Cavalaria do exército do Alentejo em Junho de 1644

Joseph Parrocel

Cerca de um mês após o fraco desempenho da cavalaria do exército da província do Alentejo na batalha de Montijo, era este o efectivo das companhias portuguesas, segundo a mostra de 29 de Junho de 1644:

Companhia do general da cavalaria (Francisco de Melo, monteiro-mor do Reino): soldados montados – 82; apeados – 13; carabinas – 82; pistolas – 110; peitos – 65; espaldares – 63; murriões – 35.

Cª do tenente-general (D. Rodrigo de Castro, ausente por doença): soldados montados – 64; apeados – 0; carabinas – 46; pistolas – 57; peitos – 40; espaldares – 40; murriões – 38.

Cª do comissário-geral (Gaspar Pinto Pestana, exonerado e preso por ordem régia após a batalha de Montijo; cª a cargo do tenente): soldados montados – 56; apeados – 14; carabinas – 38; pistolas – 54; peitos – 43; espaldares – 43; murriões – 40.

Cª do capitão D. António Álvares da Cunha: soldados montados – 76; apeados – 0; carabinas – 67; pistolas – 94; peitos – 96; espaldares – 96.

Cª do capitão Fernão Pereira de Castro (prisioneiro em Espanha desde a batalha de Montijo; cª a cargo do tenente): soldados montados – 64; apeados – 2; carabinas – 51; pistolas – 61; peitos – 51; espaldares – 51.

Cª do capitão D. Francisco de Azevedo: soldados montados – 71; apeados – 5; carabinas – 44; pistolas – 95; peitos – 41; espaldares – 41.

Cª do capitão Francisco Barreto de Meneses: soldados montados – 59; apeados – 5; carabinas – 50; pistolas – 35; peitos – 24; espaldares – 24.

Cª do capitão D. Diogo de Meneses (prisioneiro em Espanha desde a batalha de Montijo; cª a cargo do tenente): soldados montados – 55; apeados – 6; carabinas – 48; pistolas – 87; peitos – 53; espaldares – 53.

Cª do capitão António de Saldanha: soldados montados – 44; apeados – 1; carabinas – 28; pistolas – 30; peitos – 17; espaldares – 17.

Cª do capitão D. João de Azevedo e Ataíde: soldados montados – 91; apeados – 1; carabinas – 63; pistolas – 78; peitos – 44; espaldares – 47; murriões – 47.

Cª do capitão D. Henrique Henriques: soldados montados – 49; apeados – 7; carabinas – 42; pistolas – 61; peitos – 35; espaldares – 35; murriões – 30.

Cª do capitão João de Saldanha da Gama (morto em combate na batalha de Montijo; cª a cargo do tenente): soldados montados – 88; apeados – 0; carabinas – 66; pistolas – 80; peitos – 51; espaldares – 51; murriões – 51.

[dragões] do capitão António Teixeira Castanho: soldados montados – 56; apeados – 2; arcabuzes – 56.

Efectivos totais: 911 (855 soldados montados, 56 apeados); não entram nesta conta os oficiais das companhias, capelães, furriéis, trombetas e ferreiros. Conforme se verifica, apenas metade das companhias dispunha de murriões ou capacetes. É notória a falta de armas de fogo (recorde-se que a dotação nominal por soldado seria de um par de pistolas e uma carabina). Todas as companhias de cavalaria eram, de facto, de cavalos arcabuzeiros, mesmo que honorificamente as dos oficiais superiores fossem classificadas como couraças – os verdadeiros cavalos couraças só seriam introduzidos em Setembro dese ano, com equipamento defensivo mais completo para os seus militares.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1644, mç. 4-A, nº 264, doc. anexo à consulta de 12 de Julho de 1644, “Rezumo das Companhias de Cauallo que neste Ex.to Seruem a SMgde Apresentado na mostra que se comesou em 29 de Junho 1644″.

Imagem: “Combate de Cavalaria”, Joseph Parrocel, Museum der bildenden Künste, Leipzig.

Cavalaria e dragões holandeses em Portugal – a mostra de 29 de Junho de 1644

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A mostra de 29 de Junho de 1644 foi feita com o intuito de verificar os efectivos reais da cavalaria na província do Alentejo, um mês volvido sobre o desastre das forças montadas do exército português na batalha de Montijo, e aquilatar as necessidades em cavalos, armamento e equipamento.

No rol da mostra não se faz qualquer referência a regimentos de cavalaria ou dragões, somente a cada companhia, sob o título genérico “Cavalaria Holandesa”; havia 8 companhias de cavalos e 4 de dragões – estas só se distinguem pelo armamento descrito. A cavalaria (e dragões) dos holandeses contava com um efectivo de 448 homens, correspondente então a 26,8% do total da província, contando soldados montados e apeados. No entanto, cerca de 40% dos soldados holandeses não estavam providos de cavalos.

Ao contrário da cavalaria francesa, que não estava equipada com murriões, peitos e espaldares, a cavalaria holandesa estava munida deste equipamento, tal como as companhias portuguesas, embora uma parte dele estivesse em falta. Só os dragões não tinham qualquer tipo de protecção metálica.

Eis os efectivos detalhados (não estão incluídos os oficiais das companhias, nem os furriéis, trombetas e ferreiros):

Companhia do coronel Jan Willem van Til: soldados montados – 49; apeados – 3; carabinas – 9; pistolas – 54; peitos – 28; espaldares – 27; murriões – 22.

Cª do sargento-mor Alexandre van Harten: soldados montados – 23; apeados – 7; carabinas – 25; pistolas – 56; peitos – 28; espaldares – 28; murriões – 28.

Cª do capitão Conrad Piper: soldados montados – 22; apeados – 12; carabinas – 11; pistolas – 44; peitos – 22; espaldares – 22; murriões – 22.

Cª do capitão van Wagen (ou Wagenheim): soldados montados – 43; apeados – 10; carabinas – 9; pistolas – 78; peitos – 3; espaldares – 3; murriões – 2.

Cª do capitão Mauricius Lamair (2): soldados montados – 19; apeados – 6; carabinas – 2; pistolas – 38; peitos – 1; espaldares – 1; murriões – 1.

Cª do capitão Jacob de Cleer (2): soldados montados – 25; apeados – 7; carabinas – 1; pistolas – 46; peitos – 24; espaldares – 24; murriões – 24.

Cª do capitão Mathias Waremburg (1): soldados montados – 22; apeados – 18; carabinas – 4; pistolas – 35; peitos – 23; espaldares – 23; murriões – 23.

Cª do capitão Willem Segres van Wassenhoven: soldados montados – 20; apeados – 29; carabinas – 4; pistolas – 26; peitos – 4; espaldares – 4; murriões – 4.

[dragões] do capitão Frederik van Plettemburg (2): soldados montados – 20; apeados – 11; arcabuzes – 25.

[dragões] do capitão Joan de La Roche: soldados montados – 13; apeados – 27; arcabuzes – 24.

[dragões] do capitão Sigismundus Finkeltous (2): soldados montados – 7; apeados – 23; arcabuzes – 30.

[dragões] do capitão Frederik Streecht (1): soldados montados – 9; apeados – 23; arcabuzes – 31.

(1) Estes capitães não deixaram o serviço em meados de 1642, apesar de terem então recebido passaporte para regressar à sua terra natal (quando escrevi O Combatente durante a Guerra da Restauração…, o período conhecido de serviço destes militares, em face da documentação consultada, não ia além de 1642; fica aqui a correcção).

(2) Estes capitães não deixaram o serviço da Coroa Portuguesa em 1643, conforme refiro a pgs. 87-88 de O Combatente durante a Guerra da Restauração…, mas somente após o termo do primeiro contrato, em meados do ano seguinte.

Fonte principal:  ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1644, mç. 4-A, nº 264, doc. anexo à consulta de 12 de Julho de 1644, “Rezumo das Companhias de Cauallo que neste Ex.to Seruem a SMgde Apresentado na mostra que se comesou em 29 de Junho 1644”.

Imagem: Cavalaria do período da Guerra Civil Inglesa. “History Day”, Kelmarsh Hall, 2007. Foto de J. P. Freitas.

Cavalaria e dragões holandeses em Portugal (1641-1644) – uma revisão

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A escrita da História nunca é definitiva. Quando se produz uma síntese em função da documentação recolhida e analisada, eis que se descobre um documento até então “escondido” ou descurado que obriga a rever o que até então era dado como muito plausível ou mesmo certo.

É o caso dos dragões ao serviço do exército português. Sobre a existência de uma única companhia portuguesa, não existem grandes dúvidas. No que respeita às unidades estrangeiras de dragões, sabia-se que haviam sido constituídos – pelo menos no papel – um regimento holandês e outro francês. Do francês, a única prova fidedigna que existe é o de uma companhia com 20 soldados, mas sem qualquer tipo de armamento, segundo uma mostra passada em Julho de 1644. Do holandês, escrevi que nunca tinha sido constituído e que os seus militares haviam sido integrados em companhias de cavalos ou combatido como infantaria. A documentação dispersa apontava nesse sentido. A ausência de referências explícitas nas fontes narrativas a dragões holandeses parecia confirmar a hipótese. Até porque o seu hipotético comandante regimental, o tenente-coronel Eustacius Pick, esteve em vias de regressar às Províncias Unidas em meados de 1642, mas acabou por permanecer em Portugal, onde serviu como mestre de campo de um terço português até à batalha de Montijo.

Mas um documento que até agora não tinha sido explorado veio lançar uma nova perspectiva sobre o assunto. Uma carta de D. João da Costa, de 28 de Dezembro de 1643, inclusa numa consulta do Conselho de Guerra de Janeiro do ano seguinte, refere que, ao contrário do sucedido com as unidades francesas, as holandesas ainda não tinham sido reformadas (ou seja, reorganizadas ou extintas, conforme os casos) nessa altura, por se ter extraviado a carta régia que assim o ordenava. Na missiva, o cabo de guerra aponta os números da última mostra que se passara ao contingente holandês. Assim, havia 369 soldados montados de cavalaria ligeira, em oito companhias, que se podem e devem reduzir a quatro. E 148 dragões montados em quatro companhias, que se devem reduzir a duas. Havia ainda 101 soldados a pé. D. João da Costa sugeria que se  formasse com estes soldados uma companhia de infantaria, para que sirvam a pé com mosquetes e arcabuzes enquanto não houver cavalos para lhes dar.

No rol de unidades que constituíram o exército que em 1643 lançou a campanha ofensiva sobre território espanhol, todas as companhias holandesas são incluídas na cavalaria, sem qualquer distinção ou referência a dragões (veja-se, por exemplo, João Salgado de Araújo). No segundo contrato celebrado com a Coroa portuguesa (1644-1647), ficou a servir em Portugal apenas um regimento de cavalaria a 4 companhias, inicialmente com cerca de 100 soldados cada. Sobre este assunto a documentação é mais clara e não deixa margem para dúvidas.

Fonte:  ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1644, maço 4, cx. 29, carta anexa ao doc. nº 75.

Imagem: “Assalto de militares a uma aldeia”; Sebastian Vrancx, meados do séc. XVII.

Regimentos holandeses de 1641 ao serviço da Coroa portuguesa (cavalaria e infantaria – organização teórica)

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Regimentos constituídos “no papel” em Outubro de 1641. Tal como no caso dos franceses, as 8 companhias de cavalaria (a 100 cavalos cada, segundo o efectivo previsto) operaram quase sempre de forma independente, embora a designação “regimento” se mantivesse em termos puramente administrativos e contratuais. O regimento de dragões é mencionado num documento de 1644, mas tal como a cavalaria, as companhias (num máximo de quatro) terão operado de forma independente. As fontes narrativas não distinguem cavaleiros e dragões holandeses, e os documentos oficiais (róis enviados ao Conselho de Guerra após as mostras efectuadas no Alentejo, ou cartas com declaração minuciosa dos efectivos) juntam sempre a cavalaria e os dragões num único regimento. O tenente-coronel Estacius Pick, inicialmente declarado como comandante do regimento de dragões, recebeu patente de mestre de campo e o comando de um terço de infantaria portuguesa a 12 companhias (com vários  militares estrangeiros, incluindo quatro oficiais holandeses e franceses) no Alentejo em 1642. Pick foi capturado pelos espanhóis na batalha de Montijo e só foi libertado em finais de 1646, tendo regressado à Holanda.

À semelhança do que aconteceu com a cavalaria francesa, as reformas de Março de 1645 integraram as companhias do ex-regimento de cavalaria no exército português (nessa data já não se fazia qualquer referência aos dragões). Até então, por motivos religiosos, as unidades de cavalaria holandesa estavam proibidas de incluir soldados portugueses. Com a dissolução do regimento e a integração dos oficiais e soldados holandeses no exército português, essa discriminação terminou.

Para mais detalhes, consulte-se O Combatente durante a Guerra da Restauração… e A Cavalaria na Guerra da Restauração…, onde este assunto é devidamente aprofundado, bem como as histórias pessoais de alguns oficiais.

Comando do contingente (apenas até ao início de 1642): coronel Lambert Floris van Til (m. 1642; cabia-lhe comandar uma companhia de cavalaria, embora delegasse o comando efectivo da mesma no tenente Mathias Waremburg).

Regimento de cavalaria: Comandante, tenente-coronel Jan Willem van Til (irmão do coronel Lambert Floris); sargento-mor, Alexandre van Harten (comandava uma companhia; m. 1647, sendo comissário geral no Alentejo); capitães, Conrad Piper, Jacob de Cleer, Jacob van Wagen, Alexandre Bery, Mauricius Lamair, Henrique Schilt, Gaspar van Berg.

Regimento de dragões (só parcialmente constituído no terreno): Comandante, tenente-coronel Estacius Pick; capitães, Frederik van Plettemburg, Frederik Streecht, Joan Doecy, Pedro Behan, Sigismundus Finkeltous, Roomfort, Joan de La Roche. Alguns destes oficiais passaram a servir na cavalaria, outros receberam passaportes para regressarem à Holanda em meados de 1642, mas alguns deles demoraram-se em Portugal, sem prestar qualquer serviço, pelo menos até finais de 1643.

Imagem: Combate de cavalaria. Pintura do século XVII (autor não identificado).

Ainda os dragões e as razões da sua descontinuidade no exército português

Para além dos motivos financeiros enunciados por Martim Afonso de Melo, Conde de São Lourenço, para justificar a transformação da solitária companhia de dragões em cavalos arcabuzeiros na província do Alentejo, registe-se a opinião de D. Luís de Meneses, Conde de Ericeira, a respeito do mesmo assunto:

Mandou El-Rei dividir a cavalaria em tropas de Couraças, e Arcabuzeiros. Formaram-se algumas [na verdade, apenas uma, pois as outras não passaram do papel] de Dragões, que duraram pouco, avaliando-se o seu exercício em Alentejo por inútil, por haver naquela província poucos montes, e menos rios, e na campanha rasa ser mais arriscado que necessário o exercício dos Dragões.

(Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, Parte I, Tomo II, Lisboa, na Officina de Domingos Rodrigues, 1751, pg.161)

Imagem: “Soldados equipando-se”, pormenor de um quadro de Jacob Duck, Minneapolis Institute of Arts. O militar da direita apresta-se a colocar a bandoleira com os “doze apóstolos” dependurados (cada frasquinho tinha pólvora suficiente para um tiro de arcabuz ou mosquete), mas o uso de botas e esporas revela que é um dragão.

Os dragões em acção – 1642

O emprego táctico dos dragões ficou registado em algumas fontes narrativas. O clérigo elvense Aires Varela refere uma acção ocorrida em Junho de 1642, nas imediações de Elvas, quando a companhia era comandada pelo capitão António Teixeira Castanho (o trecho que se segue foi vertido para português corrente):

Vendo que o Castelhano não se resolvia [a atacar], mandou [o general da cavalaria Francisco de Melo] ao comissário [Gaspar] Pinto Pestana travasse a escaramuça, assim o fez, lançou algumas tropas, o inimigo as recebeu com valor, deram carga [ou seja, dispararam] destramente, entraram logo o capitão António Teixeira, e o tenente António Banha com os dragões, quando foi tempo fizeram sua obrigação com destreza, e perda do inimigo, e montaram sem nenhum dano pela guarnição que lhes assistia.

Como se percebe, os dragões operavam como infantaria, desmontando para combater a pé. No entanto, era norma acompanharem a cavalaria.

Meses mais tarde, em Outubro, os dragões estiveram envolvidos noutra acção bastante perigosa, narrada pelo soldado Mateus Rodrigues. Nela participou, como comandante das forças portuguesas, o coronel francês François de Huybert de Chantereine :

[O coronel Chantereine] mandou ao comissário [Gaspar Pinto Pestana] que, em chegando à ribeira de Valverde, (…) se pusessem os dragões metidos na ribeira entre os alandroeiros, que os havia pela ribeira mui altíssimos, e emboscados ali para darem carga ao inimigo, que nos havia de apertar muito na passagem da tal ribeira, como de feito assim o fez, que se não foram os dragões com suas cargas, que imaginou o inimigo que estava na ribeira a nossa infantaria, que ele ali não ia apertando bravamente, e logo se fizeram ao largo com toda a cavalaria em um alto, e nós da banda de além da ribeira em outro, mas os dragões nunca se tiraram da ribeira até que o inimigo se foi, para não os verem sair.

Como curiosidade, o baptismo de fogo do soldado Mateus Rodrigues aconteceu em Setembro de 1641, junto à ribeira do Caia, precisamente contra uma unidade de dragões irlandeses ao serviço do exército de Filipe IV. Os dragões desmontaram para receber a tiro a cavalaria portuguesa, fazendo fogo com o arcabuz apoiado na sela. No entanto, dado o tiro logo montaram e tentaram pôr-se em fuga, mas foram alcançados e abatidos pelos portugueses.

Bibliografia:

VARELA, Aires, Sucessos que ouve [sic] nas fronteiras de Elvas, Olivença, Campo Maior e Ouguella, o segundo anno da Recuperação de Portugal, que começou em 1º de Dezembro de 1641 e fez fim em o ultimo de Novembro de 1642, Elvas, Typografia Progresso de António José Torres de Carvalho, 1906 (excerto: pg. 66).

Manuscrito de Matheus Roiz, transcrição do códice 3062 [Campanha do Alentejo (1641-1654)] da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Lisboa, Arquivo Histórico Militar, 1952 (referência ao baptismo de fogo: pgs. 5-6; excerto: pgs. 33-34).

Imagem: Mosqueteiros cercados: o grande problema da infantaria (e dos dragões apeados) quando enfrentava tropas montadas sem a protecção dos piqueiros. Habitualmente pedia quartel (rendia-se) ou… era massacrada. Foto do autor, reconstituição histórica da Guerra Civil Inglesa, Kellmarsh Hall, 2007.

Organização do exército português (5) – Dragões

Existiu apenas uma companhia portuguesa de dragões durante a Guerra da Restauração. Foi formada nos inícios de 1642 e fazia parte do exército da província do Alentejo. O seu primeiro comandante foi António Teixeira Castanho, ex-tenente de uma companhia de cavalos arcabuzeiros, um indivíduo com prévia experiência militar ao serviço da monarquia dual. O tenente era António Banha, referido em algumas Relações de feitos de armas. A partir de 1646, os dragões tiveram sempre oficiais franceses a comandá-los. A companhia não tinha alferes, pois não usava estandarte. Em princípio teria duas caixas de guerra (tambores) em vez de trombetas. Quanto ao resto, seguia a estrutura de uma companhia de cavalos, embora fosse considerada infantaria montada. No entanto, os soldos pagos aos oficiais eram idênticos aos da cavalaria – e portanto, superiores aos da infantaria. O armamento defensivo dos dragões consistia de um colete de couro e o ofensivo de um arcabuz de mecha e uma espada.

Apesar de indicações para que fossem constituídas mais unidades de dragões, nenhuma outra portuguesa tomou forma. Em Março de 1648, a companhia foi transformada em cavalos arcabuzeiros. Na opinião do governador das armas do Alentejo que ordenou essa conversão – Martim Afonso de Melo, Conde de São Lourenço – os dragões serviam pouco e os oficiais faziam a mesma despesa que os da cavalaria. Chegava ao fim a breve história dos dragões na Guerra da Restauração. Como curiosidade, refira-se que a companhia tinha como local habitual de alojamento a vila de Olivença – localidade que aparece, numa época posterior, associada àquele tipo de força militar.

Um procedimento relativamente comum durante toda a Guerra da Restauração era fazer montar em mulas parte da infantaria dos terços – os arcabuzeiros, principalmente, mas também piqueiros e mosqueteiros – para lançar incursões em território inimigo ou acudir a alguma ocasião de maior necessidade. Dois soldados por animal era a “dotação” habitual. No entanto, não devem ser considerados dragões no sentido operacional (apesar de algumas fontes narrativas se lhes referirem confusamente como tal), pois não faziam operações de reconhecimento, emboscadas ou protecção do dispositivo em marcha. Os animais serviam apenas de meio de transporte aos militares.

Quanto a unidades estrangeiras de dragões no exército português, houve 4 companhias holandesas que serviram entre 1641 e 1644. Mas esse assunto será tratado num artigo próprio.

Imagem: “Escaramuça de Cavalaria”, quadro de Philips Wouwerman, c. 1640-45.

Os dragões na Guerra da Restauração: desfazendo um mito

Não é raro ver referências à existência de dragões como um dos dois tipos de cavalaria existentes durante a Guerra da Restauração, sendo o outro os cavalos couraças. Esta confusão entre dragões e arcabuzeiros a cavalo é um dos mitos sobre o período que mais tem persistido, em boa parte pela repetição de erros surgidos em obras de autores dos séculos XIX e primeira metade do XX, como Rebelo da Silva, Fortunato de Almeida e Carlos Selvagem (cujo Portugal Militar é uma verdadeira armadilha para quem o toma como “manual” de História Militar de Portugal).

Acontece que os dragões, nesta época histórica, eram infantaria montada. O seu emprego táctico era diferente da cavalaria: combatiam sempre desmontados, dando cobertura à infantaria e à cavalaria a partir de posições abrigadas (em pequenos bosques, atrás de muros, sebes, em casas ou ruínas, etc.) e emboscando o inimigo. Um dos exemplos célebres da utilização de uma força de dragões emboscada, surpreendendo um dos flancos do dispositivo inimigo, aconteceu na batalha de Naseby em 1645, durante a Guerra Civil Inglesa (o regimento do coronel Okey, do New Model Army de Cromwell). Além disso, ao contrário da cavalaria, estavam armados com arcabuzes de mecha e não com carabinas, o que impedia a sua utilização a partir da sela.

Dois motivos contribuíram para a origem desta confusão. O primeiro radica na origem dos genuínos dragões, surgidos no século XVI como infantaria montada – piqueiros e arcabuzeiros montados em rocins, para lhes conferir maior mobilidade. Os arcabuzeiros passaram a acompanhar regularmente a cavalaria pesada (os lanceiros e mais tarde os couraceiros, sobrevivência da cavalaria pesada medieval) e acabaram por dar origem ao tipo de cavalaria ligeira designada por arcabuzeiros a cavalo. A função táctica e o armamento foram sendo adaptados ao combate montado, e embora os dragões continuassem a ser utilizados, foram remetidos ao seu papel original de infantaria montada, separando-se dos arcabuzeiros a cavalo. Só na parte final do século XVII é que os dragões passaram a ser considerados como um tipo de cavalaria, podendo combater tanto a cavalo como desmontados.

O outro motivo tem origem em algumas fontes do período, onde se patenteiam os confusos saberes (ou melhor, a falta de conhecimentos sólidos) por parte dos conselheiros militares da Coroa portuguesa, logo após a Aclamação de D. João IV. Porventura fruto de leituras mal digeridas de tratados militares do início do século XVII e até do século anterior, o certo é que o projecto de Ordenanças Militares de 1643 preconizava a constituição (anacrónica e confusa) de companhias de lanças, couraças e dragões! Joane Mendes de Vasconcelos, nos seus comentários à proposta das Ordenanças Militares, procurou corrigir o absurdo – tratava-se de um militar com experiência de combate de cavalaria e tinha conhecimento de causa. Foi este general que aconselhou a formação de companhias de couraceiros e de arcabuzeiros a cavalo, esclarecendo que os dragões, conquanto fossem úteis, eram infantaria montada e não deviam, portanto, fazer parte da cavalaria.

O facto é que, durante alguns anos, houve uma companhia (portuguesa) de dragões no exército português e a sua organização era semelhante à das companhias de arcabuzeiros a cavalo. Além disso, houve várias ocasiões em que alguma infantaria dos terços foi montada em rocins e sendeiros, transformando-se assim provisoriamente em… dragões! Mas isso será tema para uma próxima entrada.

Imagem: Parte de equipamento de dragão – capacete, colete de couro, espada, bolsa e bandoleira com frascos. A bandoleira era idêntica à utilizada pelos mosqueteiros e arcabuzeiros da infantaria. Ilustração retirada da obra de P. H. Ditchfield, Vanishing England, London, Methuen & Co. Ltd., 1910.