finais de Março de 1651. O usual objectivo da pilhagem de gado levou as forças portuguesas a entrarem nos campos de El Granado, na raia andaluza. Um destino pouco comum, porque situado no Condado de Niebla, território sobre o qual pendia uma trégua tácita, devido às ligações familiares da rainha D. Luísa de Gusmão, todavia nem sempre respeitada.

Como Manuel de Melo é tão bizarro cavaleiro e bom soldado, que todos os governadores das armas lhe são e foram afeiçoados, tinha esta vila de Moura e tem sempre duas outras tropas de cavalo de guarnição e tem o terço de Manuel de Melo, que consta de 1.200 infantes; e como Manuel de Melo acaba [ou seja, alcança] com os governadores tudo o que quer, não tem nunca em Moura senão as companhias de cavalos que ele quer, os capitães mais de sua vontade e amigos, porque todos aqueles lugares lá de baixo estão à sua ordem e deles se fazem muito boas pilhagens em Castela, porque ficam dali muito à mão as entradas. E como assim seja andam os capitães de cavalos com petições só para que os mandem para lá, pelo muito proveito que de lá sempre trazem. De maneira que nos sucedeu este ano, à minha companhia, o ir para Mourão, e o capitão Dinis de Melo e o capitão Diogo de Mendonça ambos para Moura, que fica de Mourão cinco léguas [c. de 25 km], e todos estes capitães eram grandes amigos de Manuel de Melo e do general, que por isso os mandou para lá.

Já Manuel de Melo tinha tratada esta jornada muito antes que estes capitães fossem, mas como sabia que eles iam para lá esperou […] para a fazer com eles, e já havia quatro meses que estávamos naquelas partes quando se fez a jornada. De maneira que avisou a outras companhias de outras praças para que se juntassem em Moura, que daí havia de sair tudo. Partiu a minha companhia para Moura e quando lá chegámos já lá estavam as demais, como era a de André Mendes Lobo, de Vila Viçosa, e a de Filipe Ferreira, do Alandroal, e a de Miguel Barbosa, de Terena, e a de van Inguen [holandês], de Monsaraz, que com as nossas três lá de baixo faziam sete companhias, que passavam de 300 cavalos. Tirou Manuel de Melo 200 mosqueteiros do seu terço, escolhidos, que são tão grandes soldados, que foi a marcha de 25 léguas ida e volta e não houve jamais nenhum infante que deixasse de acompanhar aos cavalos com todo o passo que eles levavam.

Preparados e concertados de tudo o necessário, que era jornada de 7 dias, nos partimos de Moura na via acima dita; e chegando nós daí a dois dias a uma ribeira que chamam Chança, que nela se aparta a raia, mas desde Moura até li são nove léguas e tudo despovoado doutras arriscadas para efeito de nos sentirem, que no mais não havia quem nos fizesse dano, de maneira que chegámos à meia noite a esta ribeira de Chança, que é uma ribeira de grandíssimas fráguas, que não se pode passar senão por os portos sabidos [ou seja, vaus], e até os mesmos portos são tais que é necessário ir um cavalo atrás do outro para poderem passar, que são rochas de uma e outra parte que chegam às nuvens, e como este porto era o de mais risco deixou Manuel de Melo ali 200 mosqueteiros […]. E suposto que por aquelas terras não há nenhuma gente paga [ou seja, do exército regular, profissional] nem cavalaria nenhuma, contudo ajunta-se logo a gente de todos aqueles lugares e como sabem que não podemos deixar de passar por os portos da ribeira, vão-se pôr naquelas rochas e dali fazem-nos largar a presa e voltar atrás a ir buscar outro porto muito mais longe; mas se eles acham os portos tomados com gente nossa, não podem fazer nada nem param ali, senão vão-se embora. E assim que os 200 infantes se ficaram ali com muito bons capitães com eles, que nem o poder do mundo os havia de botar ali fora, marchámos com as tropas. E logo naquela noite se apartaram as partidas que foram diante para ajuntarem os gados, e eram três, cada uma de 60 cavalos, e com cada uma delas um tenente por cabo ou um capitão. De sorte que passámos pelo lugar de El Granado, que é um lugar de 200 vizinhos e tem um castelejo, mas como passámos ao largo um quarto de légua, não nos sentiram. E quando amanheceu já a reserva que havia de ficar aguardando pelas partidas estava em o porto. E suposto que as partidas foram cinco léguas mais donde a reserva os esperou, levavam muitas guias e boas, para lá os guiarem aonde haviam de achar os gados e volver aonde estava o demais. Ficou Manuel de Melo em um outeiro com a reserva, que não eram mais de 150 cavalos, e ali se esteve todo o dia até tarde, que acabou de se juntar todas as partidas, que como foram tão longe tardaram mais do que se esperou, que foi um tenente nosso tão longe que chegou a dar vista de Ayamonte, fronteira do inimigo de Castro Marim, do Algarve, e foi sete léguas da reserva.

De modo que junto todo o gado à roda donde estava Manuel de Melo, era tanto o gado que o tínhamos por impossível o poder trazê-lo a Portugal, porque só o gado miúdo de ovelhas e carneiros e cabras havia mister um exército de gente para o trazer, que passavam de 16 mil cabeças e tudo era gado o mais fino que tem Castela de lãs, que lhe chamam gado segoviano. O gado vacum passavam de duas mil vacas e bois e gado que o lavariam com uma bochecha de água de gordo. Nem eu vi jamais gado semelhante.

 (continua)

Fonte: Manuscrito de Matheus Roiz, pp. 236-239.

Imagem: Combate de cavalaria contra infantaria, óleo de Jan van der Stoffe (1611-1682).

Uma incursão do capitão Dinis de Melo de Castro a Almonaster la Real (Janeiro de 1652) – parte 3 e última

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Conclusão do episódio das memórias do soldado de cavalaria Mateus Rodrigues (Matheus Roiz), passado em Janeiro de 1652.

Havia muitos soldados que traziam malhos de Castela, que lá acharam, e mandaram logo começar a cortar muitos álamos e freixos e amieiros muito grandes que estavam pela ribeira abaixo e acima. E um a cortar e outros a levá-los às costas; e despiram-se uns quantos para os atravessarmos de uma banda à outra da ribeira, em um passo mais estreito onde os paus chegavam. E tanto que tivémos posto os paus, que eram bastantes para fazermos uma ponte, atravessámos então por os mesmos paus outros paus mais pequenos, como quem faz uma cancela, e botámos-lhe em cima muita quantidade de ramos dos mesmos paus que se cortaram, até que fizémos uma ponte muito bastante para que passasse o gado por cima dela, que ovelhas e cabras passam por onde quer sendo coisa enxuta. Finalmente que botámos além todo o gado, mas já em a ribeira se havia perdido muito e nos caminhos, com o grande rigor do tempo.

Agora me perguntarão como passou a cavalaria, que ela não podia passar a vau sem que esperasse ali três dias. Não tivémos outro remédio senão tirarmos as selas aos cavalos e passá-las além da ribeira por cima da ponte às costas e logo tornávamos outra vez a buscar os cavalos pela rédea a nado, e nós levando-os pela rédea por cima da ponte. Mas como era em Janeiro, que ia a água muito fria, deu uma dor de barriga ou terçã a 4 cavalos e morreram, de modo que esperámos um pouco que se enxugassem os cavalos para lhe pôr as selas. E logo nos pusémos em marcha, mas não havia quem não fosse passado com água, porque foi castigo de Deus, que saímos com bizarro tempo e depois que fizémos a presa, até que chegámos a casa, parece que Deus Nosso Senhor abriu o céu para que caísse sobre nós toda a água quanta estava em o céu. Chegámos a Moura muito enfadados, à uma com o tempo, à outra em ver que não trazíamos nem a terça parte do gado que havíamos arrancado de Castela, porque se havia perdido com o rigor do tempo; que a primeira noite onde dormimos com a presa diziam pessoas que entendiam de gados que o miúdo passava de 15 mil cabeças, que só de chibatos muito grandes vinham 1.600, que eram como cavalos. O gado vacum não era muito, mas ainda chegaram a Moura 800 bois e vacas e 6.000 cabeças de gado miúdo. Que não há dúvida que, se viera o gado todo a salvamento, que era uma grandiosa presa para tão pouca gente, mas assim como era ainda nos veio a cada soldado 4.000 réis de presa [um soldado de cavalaria recebia 6.000 réis de soldo por mês no exército do Alentejo, 4.800 nos outros exércitos provinciais], ficando-se os capitães bem cheios, e Dinis de Melo, que era o cabo mais que todos, e Manuel de Melo, que era o governador da vila de Moura, também levou o seu quinhão, que estes lobos grandes enchem-se primeiro muito bem; e ainda algum tostão que dão aos pobres soldados cuidam que lho leva o diabo, e o hão por mal empregado, e eles são os que ajuntam o gado e eles os que têm todo o trabalho, mas o proveito é seu deles; que são poucos os capitães que tenham amor aos soldados.

 

Fonte: Manuscrito de Matheus Roiz, pp. 282-284.

Imagem: Campo militar, óleo de Jan van der Stoffe (1611-1682).

Uma incursão do capitão Dinis de Melo de Castro a Almonaster la Real (Janeiro de 1652) – parte 2

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Continuação de mais um episódio das memórias do soldado de cavalaria Mateus Rodrigues (Matheus Roiz), passado em Janeiro de 1652.

Contudo, como nos importava tanto, fizemos da necessidade virtude, fomos marchando; e assim como o inimigo nos viu com o fio de subir a serra, começou apertar grandemente para chegar primeiro que nós, mas como eles vinham ainda longe, não puderam chegar tão depressa como nós. E além disso, nunca jamais o inimigo lhe persuadiu que nós pudéssemos ir assim à serra, porque era tão alta que nos foi necessário ir a pé para cima, com os cavalos pela rédea, e ainda era necessário irmo-nos apegando às moitas para que não viéssemos por ela abaixo e até os cavalos iam com muito trabalho. Mas, contudo, chegámos acima e o inimigo já neste tempo vinha muito perto, mas como nos viu em cima da serra ficou parvo de nos ver que fomos lá acima. E logo se resolveu, porquanto não tinha já remédio donde se pudesse pôr seguro para nos fazer dano. Ficámos nós muito contentes de o ver retirar, deixámo-nos estar ali até que vieram as nossas partidas lá pela tarde. E como esteve tudo junto, marchou à pressa diante em partidas e as tropas atrás com coisa de 150 cavalos formados e os mais iam tangendo o gado. Chegámos já de noite a um azinhal que era boa terra de relva, onde descansámos assim toda a noite, que a levámos com grandíssimo trabalho, porque toda a noite choveu tanta água que não havia pessoa por bem arroupada que estivesse que não tivesse passado até mesmo o couto do corpo, e quando amanheceu já os cavalos tinham água pelo joelho e nós em cima deles e o gado tinha faltado muita parte dele com o rigor do tempo. Assim como foi manhã pusémo-nos em marcha, que se muito choveu aquela noite, muito mais chovia de dia, com um vento na cara que levava o couro e cabelo; e a tudo isto pela serra Morena acima, que é tão fragosa e ruim terra que perdeu o diabo ali sua mãe de noite e de dia não a pôde achar, nem por ali passa gente cristã, salvo alguma cavalaria nossa que vai àquelas partes a pilhagem. De modo que passámos a serra com grandíssimo trabalho, em razão que nos não deixava a água e o vento. Mas ainda aqui não vai a substância do trabalho e enfado, que depois de termos passado 6 léguas de serra sem nunca nos deixar de chover, em o cabo dela tínhamos uma ribeira de passar, que ia tal que podiam navegar caravelas por ela, sem nós termos nenhum remédio senão aguardar que baixasse; e não podia ser, porquanto estávamos ainda nove léguas de Moura, e não tinham os cavalos que comer, nem nós tão pouco. Assim como os nossos capitães se viram com tão grande inconveniente, que não podia ser maior, que antes tomáramos de boa mente ali o inimigo com que pelejáramos, do que a ribeira cheia. De modo que os capitães se viram tão enfadados, que dizia Dinis de Melo que dera de boa mente cinquenta mil réis e que não tivera vindo a tal jornada, e os mais diziam nunca más perro al molino [expressão castelhana que em português se pode traduzir por “aprender uma lição para nunca mais repetir uma experiência desagradável”]. Contudo mandou Dinis de Melo lançar o gado à ribeira para passar a nado, e os bois e vacas passavam além, que é gado que nada bem, mas as ovelhas e os carneiros e as cabras, assim como as botavam todas se iam pela ribeira abaixo. Mandou então Dinis de Melo que o não botassem, porque todo se perdia. Começaram a dar uma grande traça [ou seja, fazer planos] em ordem para passar o gado miúdo e nós também, que a não ser isto ainda lá estávamos hoje ao pé da ribeira.

(continua)

Fonte: Manuscrito de Matheus Roiz, pp. 280-282.

Imagem: Combate de cavalaria, óleo de Jan van der Stoffe (1611-1682).

Uma incursão do capitão Dinis de Melo de Castro a Almonaster la Real (Janeiro de 1652)

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Inicia-se aqui mais um episódio das memórias do soldado de cavalaria Mateus Rodrigues (Matheus Roiz), passado em Janeiro de 1652. Tratou-se de uma incursão profunda em território espanhol – cerca de 102 quilómetros entre a praça de Mourão, início da marcha, e o objectivo, os campos de Almonaster la Real, que o memorialista apelida de Almoster. A incursão foi comandada por Dinis de Melo de Castro, à época capitão de cavalos e já elemento importante da rede clientelar da Casa de Bragança. Dinis de Melo de Castro distinguir-se-ia em fase mais avançada da guerra como general da cavalaria, recebendo o título de Conde das Galveias após o termo do conflito.

Estava este capitão Dinis de Melo de guarnição em a vila de Mourão e o capitão Diogo de Mendonça, também capitão de cavalos, que ambos tinham muito boas companhias, que a de Dinis de Melo tinha 90 cavalos e muito bem montados, e a de Diogo de Mendonça tinha 60 cavalos também muito bons. E neste mesmo tempo estava também a minha companhia de guarnição em a vila de Mourão, que dista 6 léguas [cerca de 30 quilómetros – na realidade, são 35 quilómetros] de Moura, tudo na raia. E destas terras sempre faziam grandes pilhagens, e assim que lançou este Dinis de Melo os sentidos aonde poderia fazer uma boa entrada, e como nesta vila de Moura há homens que sabem toda Castela a palmos, com conselho de alguns destes ajustou que em as partes de Almonaster havia muito gado, porquanto não tinham ainda chegado ali os portugueses, mas que era muito ruim terra, de serras muito fragosas; contudo, que eles se atreviam a levar lá as companhias de cavalo sem serem sentidos, e assim que podia Sua Mercê tratar a jornada todas as vezes que lhe parecesse. Assim como Dinis de Melo se conformou com as guias [o termo guia era feminino], logo pôs dia certo para ir.

Avisou logo as companhias que haviam de ir, que era a minha e a sua, a de Diogo de Mendonça e a de Jerónimo de Moura e a de van Inguen [capitão holandês, chegado a Portugal como tenente de cavalos em Outubro de 1641, no regimento das Províncias Unidas; continuou a servir depois daquela unidade ter sido desmobilizada em 1645 e reformar-se-ia, por motivo de doença, em 1654, passando a receber uma pensão atribuída pela Coroa portuguesa], que todas cinco passavam de 260 cavalos. De modo que nos ajuntámos em Moura e não quis Dinis de Melo levar então nenhuns mosqueteiros. Saímos de Moura e fomos dormir aquele dia a Safara, que é uma aldeia nossa. Daí saímos sempre por terra do inimigo, e quando foi no outro dia pela manhã tínhamos andado doze léguas [cerca de 60 quilómetros]. Mas na mesma noite que saímos de Safara se apartaram as partidas que haviam de ir ajuntar os gados, que como tinha muita mais terra de andar do que a reserva, saíram diante, que eram três partidas de 30 cavalos cada uma, com um tenente por cabo de cada uma, com suas guias muito boas. E assim como se apartaram não pararam senão a dar de comer aos cavalos lá pela madrugada. E daí até que chegaram a reserva, nunca os cavalos tornaram a comer, que andaram aquela noite e o dia até à tarde, que chegaram as tropas, andaram 17 léguas sem comer. De sorte que as partidas se foram marchando, e logo as tropas nas suas costas, mas ficaram em uma serra muito altíssima à vista do mesmo lugar de Almonaster. E assim como fomos sentidos, logo os lugares todos que nos ficavam nas costas se juntaram e trataram de nos vir tomar uma serra, por entre a qual havíamos de vir forçadamente. E como aquilo é terra a pior que há em toda Castela, não podem ali os cavalos fazer nada. Contudo, como nós vimos os vilãos juntos, que eram 600 homens e vinham com a dita tenção, disse então um guia nosso ao capitão Dinis de Melo que, se o inimigo nos tomava aquela serra, que não tínhamos nenhum remédio, que não havíamos nós de levar o gado, e além disso que nos haviam de matar gente e cavalos, que fizemos muito em irmos por diante a pôr-nos em a serra primeiro que o inimigo. Mandou logo Dinis de Melo montar as tropas para nos irmos à serra, que o tínhamos por tão impossível o poder lá ir acima, como ir ao céu a cavalo.

(continua)

Fonte: Manuscrito de Matheus Roiz, pp. 278-280.

Imagem: Dinis de Melo de Castro (1624-1709). Retrato a óleo pintado entre 1673 e 1675, por Feliciano de Almeida. Galeria dos Ofícios, Florença.

 

 

 

 

Batalha de Ameixial, 1663 – Comunicação do Professor Enrique Sicilia Cardona

É com imenso gosto que partilho a comunicação proferida pelo Professor Enrique Sicilia Cardona em Badajoz, no passado dia 3 de Dezembro de 2022, intitulada La Guerra de Portugal – Batalla de Ameixial, 1663, el principio del fin.

Com os meus agradecimentos ao Professor Sicilia Cardona, aqui fica a ligação para o vídeo da comunicação.

“De como tivemos um choque com a cavalaria do inimigo em uma atalaia sua” – Outubro 1652 – parte 4 e última

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Continuando um dos episódios recordados pelo soldado Mateus Rodrigues (Matheus Roiz). Um recontro de cavalaria nas proximidades de Badajoz, vertido para português (livre do chamado “acordo ortográfico”).

 Avançam as famosas 4 tropas ao inimigo, o qual teve mão com grande valor por estar diante deles o seu general. Mas como as nossas 4 tropas tinham muito valentes capitães e soldados e avançaram com boa vontade, em poucos tempos fizeram pôr aqueles em fugida, ficando-lhe logo ali dois capitães mortos, grandes soldados, e assim como o inimigo se pôs em fugida carregam sobre ele as 4 tropas até junto dos olivais, e a tudo isto sempre cuidando que a outra nossa cavalaria ia fazendo o mesmo e eles estavam já de nós mais de duas léguas, que foi o maior milagre e ventura o livrarem[-se] as 4 tropas que jamais se viu. Mas como o inimigo não sabia que a nossa cavalaria era fugida, quando viu retirar-se tão pouca gente lá de baixo, dos olivais, entendia que estava detrás dos outeiros a nossa cavalaria toda, e assim que não ousavam a sair-se dos olivais. E as mesmas nossas 4 tropas, quando voltámos lá de baixo, sempre imaginámos que as nossas tropas estivessem detrás dos outeiros, mas assim como chegámos a elas que demos vista de toda a campanha e não vimos cavalaria alguma senão daí duas léguas, toda espalhada pela campanha como ovelhas sem pastor, que o nosso tenente-general, como viu fugir a cavalaria sem lhe poder valer, ficou arreado sem saber o que fizesse nem para onde fosse. E assim se pôs à borda do mato com coisa de 30 cavalos, pasmado ali, sem se determinar para onde fosse. E não sabia até àquele tempo de que tais 4 tropas haviam feito uma tão heróica acção como foi aquela ventura, e assim como viu aquela gente em os altos e que vinham para baixo mandou lá a reconhecer-nos, e achando que era gente sua ficou mais contente e se foi a nós com grande alegria, abraçando a todos os capitães e dando-lhe grandes louvores e a todos os soldados por lhe suceder tal ocasião, que se não lhe sucedera aquilo, que ficava ele afrontado, de modo que não havia de entrar em Elvas diante dos seus generais.

Incorporados e juntos muito bem esta gente que teve esta vitória, que suposto que não havia mais tropas que as 4, vinham também ali muitos soldados e oficiais das outras companhias que haviam fugido, que seriam 300 cavalos, veio-se o tenente-general com eles retirando a bom passo de longo de Guadiana, aonde passámos à outra banda da nossa campanha de Elvas sem perigo algum. Apenas nós tínhamos passado o porto quando nós vemos o inimigo em os altos da sua atalaia, todo junto. E assim como ele nos viu da banda de além e tão pouca gente, sabendo da sua atalaia que a nossa cavalaria fugira logo dali, porque dera bem fé de tudo, ficou o inimigo sentidíssimo de lhe suceder tal desgraça, vendo que tão pouca gente como aquela fora bastante para alcançar tão rara vitória, que suposto que houve fugida ficámos nós com a vitória, pois metemos ao inimigo pelas portas dentro às pancadas e assim nos retirámos a Elvas com grande gosto. E os que fugiram não ousavam a entrar em Elvas, vendo a vergonha que havia passado por eles. Porém houve grandes castigos e prisões em muitos oficiais, e reformações, por que não houvesse outro dia semelhante. De modo que a perda que tivemos de maior sentimento foi a do capitão Sancho Dias de Saldanha. É suposto que houve mais mortos de outros soldados, mas não chegaram a 20. O inimigo perdeu 6 capitães de cavalos, 2 mortos e 4 cativos, e perderia 20 cavalos, que para o que foi, não foi pouco, que pouca gente não pode fazer muito dano. Mas não há dúvida que se fora o nosso general da cavalaria com ela, que lhe dava Deus um bom dia para seu crédito e reputação, porque havia de dispor a ocasião com grande sentido e descanso e não lhe podia suceder mal. E na verdade quem teve a maior parte da culpa foi o comissário, em ser origem de fugir a cavalaria, porque já ele tinha aberto o caminho com a sua, que ele levava lá diante quando pelejou com o inimigo que veio fugindo pelos outeiros abaixo, que isso foi causa de se conseguir depois tamanha desordem como depois disso sucedeu.

 Fonte: Manuscrito de Matheus Roiz, pp. 307-310.

Imagem: Elvas: vista parcial do castelo. Foto de JPF.

“De como tivemos um choque com a cavalaria do inimigo em uma atalaia sua” – Outubro 1652 – parte 3

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Continuando um dos episódios recordados pelo soldado Mateus Rodrigues (Matheus Roiz). Um recontro de cavalaria nas proximidades de Badajoz, vertido para português (livre do chamado “acordo ortográfico”).

Foi-se o comissário com as tropas no fio dos altos da atalaia, mas não que visse nem soubesse do inimigo. Contudo, indo ele já perto dos outeiros, adiantou-se das tropas um grande pedaço um ajudante da cavalaria, que então era um Sebastião da Costa, que é hoje capitão de cavalos e muito valente, e assim como foi subindo acima dos altos da atalaia dá de cara com o inimigo muito bem formado. E voltando muito depressa abaixo veio a ter com o comissário, que ia como desesperado, sem levar a cavalaria formada. E parecendo-lhe ter o comissário um perigo, visto não ir formado e com grande pressa, lhe disse: “Ó senhor comissário, forme-se Vossa Mercê muito à sua vontade e vá muito devagar, porque o inimigo está ali em cima muito bem formado e são as tropas de Badajoz, que as de Talavera não têm ainda chegado”. E a tudo isto sem o comissário se lhe dar do que o ajudante lhe dizia, que levava o diabo no corpo com o recado que lhe havia mandado o tenente-general. E assim como o ajudante lhe disse que o inimigo ali estava, puxa pelos batalhões com grandíssima pressa e desconcerto e dizendo: “Avança ao inimigo, bota a Cristo que não há mister [ou seja, necessidade de] forma”. E avançando pelo outeiro acima dá de cara com o inimigo. E avançando a ele, em breves palavras veio aos trambolhões pelos outeiros abaixo, fugindo todos como formigas, espalhados, deixando logo ali muitos soldados e oficiais e um capitão nosso, muito valente e cavaleiro, por nome Sancho Dias de Saldanha. E quando o comissário avançou com o inimigo, já as suas 6 tropas de Talavera vinham perto, e vendo a bulha se apressaram grandemente a incorporar-se com o seu general. E assim que se não saíra o tenente-general tão depressa à campanha rasa, aonde o inimigo o viu, logo não há dúvida que o comissário perde[ria] a maior parte daqueles 700 cavalos que levava, porque tinha o inimigo muito sobre eles, e sobretudo terem uma retirada de 4 léguas. De modo que quando o nosso tenente-general saiu do mato para o campo raso, já o comissário e todos os soldados vinham à rédea solta, fugindo. Apressou-se o tenente-general grandemente, vendo tamanho mal e desconcerto em o comissário, que não podia ser maior. Mas apenas o inimigo nos viu, logo se volveu todo a tornar-se a formar outra vez aonde estava e já com mais confiança, pois tinha já consigo as tropas de Talavera, e assim nos aguardou com toda a vontade e bizarria no dito posto.

Foi o nosso tenente-general avançando pelos outeiros acima, com os 9 batalhões que levava, com grande resolução e assim que chegámos aos altos estava o inimigo muito bem formado, aguardando por nós. E averbando a nossa gente com o inimigo, ia tão chegados uns aos outros que com as espadas se feriam e se matavam. E foi uma tão notável coisa que não poderá nunca jamais tal caso suceder, que num [im]proviso fugiram todos aqueles batalhões que estavam no corno direito, assim os nossos como do inimigo, sem saberem nenhum deles que fugiam [hoje diríamos: sem saberem uns dos outros]. Cada um cuidava que lhe iam surgindo nas costas, que a muita poeira que no outeiro fazia os pôs em tão grandes confusões e enredos. E tal fugida fizeram todos que não pararam senão em parte seguras, assim uns como outros. Agora notem bem os sucessos da guerra e fortunas: de modo que dois batalhões nossos que iam em o corno esquerdo, que eram 4 companhias, duas em cada batalhão, que era a minha e a de Miguel Barbosa da Franca e [a] de Fernão de Mesquita e a de Duarte Lobo, de sorte que estas 4 companhias não souberam por nenhum caso que a nossa cavalaria era fugida, senão imaginaram os capitães que já tinham avançado com o inimigo. E assim que se resolveram a fazer o mesmo com outros três ou 4 batalhões que viam estar do inimigo, aonde estava neles o seu general, o qual também não sabia que lhe havia fugido a sua cavalaria, por os pôr em todas estas dúvidas as grandes poeiras que faziam nos outeiros.

(continua)

Fonte: Manuscrito de Matheus Roiz, pp. 305-307.

Imagem: Cena de combate de cavalaria, óleo de Anthonie Palamedesz, meados do século XVII.

1.º de Dezembro de 1640

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Uma data marcante da História de Portugal, cuja celebração em dia feriado esteve proibida durante alguns anos, porque assim determinaram as forças então no poder. Mas a memória de um povo não se extingue por decreto e, anos depois, o bom senso voltou. Que assim permaneça.

Aproveito para renovar os agradecimentos a todos os que têm contribuído para a continuidade deste espaço de história militar.

“De como tivemos um choque com a cavalaria do inimigo em uma atalaia sua” – Outubro 1652 – parte 2

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Continuando um dos episódios recordados pelo soldado Mateus Rodrigues (Matheus Roiz). Um recontro de cavalaria nas proximidades de Badajoz, vertido para português (livre do chamado “acordo ortográfico”).

A cavalaria que levava o tenente-general consigo eram dezoito tropas, que constariam de 800 cavalos, com 700 que o comissário lá tinha faziam número de 1.500 cavalos. De modo que fomos marchando, e quando vinha já amanhecendo estávamos nós, os que iam com o tenente-general, dando de comer à cavalaria em o ribeiro de Fiolhais, que está junto do Alcornocal de Badajoz, e fazia conta o tenente-general de se ir logo marchando e por se onde havia ajustado com o comissário. De modo que, assim como o comissário viu que lhe tardava tanto o soldado que havia mandado a Elvas, mandou logo outro soldado à rédea solta aonde estava o tenente-general, que bem sabia aonde, a dar-lhe conta de como não tinha marchado dali por amor da falta do soldado, que visse Sua Senhoria o que havia de fazer. Cuidava o tenente-general que estava ele já em o posto, e assim quando vimos todos correndo o soldado, imaginávamos que era outra coisa, senão quando o soldado se descarta dizendo que ainda estaca o comissário em a ribeira de Olivença, que ainda eram boas três léguas do posto de onde ele se havia de ir a meter antes que amanhecesse.

Tal ficou o tenente-general com o aviso do comissário que imagino que o matara se o tivesse diante de si naquela hora. E assim, com toda a paixão e ira, disse ao soldado: “Vai e diz ao futre [termo ofensivo] e bêbado do comissário que logo vá com todos os diabos a fazer o que lhe está ordenado, que devia de se emborrachar esta noite, por isso fez tal parvoíce”. E assim que em o soldado indo com o aviso, ficou o tenente-general bufando e dizendo os diabos contra o comissário, porque via que já não se podia obrar nada, antes podia haver algum aviso de modo que o inimigo juntasse a sua cavalaria, como de feito assim foi. Que assim como o comissário chegou à ribeira de Olivença, foi sentido de uma partida do inimigo que ia tomar língua a Olivença. E apenas viu a cavalaria, se foi à rédea solta até Badajoz avisar seu governador, o qual mandou logo chamar muito depressa as seis companhias que estavam em Talavera, as quais vieram logo em improviso. De modo que assim como o soldado que o comissário havia mandado ao tenente-general lhe chegou e lhe deu a boa resposta que o tenente-general lhe mandava, mandou logo montar as tropas e marcha com elas como um desesperado e com grande passo, que como era de dia não podia fazer dilação senão ir de fio [ou seja, em coluna] endireitando com atalaia do inimigo, para que dali mandasse uma partida aos olivais. Que não há dúvida que ao inimigo sucedia um bem mau dia, o qual ele imaginava nos desse, porque sabia mui bem que para a cavalaria nossa, de que ele tinha aviso, que tinha bem com que lhe fazer dano, que fazia 20 tropas com as de Talavera, e as que o comissário levava eram 16, mas tinha o inimigo grande terço em ter tropas e ser à sua porta, que vai a dizer muito.

Assim como o inimigo avisou as tropas de Talavera, logo mandou montar as 14 tropas da praça e se armaram todos muito bem [NOTA: tal como acontecia entre a cavalaria portuguesa, só nas ocasiões em que se antevia um combate de cavalaria mais forte – e não uma mera escaramuça – é que as companhias iam buscar aos armazéns todo o equipamento defensivo disponível, como armas de corpo (couraça composta de peito e espaldar) e capacetes]. E se vieram pôr em os mesmos outeiros da atalaia aonde o nosso comissário levava o fio, que quando ele lá chegou, já o inimigo havia muito que lá estava.

Assim como o comissário abalou de onde estava, também o tenente-general foi logo marchando pela campanha acima nas suas costas. O comissário ia muito mais avançado do que nós e levava batedores ao largo, os quais deram vita das tropas de Talavera que se vinham incorporar com a sua cavalaria, que estava junto de sua atalaia. Tanto que os batedores viram as tropas souberam muito bem que eram as de Talavera, e vindo correndo dar aviso ao comissário, se até ali havia ido muito depressa, muito mais foi dali em diante com o sentido de ir derrotar aquelas tropas; e no mesmo tempo mandou um soldado pelo alcornocal dentro correndo com um aviso ao tenente-general, de como ia buscar as tropas de Talavera, que tinha aviso que elas vinham em marcha no fio da atalaia nova, que Sua Senhoria podia vir marchando a bom passo até a dar vista dos altos da atalaia, que até ali tudo eram grandes azinhais.

Assim como o comissário saiu dos matos à campanha rasa, logo as sentinelas que o inimigo tinha, assim na atalaia como em os altos, viram ir muito bem o comissário, e logo foram avisar o seu general da cavalaria, que estava ali mesmo com as tropas, o qual se formou muito bem e esteve esperando pelo comissário, que muito bem sabia já o que ele levava. Mas até este tempo nunca o inimigo soube da outra nossa cavalaria que o tenente-general levava atrás, porque tudo até ali são matos de grandes azinhais.

(continua)

 Fonte: Manuscrito de Matheus Roiz, pp. 303-305.

Imagem: Combate de cavalaria, óleo de Pieter Meulener, séc. XVII.

 

 

“De como tivemos um choque com a cavalaria do inimigo em uma atalaia sua” – Outubro 1652 – parte 1

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Há algum tempo que não era trazido aqui um dos episódios recordados, nas suas memórias, pelo soldado Mateus Rodrigues (Matheus Roiz). Um recontro de cavalaria nas proximidades de Badajoz é o tema deste e dos próximos artigos, vertido para português corrente (livre do chamado “acordo ortográfico”).

De quantas jornadas a nossa cavalaria deu e dará, não teve nunca, nem terá tão boa ocasião como foi esta, se se soubera o cabo que ia com ela aproveitar, mas como em semelhantes ocasiões há desmanchos e pouco governo, logo há perdições e desconcertos. Mas a verdade é que a culpa tem quem fia de uns estrangeiros, tanto que não ia com a cavalaria o nosso general André de Albuquerque, que estava doente, senão o tenente-general Achim de Tamericurt, que é francês, e o comissário [geral] Duquesne, que este é o que botou a perder um dos bons dias de honra e proveito que havia de ter a cavalaria de Portugal com a do inimigo, porquanto era vitória alcançada à sua porta, que ainda é mais crédito e honra. Mas por haver [ou seja, apesar de haver] tão grande desordem, ainda houve grande gosto da nossa parte e descrédito do inimigo.

 De modo como o nosso general da cavalaria esteve doente, ordenaram Dom João da Costa, governador das armas [do Alentejo], com o dito tenente-general uma jornada com toda a cavalaria para as partes de Badajoz, a ver se lhe podia armar, de modo que fizesse algum dano às tropas que estavam em Badajoz, que são 14. De modo que ajustada a jornada, avisaram as tropas que estão pelos quartéis de fora para que se juntassem no dia nomeado em Elvas.

 Em o mesmo dia que a cavalaria devia de sair de Elvas, logo pela manhã foram para Olivença oito tropas [companhias] de Elvas, para que o comissário Duquesne, que lá estava, fosse com elas e com as suas que lá tinha, que eram outras oito, que todas dezasseis teriam 700 cavalos; e com uma ordem ao mesmo comissário, que sairia com aquelas tropas aquela mesma noite e que se iria emboscar ao ribeiro da atalaia nova de Badajoz, e assim como viesse a companhia da ronda de Badajoz, que havia de ver logo em os altos da mesma atalaia […], botasse uma partida grossa e a corresse até os olivais de Badajoz, e que ele se pusesse com a demais cavalaria detrás dos mesmos outeiros da atalaia, porque era força que as tropas de Badajoz haviam de sair como raios até ali, em seguimento dos que haviam lá ido diante, e assim como ele visse ao inimigo em modo e tempo de lhe sair, o pelejasse com ele, que em o mesmo tempo havia o dito tenente-general de estar em a ponta de Alcornocal com a demais cavalaria à sua vista, e no mesmo tempo que ele avançasse ao inimigo havia ele de sair donde estava pela campanha acima a bom passo, dando-lhe calor, para que o seguisse com vontade e ânimo.

 Tanto que o comissário lá viu as tropas, logo ordenou a partida, e dando de jantar aos capitães, e de cear, se fizeram alguns como tudescos [“como alemães” – ou seja, embebedaram-se], que essa foi a causa de ele fazer o que fez, porque assim como quis sair de Olivença mandou um soldado a Elvas com uma carta ao mestre de campo general Dom João da Costa, para se afirmar do que havia de fazer, pois que lhe havia esquecido a ordem que lhe haviam dado, por amor da boa galhofa que tiveram.

 Junta a cavalaria em Elvas, sai-se o tenente-general com ela ao sol-posto de Elvas, e depois de ir já fora da cidade mandou uma carta ao comissário, de como ele ia já com a cavalaria não fizesse dilação [ou seja, não se demorasse], que antes de amanhecer se pusesse em tal posto; e que fizesse a coisa com ordem e valor, como ele o esperava da sua pessoa. De modo que, quando o comissário mandou a Elvas o soldado com a carta, lhe disse que ele se ia para a ribeira de Olivença com a cavalaria e que daí não passava até que ele lhe trouxesse a resposta da carta. De modo que o soldado que mandava o tenente-general com a carta desencontrou-se com o que mandava o comissário a Elvas, que se se toparam ambos não havia de vir para Elvas o que mandava o comissário.

 E assim […] chegou o aviso do tenente-general ao comissário, mas foi ele tal ou estava tal que não se quis abalar dali sem que o soldado que havia ido a Elvas lhe trouxesse a resposta da carta, à qual Dom João da Costa não respondeu, visto ser já fora o tenente-general, e lhe dizer que havia de mandar um soldado com segundo aviso ao comissário, e não quis Dom João da Costa que o soldado se volvesse logo, visto ser fora a cavalaria, já que o podia apanhar o inimigo no caminho a saber da ida da cavalaria, e assim ficou dentro de Elvas.

(continua)

 

Fonte: Manuscrito de Matheus Roiz, pp. 300-303.

Imagem: Combate de cavalaria, óleo de Abraham van der Hoef, séc. XVII.

Combate de Arronches, 8 de Novembro de 1653 – parte 3

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(continuação)

Os feridos e prisioneiros do inimigo, além dos que se foram render aos nossos lugares circunvizinhos, passam de quatrocentos os que mandamos a Badajoz e ficam nestes hospitais. Entre eles vieram os capitães de cavalos Dom Turíbio Pacheco, Dom Cristóvão de Obando, Dom Luís de Obando, treze tenentes, dezassete alferes e muitos reformados [oficiais que tinham cessado o serviço activo mas que se tinham realistado, por vezes como simples soldados].

Os mortos foram o Conde de Amarante, tenente-general da cavalaria, e os capitães Dom Guilherme Tutavilla, sobrinho do Duque de San Germán, Dom Sancho Perez de Villamizares, Dom João Sarmento e outros muitos oficiais menores vivos e reformados e fidalgos particulares que vinham na vanguarda.

Os corpos que se acharam no lugar donde se pelejou foram cento e oitenta e seis, além de muitos que se vão enterrando pelos matos e caminhos do alcance [com que foram mais de 300 em número – esta parte foi acrescentada na relação impressa].

Daqui se pode inferir os cavalos que o inimigo perdeu e nos ficaram, que ao menos hão-de ser tantos como os mortos e prisioneiros. Para se cobrarem, hei feito as diligências necessárias pelos lugares circunvizinhos adonde se levaram muitos e os mais trouxeram as nossas companhias.

As perdas que tivemos foram vinte e nove mortos [40 mortos, segundo a relação impressa], em que entraram o capitão Henrique de Figueiredo e Manuel Ribeiro, alferes de Tamericurt. Os feridos foram centro e treze [139, segundo a relação impressa], em que entraram o general da cavalaria, com uma estocada no lado e uma ferida no rosto, que lhe deram no primeiro choque, pelejando diante dos esquadrões da vanguarda; mas o maior dano que recebeu, sendo-o o das feridas grande, é haver-lhe passado por cima a cavalaria do inimigo e a nossa duas vezes, que foi milagre escapar; o comissário Rozier, com um pistoletaço na maçã do rosto; o capitão Francisco Pacheco [Mascarenhas – comandante da companhia onde servia o memorialista Mateus Rodrigues, que também ficou bastante ferido no combate, como já foi referido] com uma estocada, três capitães reformados de infantaria, Fernão da Cunha, Francisco Sodré e António Dias Cebolo, dois ajudantes de cavalaria, La Grezille e Diogo Rodrigues Tourinho, quatro tenentes, Bartolomeu de Barros.

São muitas e mui grandes as consequências que desta vitória se seguem pelo dano que recebeu o inimigo, perdendo a terceira parte da sua cavalaria e a confiança que lhe haviam dado os sucessos que em outros tempos teve contra a nossa e a com que ficaria se lograsse tão grade presa como havia feito, ficando destruídos os povos e os castelhanos ricos e cevados para outras. Mas sobretudo me parece que se deve estimar vermos luzido o trabalho com que se procurou reduzir a nossa cavalaria à forma e ordem com que hoje se acha, em que tudo consiste como nesta ocasião se viu e que eram bem necessárias as demonstrações que em outras fiz para que isto fosse assim.

O general da cavalaria procedeu com tão singular valor, prudência e arte, que deixou muito que invejar aos maiores generais do mundo. Com o mesmo acerto se houveram o tenente-general Tamericurt, os comissários gerais Duquesne e Rozier e todos os capitães, tenentes e alferes e soldados, cada um no que lhe tocava, de maneira que obrando todos singularmente, todos foram iguais.

Os cabos e oficiais e pessoas particulares que se acharam nesta ocasião são os que se seguem abaixo. Peço humilissimamente a Vossa Majestade, pelo muito que amo seu serviço e a grandeza de sua Real Coroa, mande ter com todos atenção que merecem, porque das mercês que Vossa Majestade lhe[s] fizer, há-de ver sempre mui seguros reconhecimentos para glória da Real pessoa e casa de Vossa Majestade, que Deus guarde, felicíssimos anos, como seus vassalos havemos mister.

Elvas, 12 de Novembro de 1653.

Imagem: Oficial de cavalaria em armadura de couraceiro (painel de azulejos do exterior do Palácio dos Marqueses de Fronteira e Alorna). Note-se o pormenor (correcto) de segurar a pistola de lado, deixando o mecanismo de fogo ao alto, para se assegurar a ignição da pólvora por percussão do cão na panela. Introduzidos de facto na orgânica da cavalaria portuguesa em 1645, os cavalos couraças raramente usaram a armadura que a figura representa. Somente em ocasiões de batalha campal algumas companhias da guarda dos generais se equipavam desta forma, embora fosse bastante comum oficiais superiores e generais usarem armadura de couraceiro. Foto de JPF.

Combate de Arronches, 8 de Novembro de 1653 – parte 2.

Continuando a transcrição da carta do Conde de Soure, reproduzida em M. L. de Almeida e C. Pegado (pub.), Livro 2.º do registo das Cartas dos Governadores das Armas (1653-1657), Coimbra, Biblioteca da Universidade, 1940:

Com este aviso mandei os que me pareceram necessários ao general da cavalaria, que prosseguindo o seu caminho chegou junto a Arronches, de onde tirou cem soldados infantes, dos da ordenança e presídio daquela vila, com os capitães dela Baltasar Pereira de Castelo Branco e João da Ponte e o ajudante Álvaro Fernandes. E pondo-se em batalha a nossa gente, que constava de novecentos e cinquenta cavalos, fez onze esquadrões: seis de vanguarda, governada pelo general e pelos dois comissários, Duquesne e Rozier, e pelos capitães D. Pedro de Lencastre, Henrique de Figueiredo, D. Diogo de Almeida, Francisco Pacheco [de Mascarenhas – companhia onde servia o soldado e memorialista Mateus Rodrigues, que ficaria gravemente ferido no combate], João da Silva [de Sousa], João Ribeiro do Couto, Miguel Barbosa, Diogo de Mendonça, D. João da Silva, António Fernandes Marques, D. Fernando da Silva, D. Pedro de Almeida. E os cinco da retaguarda encarregou ao tenente-general Tamericurt e aos capitães Jerónimo Borges, João Bocarro [Quaresma], Manuel Peixoto, António Coelho de Góis, Diogo de Mesquita, Fernão de Sousa e o capitão Auguste Stéphane de Castille.

E nesta forma foi buscar o inimigo que o estava esperando com mil e trezentos cavalos (segundo dizem os castelhanos) na mesma forma com catorze batalhões muito grossos. A sua vanguarda tinha o Conde de Amarante e a retaguarda Ibarra, tenentes-generais da cavalaria.

Escolheram sítio entre três ribeiros ou sanjas profundas, duas pelos lados e uma pela frente, esperando que nesta passagem se desordenasse a nossa gente. Reconhecendo o perigo, fez alto o general da nossa cavalaria sobre a sanja. E logo se travou escaramuça de uma e outra parte [ou seja, trocaram-se tiros de carabina à distância], até que chegando os nossos cem mosqueteiros repartidos em dois troços sobre o corno direito e esquerdo do inimigo, o apertaram de maneira que o obrigaram a buscar-nos, o que fez com toda a resolução e valor. A nossa gente os esperou cerrados e com grande firmeza. Chegando-se a juntar uns com os outros, se feriram tão obstinadamente que por mais de um quarto de hora se não conheceu vantagem, até que a nossa constância superou o valor contrário. E com grande ruína foi rota a vanguarda do inimigo e seguida até encontrar a sua reserva, que obrigou os nossos esquadrões a se retirarem. E passando pelos claros da nossa retaguarda, se formaram logo de novo detrás dela com maravilhosa ordem e brevidade, e logo investiu a nossa retaguarda com todo o grosso do inimigo com tal esforço e valor que o puseram em fugida, seguindo-o légua e meia até que a noite impediu o alcance.

(continua)

Imagem: Combate de Arronches; pormenor do painel de azulejos correspondente, Sala das Batalhas, Palácio dos Marqueses de Fronteira e Alorna. Note-se a presença dos mosqueteiros da ordenança de Arronches.

Combate de Arronches, 8 de Novembro de 1653 – parte 1.

Acerca do “Combate de Arronches” – um recontro de cavalaria ocorrido em local não identificado com precisão, algures entre Arronches e Assumar – existe uma relação publicada (Relaçam da vitoria qve alcançov do castelhano, Andre de Albuquerque General da Cauallaria, & Alcayde mór de Sintra, entre Arronches, & Asumar, em 8 de Nouembro deste presente anno de 1653. Em Lisboa. Na Officina Craesbeeeckiana anno de 1653). Todavia, o que ora se principia a transcrever é uma carta enviada a D. João IV por D. João da Costa, 1.º Conde de Soure (1610-64), ao tempo governador das armas da província do Alentejo. Difere em pequenos pormenores da posterior relação impressa, embora esta siga, no essencial, a missiva do cabo de guerra.

Não se trata de um estudo sobre o combate, que envolveu principalmente cavalaria de ambos os lados (os portugueses tiveram apoio de unidades de infantaria). O estudo está neste momento em andamento. Apresenta-se aqui, com intuito de divulgação, a carta do Conde de Soure, reproduzida em M. L. de Almeida e C. Pegado (pub.), Livro 2.º do registo das Cartas dos Governadores das Armas (1653-1657), Coimbra, Biblioteca da Universidade, 1940.  

Sucesso de Arronches

Senhor

Em nove deste mês dei conta a Vossa Majestade do glorioso sucesso, que Deus foi servido dar às armas de Vossa Majestade, na forma das primeiras notícias que me mandou o tenente-general da cavalaria Tamericurt. Agora o faço com os mais particulares que pude achar.

A seis deste mês ordenei a Fernão de Mesquita [Pimentel] que, com as cinco companhias pagas e com as tropas dos pilhantes [companhias que faziam parte da milícia de Auxiliares] do partido [distrito militar] de Portalegre, fosse armar [emboscar] as duas companhias de Valença [Valencia de Alcántara] e de São Vicente. E em sete ao general da Cavalaria [André de Albuquerque Ribafria] que, com as desta praça [Elvas], Campo Maior e Olivença, armasse as companhias de Badajoz.

O inimigo havia dado ordem para que, no mesmo dia de seis deste [mês], entrasse o comissário geral Bustamante com dezoito companhias do partido de Alcântara e Albuquerque para que, roubando os campos das comarcas do Crato, Avis e Portalegre, se juntasse entre Alegrete e Arronches com o resto da sua cavalaria, que naquele posto havia de estar sábado pela manhã. Para este efeito saiu de Badajoz sexta-feira, à boca da noite, tomando o caminho para Campo Maior.

O general da cavalaria André de Albuquerque, que havia estado todo o dia na emboscada, por não haver tido a ocasião que esperávamos para correr o inimigo, vendo-o sair me avisou e o foi buscar [ou seja, foi ao seu encontro] a Campo Maior, adonde não pôde dar com a trilha até sábado pela manhã, e pondo-se nela o foi seguindo.

Neste tempo me chegou aviso que Fernão de Mesquita, indo entrando em Castela com cinco companhias pagas e quatro tropas de pilhantes, formado em cinco batalhões [formações tácticas], encontrou seis que eram a vanguarda das dezoito companhias do comissário geral Bustamante, que vinha entrando para Portugal. Investindo-os os nossos valorosamente os romperam e os foram levando, até topar co a reserva do inimigo, a quem não puderam resistir os nossos esquadrões, porque iam misturados com os primeiros seis do inimigo. E assim foi força ceder a nossa gente depois de haverem feito tal estrago nos castelhanos, que não puderam executar a ordem que tinha[m] para entrar em Portugal e juntar-se com os de Badajoz, em razão dos muitos oficiais e soldados que perderam. Os de que até agora tive notícia são quatro capitães, um logo morto e três muito mal feridos, e neles entra Dom Álvaro de Luna, filho do Conde de Montijo, e o número dos oficiais menores e soldados não sei com certeza, por haverem ficado em sua terra e os castelhanos encobrirem com grande cuidado as perdas que recebem; mas de algumas línguas que têm vindo daquela parte consta que os mortos e feridos do inimigo são muitos e o dano que tiveram foi tal que nos assegurou a vitória que alcançámos a nove deste [mês] [em rigor, a oito].

A perda que recebemos constou de cinquenta e oito cavalos e outros tantos soldados prisioneiros, em que entraram os capitães Fernão de Mesquita e Duarte Fernandes Lobo, que ficaram feridos, e dois tenentes e dois alferes.

Nesta ocasião se acharam os capitães Fernão de Mesquita, que a ia governando, Duarte Fernandes Lobo, o capitão Duarte Lobo da Gama e as companhias de Manuel de Mendonça, D. Fernando da Silva sem capitães, e as companhias dos soldados socorridos a que chamam pilhantes, Francisco Velho Coutinho, Fernão Martins de Ayala, Manuel da Costa Monteiro. Todos os oficiais e soldados procederam com grande valor, mas como não chegavam a 260 e os do inimigo eram todos soldados pagos e passavam de seiscentos e cinquenta, não puderam resistir.

(continua)

Imagem: Combate de Arronches; pormenor do painel de azulejos correspondente, Sala das Batalhas, Palácio dos Marqueses de Fronteira e Alorna.

“Diálogos com História e Património” – apresentação da comunicação “A Batalha do Ameixial – uma perspectiva do factor humano na guerra do século XVII”

Foi com muito gosto que acedi ao honroso convite para participar no ciclo de conferências “Diálogos com História e Património”, promovido pela associação CIDADE (Cidadãos pela Defesa do Património de Estremoz). O evento teve lugar no passado dia 18 de Junho, no Regimento de Cavalaria 3 de Estremoz.

Ao Dr. Pedro Nunes da Silva deixo aqui uma saudação especial. A todos os que participaram, os meus agradecimentos.

“La Guerra de Portugal (1640-1668)”, de Enrique Sicilia Cardona – uma obra recém-lançada em Espanha sobre o conflito peninsular do século XVII

O professor Enrique Sicilia Cardona lançou recentemente – para ser mais exacto, durante o mês de Abril – o seu livro La Guerra de Portugal (1640-1668), através da Editorial Actas, de Madrid. Trata-se de uma obra muito importante para ampliar o conhecimento sobre a Guerra da Restauração.

O livro, que pode ser adquirido directamente através da editora ou encomendada em sites online, tem uma estrutura que cobre praticamente todos os aspectos do conflito seiscentista. Abre com os antecedentes da guerra, debruçando-se em seguida pelo estudo dos teatros de operações: as fronteiras, o clima, as linhas de comunicação e aprovisionamento, a tipologia das operações de guerra, a inteligência militar, a dimensão dos exércitos e as fortificações. Passa, depois, a tratar da organização e do armamento dos exércitos, antes de entrar na parte mais extensa: a das fases da guerra, com o estudo das principais batalhas e combates, sem esquecer o enquadramento no contexto internacional. De realçar igualmente os anexos, com variada informação biográfica sobre os principais intervenientes no conflito.

Em suma, uma obra que recomendo vivamente, cuja capa se reproduz acima. O vídeo promocional é apresentado no final deste artigo.

Aproveito, a terminar, para agradecer ao professor Enrique Sicilia Cardona a gentileza de me ter enviado o original para consulta, antes ainda da sua publicação.

Sobre a “Relação Diária”, um esclarecimento de Juan Antonio Caro del Corral

O estimado amigo Juan Antonio, que tantas vezes tem aqui colaborado, enviou um comentário a propósito da última parte do manuscrito que aqui tem sido transcrito e traduzido. É um complemento e uma correcção ao texto original, que eu agradeço profundamente, e que fica aqui:

Como siempre, magnífica la información publicada en esta excelente web, que se ha ganado a pulso, desde hace muchos años, el ser considerada como el mejor sitio de la red para informarse fielmente de lo ocurrido en aquel periodo bélico de mediados el XVII.
Una enorme tarea de investigación y divulgación realizada por el prof. Jorge Penim, a quien todos los interesados en aquella guerra debemos tanto.
Paralelo a esta última entrada de su blog, acompaño algunas precisiones que, quizás, contribuyan a entender mejor los sucesos narrados.
1–) El ataque a Barcarrota no ocurrió el día 18 diciembre, tal como se cita en el texto. Realmente fue una semana antes, coincidiendo con la festividad de la Purísima Concepción.
2–) El número de efectivos que componía el ejército atacante, según fuentes documentales
castellanas, se evaluó en 4.000 infantes y 2.000 caballos, a diferencia de los 2.500 soldados y 1.200 caballos que cuantifica el texto (curiosamente también redactado por cronistas castellanos) En todo caso, la guerra de cifras dispares siempre fue una constante a lo largo de la guerra, debiendo tomarse con la debida precaución, comparando las fuentes informativas para tratar de obtener una cifra lo más realista posible.
3–) Los primeros avisos del movimiento de tropa portugués llegaron a oídos de los oficiales castellanos un par de jornadas antes del referido ataque a Barcarrota. Efectivamente, se supo que desde Campo Maior avanzaban los lusos recogiendo gente de guerra de otras plazas, tales Serpa, Moura, y Mourao.
4–) San German alertó a toda la comarca, pero la grave falta de efectivos redujo considerablemente el poder enviar socorros con rapidez. Hubo que llamar a soldados que se encontraban de cuartel muy lejos del foco de invasión, por ejemplo, desde el distrito onubense.
5–) El gobernador militar de Barcarrota, que en el texto se menciona como Lafonte, en realidad respondía al nombre de Juan Bautista Cafonte; en tanto que el comisario general se llamaba José de Larreategui, caballero de la Orden de Santiago, quien contaba con una extensa hoja de servicios (23 años, habiendo estado presente, por ejemplo, en Rocroi)
6–) San Germán, tal como se cita, después de difuminarse el peligro sobre Barcarrota, viajo a Madrid, dónde, ante la Junta de Guerra, expuso la necesidad de convocar a un potente ejército y, aprovechando la fragilidad surgida tras el fallecimiento de Joao IV y regencia de su esposa, realizar una entrada gloriosa en Portugal. Una campaña, la de 1658, que tendrá como máximo objetivo conquistar Olivenza. La marcha comenzaría el 12 de abril. Pero esa, es otra historia…

Imagem: Sebastien Vranckx, Cena de batalha, séc. XVII.

Relação diária dos sucessos ocorridos entre os anos 1655 a 1656 na fronteira da Extremadura espanhola (parte 9 – final)

Ano de 1656

A seis de Novembro do ano de 1656 morreu em Lisboa D. João, Duque de Bragança, a quem os portugueses aclamaram por rei no ano de 1640. Deixou um filho príncipe chamado D. Afonso e outro D. Pedro e uma filha. Não se publicou [ou seja, não se tornou pública] a sua morte nas fronteiras por alguns dias, escrevendo a elas por correio todos os cabos [ou seja, oficiais generais e superiores] que se encontravam em Lisboa.

Sentiu-se de maneira geral em Portugal a sua morte, mais pela confusão que lhes causava verem-se sem cabeça, que pelas prendas que nele não havia. Foi muito robusto e pouco polido e apto mais para os exercícios da caça e do campo em que se criou, que para os negócios da Corte, menos na música, em que era destríssimo. Nada era inclinado à guerra; e assim, ainda que tirano […], não se encontrou em exército algum, nem visitou jamais as fronteiras. Favorecia pouco aos soldados, sendo eles, ainda que desabonados, os que o mantinham em sua tirania. Era sumamente parco, portando-se sem fausto algum, assim no vestuário como nas outras cerimónias com que costumam fazer-se adorar os reis. Isto e o mostrar-se muito popular ainda com os mais íntimos, lhe grangeou não pouco afecto com a plebe, a qual, tratada com esta simplicidade, não sabe desejar menos as demais prendas. Deste género de gente favoreceu e levantou alguns sujeitos, de quem fiava mais do que dos da primeira nobreza, castigada por algumas conspirações, que descobriu mais por felicidade, que por astúcia. Foi muito amigo de juntar tesouro e por esta causa era pouco liberal [ou seja, era avaro], de modo que todo o gasto de sua casa o fazia com as rendas do Estado de Bragança, e ainda que contribuiu com grossas somas para França e para o Parlamento de Inglaterra, é fama que tinha muito dinheiro. Morreu de idade de cinquenta anos, havendo tiranizado o Reino de Portugal dezasseis, menos mês e meio.

Logo a 18 de Dezembro deram […] os rebeldes à vista do castelo de Barcarrota com dois mil e quinhentos infantes e mil e duzentos cavalos, quatro peças de artilharia, escadas e petardos. Teve disto o Duque de San Germán algumas notícias antecedentes, pelas línguas que se trouxeram e por avisos que se deram de que o inimigo tinha prevenção de todas estas coisas para ir sobre uma de quatro praças: Badajoz, Talavera, Barcarrota e Jerez. […] Este mesmo dia se trouxe língua de Campo Maior, que disse havia passado por ali o terço de Castelo de Vide na volta de Elvas [ou seja, pelo caminho que conduzia a Elvas] e um dos terços de Campo Maior com tropas daquele lugar; não houve em Badajoz movimento algum mais do que haver avisado às fronteiras para que retirassem o gado.

No dia seguinte chegou aviso do sargento-mor Lafonte, governador de Barcarrota, e do comissário geral Don José de La Artegui, que assistia em La Parra.

Este mesmo dia enviou-se o tenente-general […] Don Gregório Ibarra para que, com aquelas tropas, abrigasse os lugares fronteiros a Barcarrota e tomasse língua do inimigo. E este mesmo dia entraram em Badajoz as tropas de Brozas, Valência, Arroyo del Franco e a de Don Rodrigo Muxica, que se haviam juntado em Albuquerque com o capitão Don Pedro de Quintanal, em número de cerca de trezentos cavalos, para entrar em Portugal no princípio desta semana. E porque das línguas que se tomaram se entendeu que marchava o terço de Castelo de Vide e as tropas daquele lugar, não se resolveram a entrar […] e marcharam para Badajoz por nova ordem que se lhes deu.

A 10 enviaram-se oficiais de todos os terços, para que trouxessem toda a gente da província concentrada, por ser pouquíssima a que se encontrava em Badajoz, não só para fazer oposição ao inimigo, como para defender a muralha, e por isso se mandou tomar arma a todos os vizinhos e com eles se guarneceu a muralha. Porém, porque neste mesmo dia chegou aviso do governador de Barcarrota que o inimigo se havia retirado, e ali havia entrado o comissário geral Don José de La Artegui [com] noventa homens com dois capitães no castelo, se deu nova ordem, supondo que os rebeldes se haviam retirado de todo.

Ainda que neste tempo não se sabia ao certo que tivessem entrado em algumas das suas praças, e assim se estranhou, de forma geral, a facilidade com que cá se asseguraram os chefes, que ainda não constava que o inimigo estivesse desfeito, e podia tomar outro expediente que lhe parecesse, com que viríamos a ficar com as mesmas dificuldades do primeiro dia (não obstante se haver tocado arma em toda a fronteira), por faltar a gente com que guarnecer a mesma.

O inimigo retirou-se e desfez a sua gente, porque havendo reconhecido o castelo de Barcarrota, um engenheiro disse que não era tão fácil a sua expugnação como haviam pensado, e que necessitava de cerco em forma, em cujo tempo se poderiam juntar todas as nossas forças, e não queriam aventurar as suas à fortuna de uma batalha. Ao que se juntou o haver-se atascado as peças uma légua antes de chegarem a Barcarrota, não havendo sido possível desatascá-las com quantas diligências fizeram, o que tiveram eles como milagre a nosso favor, e assim se retiraram a nove, ao meio-dia.

Vinham ali Dom João da Costa, governador das armas; o general da cavalaria André de Albuquerque; e o da artilharia Francisco de Melo, ainda que pouco conformes entre si, por discórdias particulares antigas. Com que, ainda que fossem aquelas suas forças todas pagas, não era de temer que obrassem coisa considerável.

A 14 chegou ordem de Sua Majestade ao Duque de San Germán, para que sem dilação alguma marchasse com toda a diligência à Corte, para conferir algumas coisas tocantes ao seu real serviço. Saiu no domingo 16, às cinco da manhã, havendo despachado algumas cartas, para seguir o correio entre coches, para chegar a vinte. Ficou governando o general da cavalaria don Rodrigo de Muxica.

FIM

Fonte: “Relación diaria de los sucesos acaecidos entre los años 1655 a 1656” (Biblioteca Nacional de Madrid, Sala Cervantes, Colección Mascareñas, Manuscrito nº 2384, fls. 338-339).

Imagem: Brozas, na actualidade. Foto do autor.

“The Portuguese Army 1659-1690”, de Bruno Mugnai

Há um par de semanas recebi um exemplar ofertado e autografado pelo autor, a quem aproveito para agradecer a amabilidade e também para felicitar pelo excelente trabalho realizado.

Recomendo vivamente esta obra, plena de informação e com um interessante manancial iconográfico, a todos os que se interessam por este período histórico.

1.º de Dezembro de 1640

Consequência da Restauração da Independência política em 1 de Dezembro de 1640, principiaram de imediato os preparativos para a defesa do Reino.

Pormenor da inscrição sobre a porta do forte de São Jorge de Oitavos, entre o Guincho e Cascais: “O muito alto e muito poderozo Rey Dom Ioão o IIII de Portugal nosso senhor que Deus guarde mandou fazer esta fortificação sendo governador das armas reais Dom António Luís de Menezes. Que se prinsipiou em 9 de Maio de 1642 e se acabou em a era de 1648“.

Foto: JPF.

Relação diária dos sucessos ocorridos entre os anos 1655 a 1656 na fronteira da Extremadura espanhola (parte 8)

A 15 entrou aqui o vedor geral Don Antonio Ortiz de Velazco, com o ofício juntamente de procurador e 2.000 escudos de soldo ao ano. Mostrou este cavalheiro muito interesse na distribuição do dinheiro e segundo se crê, traz ordens apertadas de Sua Majestade para dar a mão ao Duque, como o fez, com muita prontidão não só em coisas maiores, como também em outras muito simples. Este começou a executar de pronto a ordem de que o dinheiro da infantaria e cavalaria se distribuísse em seus géneros. O homem é algo altivo e depreciativo, ou seja pelas ordens secretas que trouxe, ou já por ser favorecido do Marquês de Liche, ou finalmente por sua condição natural; e assim responde com desabrimento a quantos vão a pedir-lhe dinheiro, e com palavras de pouca modéstia. Assim não está muito bem quisto com o exército, e ele se encontra pouco agradado aqui.

Por este tempo fez o inimigo algumas presas consideráveis por Jerez e por Albuquerque, no ribeiro dos Riscos [?]. De cá se fizeram também algumas menores pelas mesmas partes.

Em 29 deste se teve aviso que chegaram coisa de 80 cavalos das tropas de Ciudad Rodrigo a Valverde de Gata, sem oficiais nem ordem alguma, com ânimo de fazer por ali entrada. O sargento-mor Don Diego de Rueda, que se encontrava ali, os forçou a recolher ao lugar e alojar, com ânimo de os convencer a que regressassem às suas tropas. Propô-lo a alguns reformados e particulares que vinham entre eles, encarregando-os da acção e oferecendo-lhes dinheiro para voltassem. Não foi possível demovê-los, porque diziam que eles eram homens de bem, necessitados, e que mais queriam remediar-se com o que tirassem de Portugal, do que ir tirando pelos caminhos. Vendo a sua tenacidade, ofereceu-lhes o sargento-mor um capitão com 90 infantes para ocupar um posto por onde precisamente haviam de regressar e o ocupava o inimigo sempre que se tocava arma no Meimão. Com o que, deixando com os 90 infantes outros tantos cavalos, poderiam romper a partida que costumava acudir a ocupar aquele posto de Penamacor. Dispôs-se assim, porém um soldado que vinha seguindo estes outros, preso pelo inimigo lhes disse o intento que traziam os 80 cavalos. Com que o mestre de campo João Fialho, quando eles entraram, se encontrava com as armas na mão, e assim logo que se tocou arma saiu com 400 infantes e 150 cavalos ao posto. Porém, reconhecido dos batedores, o avisaram que havia nele 100 cavalos e 200 infantes, pelo que o Fialho não se resolveu a investi-lo, e ficou ao largo. E quando, retirando-se já os nossos, reconheceu a sua fraqueza, os carregou, se bem que foi já em passagem, que não se perderam mais de 4 cavalos e 3 infantes, e se teriam perdido todos os 80 cavalos, se não levassem a infantaria que o sargento-mor lhes deu para que não fosse a sua entrada tão desatinada, já que não lhe era possível estorvá-la. No entanto, pelo mau exemplo de amparar soldados sem comando, mandou-se fazer a averiguação do caso.

No princípio deste mês entrou o capitão Don Diego Alvarez por Jerez com até 200 cavalos na volta de Moura, donde perdeu 23 cavalos, dos quais alguns lhe rebentaram de cansados. Por isto, e porque em outra presa que os dias passados fez se tomou a maior parte, houve alguma queixa e não pouca disposição para devassá-lo, porém isto se calou.

Pelo fim deste mês levaram os rebeldes uma presa grande de leitões dos montes de Salvatierra e Burguillos, e outra de Sierra de Gata, de gado menor e maior considerável. E pela pouca segurança que há aí nos campos de Alcântara, de onde pastaram até aqui os gados merinos, ficaram este ano sem reunir mais de 60 cabeças.

(continua)

Fonte: “Relación diaria de los sucesos acaecidos entre los años 1655 a 1656” (Biblioteca Nacional de Madrid, Sala Cervantes, Colección Mascareñas, Manuscrito nº 2384, fls. 336 V-337 V).

Imagem: Combate de cavalaria, período da Guerra dos 30 Anos; óleo de Palamedes Palamedesz (1605-1638).