Um “regresso” a Alcântara

Há cerca de oito anos foi publicado um artigo em duas partes, sobre a tentativa de tomada de Alcântara (Alcántara, em castelhano) pelas forças comandadas por D. Sancho Manuel de Vilhena, que viria a ser Conde de Vila Flor. A tentativa foi gorada, mas o assalto à ponte romana de Alcântara e a destruição parcial de um dos arcos da mesma foi descrita por fontes portuguesas e espanholas. Os combates tiveram lugar nos dias 25 e 26 de Março de 1648 (clique nas datas para aceder aos respectivos artigos).

Trezentos e setenta anos decorridos sobre a investida portuguesa, o aspecto da ponte e dos lugares onde decorreram os combates, observados a partir da margem onde se situa Alcântara, são apresentados nas fotos acima. A ponte seria parcialmente destruída – e mais tarde reconstruída – em outras duas ocasiões: na Guerra da Sucessão de Espanha e durante as Invasões Francesas, que a historiografia espanhola denomina Guerra da Independência.

Fotos do autor do artigo.

A última campanha de Mateus Rodrigues – a reconquista de Mourão, Outubro-Novembro 1657 (4ª parte)

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Os partidos [capitulações] pedidos pelo inimigo eram na maneira seguinte: que a praça se rendia, sendo servido o senhor Joane Mendes de lhe conceder levassem as duas tropas de cavalo que na praça estavam, e levassem todos o seu fato e bastimentos de Sua Majestade; e armas às costas e bala em boca e mecha calada, e que todos os portugueses que (…) lá houvessem ficado quando eles renderam a praça haviam de passar pelo partido de castelhanos, não se lhe fazendo agravo algum, e que querendo eles ficar outra vez na praça ficariam livres como de antes em suas fazendas, e se quisessem ir para Castela o poderiam fazer, e que poderia o seu governador levar uma peça de artilharia consigo, visto o privilégio de ser mestre de campo [o] concedia (…)

Representados estes partidos diante do senhor Joane Mendes de Vasconcelos e do senhor André de Albuquerque [Ribafria], mestre de campo general, e do senhor Dom Sancho Manuel, outrossim mestre de campo general, e do general da artilharia Afonso Furtado de Mendonça, começaram estes quatro senhores do governo, e juntos também alguns mestres de campo e outros oficiais maiores (…) para se deferir, a isto não constava o consentimento, em primeiro lugar do governador das armas e os dos mestres de campo generais, e nestes senhores consistia o deferir-se os partidos. Logo Dom Sancho respondeu que não havia lugar de consertos, pois eles tinham a muralha rota, de modo que se podia entrar nela batalhões de gente e debaixo da sua mosqueteria e com uma mina feita que havia de voar muita parte da muralha por onde pudessem avançar livremente, e que não largavam 80 ou 100 cavalos que lá estavam por coisa alguma; enfim, que Dom Sancho não era de parecer lhe aceitassem partidos. O senhor Joane Mendes, como mais experimentado e visto nestas coisas, e lhe parecer que sempre deferir ao inimigo os seus partidos é razão de Estado e o permite a guerra, agora o serem como eles os pedissem ou não, aí está o ponto. Contudo, respondendo o senhor Joane Mendes (…) que no tocante ao seu governador levar peça alguma, que nisso não consentia, nem tão pouco levarem nenhum género de mantimento, nem de munições d’El-Rei, nem coisa alguma, salvo o seu fato e bagagem de suas pessoas, que para levarem lhe daria todas quantas cavalgaduras eles houvessem mister até dentro de Olivença. (MMR, pgs. 436-438).

 

Imagem: “A capitulação”, de Jan Steen.

 

 

A última campanha de Mateus Rodrigues – a reconquista de Mourão, Outubro-Novembro 1657 (2ª parte)

IMG_1321Na quinta-feira, pelo meio dia, que se contaram 25 do dito Outubro, acabou de chegar todo o nosso exército à roda e circuito da praça, aonde se assentou muito bem entrincheirado. Que na verdade, por ser pouca gente, estava bem preparada e melhor governada, sem falta de coisa alguma, somente o dinheiro não era muito, que para quem o tivesse não lhe faltava tudo quanto por ele quisesse comprar.

Constava este exército de 14 terços de infantaria toda paga, que teriam sete para oito mil infantes, pouco mais ou menos, e muito boa gente, e dois mil e quinhentos cavalos, muito gentil cavalaria, é verdade, que neles entravam seis tropas que vieram da província da Beira, que tudo fazia número de dez mil homens, pouco mais ou menos.

Constava mais de catorze peças de artilharia, a saber: seis meios-canhões de 24 libras e as mais eram pequenas, de campanha, e todos de bronze.

Constava mais de três mil cavalgaduras, que carregavam os mantimentos e apetrechos de guerra. Andavam em os comboios levando mantimentos e coisas necessárias para o exército, que o vinham buscar aos lugares circunvizinhos, que por muito que um exército leva, não pode deixar de haver comboios.

Constava mais de quinhentas carretas que levavam os cavalinhos de pau e outras coisas muitas de apetrechos de guerra e mais de cem carros manchegos.

O nosso exército acabara de chegar ao sítio na quinta-feira pelo meio-dia, estando a praça já atacada do dia e noite antecedente (…). E assim como o exército chegou, se foram entrincheirando bravamente, com um fosso de grande altura [seria mais próprio dizer: de grande profundidade] e por fora ainda os cavalinhos de pau, que é um bravo engenho para reparo da cavalaria do inimigo. E não tão somente era o cuidado de se entrincheirarem, senão por todas as vias se trabalhava com bravo cuidado também nas minas, que uma se fazia para a muralha principal e outra para o contramuro. E na mesma noite se trabalhou tanto nas plataformas da artilharia, aonde ela se havia de pôr, para dali bater a muralha, que quando amanheceu na sexta-feira, 26 do dito Outubro, já seis meios-canhões de 24 libras estavam postos nas plataformas, muito bem cobertas de boa trincheira de muita sacaria de lã e de terra, que não se via da muralha donde o inimigo pelejava mais que as bocas das peças. E no mesmo tempo que eles começaram a jogar da muralha, começaram também a jogar os trabucos das bombas, que não tivemos artifício de fogo que mais dano fizesse ao inimigo (…), porque cada bomba das nossas pesava quatro arrobas [perto de 60 quilos], e mais é, em caindo uma bomba lá dentro na vila, fazia tanto estrago que aonde caía, se era em casa alguma, toda ficava por terra, (…) e as mesmas pedras das casas que as bombas arrasavam, essas matavam e feriam muitos castelhanos, e o que não caía senão em alguma rua ou terreiro, os pedaços que dela saíam, por onde davam, tudo levavam de coalho.

(…) Continuando-se (…) com a bateria das peças, que faziam tanto efeito que todo o exército se estava alegrando, vendo o muito que obravam, (…) assistia o general da artilharia Afonso Furtado de Mendonça, que fazia como grande soldado que ele é, e o tenente-general da mesma artilharia Paulo Vernola (…); assistia mais nesta bateria Dom Sancho Manuel, mestre de campo general (…), e estava também Luís Gomes de Figueiredo, mestre de campo do terço da armada, que é um bravo soldado e o terço é o melhor que há no exército. Vejam bem se estava a bateria das peças mal acompanhada. (MMR, pgs. 429-433).

Imagem: Mourão. Fotografia de JPF.

A última campanha de Mateus Rodrigues – a reconquista de Mourão, Outubro-Novembro 1657 (1ª parte)

IMG_1259A derradeira presença do soldado Mateus Rodrigues no Alentejo ocorreu entre 1657 e 1658, mas deste período apenas deixou uma descrição detalhada da campanha de Mourão. Abandonara o exército da província do Alentejo nos inícios de Fevereiro de 1654, ao fim de quase doze anos e meio de serviço e poucos dias antes da publicação do decreto régio que fixava em oito anos consecutivos o máximo tempo de serviço que um soldado pago devia cumprir antes de ser desmobilizado. Regressado à sua Águeda natal, ali casou, o que devia escusá-lo definitivamente de ser reconduzido ao cenário de guerra. No entanto, regressaria ao Alentejo três anos depois, obrigado pela fome. De acordo com as suas palavras,

(…) ninguém diga deste pão não hei-de comer, por farto que se veja, porque lá vem um ano mau de fome que obriga a comer (…) tudo quanto há. Pois o fim foi (…) que para mim houve tanta fome (…) que me obrigou a que fosse outra vez a ver as ditas guerras, desterrando-me a fortuna um ano inteiro fora de minha casa. (Memorial de Matheus Roiz, pg. 423)

O destaque dado à campanha de Mourão no derradeiro capítulo das suas memórias é justificado pelo soldado de cavalos pela sua afeição a Joane Mendes de Vasconcelos. Desejava assim destacar a “fama, valor e sabedoria” daquele cabo de guerra, logo secundado, na admiração e devoção do autor, pela figura de André de Albuquerque Ribafria.

Olivença e Mourão caíram em poder dos espanhóis no decurso da campanha de 1657. Se a primeira daquelas praças, tomada em Maio, foi uma perda de monta, principalmente pelo impacto negativo no moral (era uma das principais da fronteira alentejana e um dos vértices do triângulo defensivo Elvas-Campo Maior-Olivença), já Mourão – perdida em Junho – se revelou um problema maior para os portugueses. A partir dali, o inimigo fazia incursões nos campos do termo de Monsaraz, rapinando lavouras e gado, aldeias e montes, o que levava muitos moradores a abandonarem os seus haveres e casas, não se sentindo seguros.

Entradas de maior envergadura e alcance levaram a cavalaria inimiga até demasiado perto de Évora. Daí as repetidas queixas e solicitações à Rainha regente, para que ordenasse a reconquista de Mourão e o fim dos sobressaltos. É que sendo a região em redor de Olivença pouco povoada, não dava a perda daquela praça tantas preocupações como Mourão, cuja posse abria caminho ao controlo ou saqueio de vastas e férteis terras.

A Rainha acabou por ordenar a Joane Mendes de Vasconcelos que preparasse uma campanha destinada a retomar a praça. Todo o processo foi mantido em segredo, para que não constasse o verdadeiro objectivo do exército a formar. A partir daqui, sigamos a narrativa de Mateus Rodrigues.

Junta a gente das províncias, como era um terço de infantaria do Algarve muito bom, mas pequeno; e os de Lisboa, um terço novo da Câmara, e o da Armada; e com as tropas da Beira e muita quantidade de auxiliares de todas as comarcas deste Reino, para ficarem de guarnição nas praças, se saiu na maneira seguinte:

Aos vinte e um dias de Outubro, ao domingo à tarde, saiu o senhor Joane Mendes e o senhor André de Albuquerque com a maior parte do exército e com toda a artilharia, que constava de seis meios-canhões de 24 libras e oito peças de 12 libras e trabucos e outros artifícios de fogo.

Chegaram a Vila Viçosa pela manhã, onde fizeram alto até à tarde, donde se puseram outra vez em marcha. E chegando no outro dia pela manhã a Terena, que são duas léguas, mas muito grandes e de muito mau caminho para a artilharia, (…) aí fizeram alto e por decurso da tarde começaram a marchar, chegando à quarta-feira a Monsaraz, que já não fica mais de uma légua de Mourão. E aí se fez alto até de noite, que começou a marchar a carriagem para Mourão.

Tornando agora (…) atrás, digo que Dom Sancho Manuel, mestre de campo general na província do Alentejo, que suposto governa o partido de Penamacor, foi feito por Sua Majestade, na ocasião desta campanha, mestre de campo general, e daí ficou para sempre, (…) que merece como todos o metam na conta, como é o general da artilharia Afonso Furtado de Mendonça, que obrou em seu cargo como adiante se verá.

Digo que Dom Sancho Manuel marchou diante do grosso do exército com seis terços de infantaria e um grosso de cavalaria de 600 cavalos com suas bagagens, e quando o nosso exército chegou a Monsaraz à quarta-feira, já Dom Sancho tinha amanhecido com o seu grosso à roda de Mourão, atacando a praça, de modo que nunca foi possível poder o inimigo lançar fora aviso algum, e alguns que botava, todos lhos apanhavam cá fora. E como o inimigo não via mais que aquele pouco grosso, fazia zombaria dos nossos. Começou a jogar com sua artilharia e mosquetaria, mas com pouco efeito, porquanto os nossos estavam encobertos e não recebiam dano do inimigo, nem o inimigo também recebia dos nossos, porque eles não podiam pelejar em forma até que não chegasse o nosso exército todo junto. (MMR, pgs. 427-429)

Imagem: Monsaraz. Fotografia de JPF.

 

Documentos relativos à defesa de Évora pelo Conde de Sartirana em 1663

Porta de Machede

Na manhã do dia 21 de Junho, quando o Conde de Vila Flor preparava o cerco para a reconquista de Évora, foram interceptados dois correios, um que vinha de Badajoz para a praça com cartas do Duque de San Germán para o Conde de Sartirana, e outro com cartas do dito Conde para o Duque. Na carta de Sartirana (11 de Junho de 1663), este mostrava-se confiante na defesa da cidade; que os seus soldados estavam com bastante ânimo e que o sítio dos portugueses seria a sua ruína. Refere também que expulsou todos os que podiam pegar em armas, os frades moços e os clérigos revoltosos, tanto para se aproveitar dos seus abastecimentos, como para que não gastassem os que o exército tinha. Dá conta da morte, por ferida, de D. Gonzalo de Cordoba. As justiças do povo, e alguns deste, andan finissimos. Refere ainda que corria um boato, ainda que em segredo, que o exército de D. Juan tinha sido derrotado, porém não acredita, seria talvez alguma refrega na retaguarda. Termina afirmando que está pronto a dar a vida para conservar a honra própria e a reputação das armas de Sua Majestade.

A resposta de San Germán, de 13 de Junho, dá conta de um infeliz sucesso que tiveram as armas de Sua Majestade perto de Estremoz, aunque perdimos el recuentro por poca subsistencia de alguna infanteria visoña, el gruesso de infanteria, y toda la caualleria se há retirado a esta plaça de Arronches com muy poca perdida. Sossega Sartirana dizendo que, com o que têm em Badajoz e Olivença juntarão um exército muy grande para avançar sobre o inimigo, pois têm bastante experiência da pouca assistência da infantaria inimiga, em particular neste tempo da ceifa. Incita Sartirana a defender a todo custo a praça, assegurando que D. Juan irá socorrer Évora. Logo a seguir manda o Conde precaver-se para um cerco de muitos meses, ordenando que minore a ração das tropas para somente uma libra de pão e onze onças de carne, e que se pague apenas um real por dia (e só aos que trabalham). Ordena também que se recolha todo o cereal dos arredores e se obrigue os paisanos dos lugares das redondezas a mandar todos os víveres para a cidade, caso contrário a cavalaria deverá destruir e incendiar os lugares. Que os habitantes da cidade sejam expulsos, em particular os que possam tomar armas, e que levem sua roupa, ou se não a puderem transportar, que a deixem em conventos. Só devem permanecer pedreiros, carpinteiros, ferreiros e gente de mesteres que possam servir: boticários, médicos e cirurgiões. Em cada convento só deverão ficar 6 padres com 2 criados, para que cuidem de suas casas e fazendas, devendo entregar todos os víveres excepto os necessários para o seu sustento. Só as monjas deveriam receber o mesmo sustento que os soldados, ficando na cidade apenas aquelas que não tivessem assistência de fora. Apesar de todas estas recomendações, a carta vai deixando transparecer as dificuldades, exortanto a dado passo que, se tudo sair dos limites do possível, passando a extremos de impossibilidade, se sacrifiquem as vidas para fazer um serviço tão grande a Sua Majestade, e adquirir triunfo e glória perpétua.

Fonte: António Álvares da Cunha, Campanha de Portugal pella provincia de Alemtejo, na Primavera do anno de 1663, Lisboa, Officina de Henrique Valente de Oliveira, 1663, pgs. 62-67.

Imagem: Évora – Porta de Machede na actualidade. Fotografia de JPF.

Há 350 anos… Notas sobre a campanha do Alentejo de 1663 – o cerco de Évora, 22 e 23 de Junho

557174Ao dia 22 de Junho, o aproche que se ia escavando nas imediações da porta de Avis chegou bem perto da muralha. E não muito mais afastados se encontravam os que se aproximavam pelo quartel de Machede. A praça estava a ficar em grande perigo, mas os defensores, esperançados no socorro prometido, batiam-se com determinação.

Novo correio de San Germán para Sartirana foi interceptado no mesmo dia. Dizia ter-se perdido a 1ª cifra e mandava a 2ª em envelope com 3 selos. De resto, a carta era um duplicado da 1ª e exortava o Conde a defender a praça até perder a vida, prometendo de novo socorro.

Os espanhóis fizeram nova sortida, quando estavam na cabeça das trincheiras os terços de D. Diogo de Faro, Fernando Mascarenhas e Febo Moniz de Sampaio. Fizeram-no com infantaria e cavalaria, sendo de novo rechaçados pelo tenente-general D. Manuel de Ataíde, com 4 batalhões de cavalos apoiados por infantaria. A todas as operações deste aproche assistia o engenheiro-mor Luís Serrão Pimentel, mostrando com a prática o que havia ensinado com a especulativa. (Cunha, p. 70)

Do forte de Santo António começou o terceiro aproche, em direcção à porta da Lagoa. No sítio do Carmo mandou D. Luís de Meneses colocar uma bateria de 3 peças, que disparava contra aquela porta. Os espanhóis já sabiam da derrota do seu exército no Ameixial (os rumores corriam entre os soldados). Era altura de propor capitulações. Saiu a pedi-las o coronel D. Francisco Franque, mas os termos propostos por Sartirana não foram aceites.

No dia 23, da sua tenda no quartel da Corte, o Conde de Vila Flor escreveu uma carta a D. Diogo de Lima, Visconde de Vila Nova de Cerveira:

Senhor meu, muito devo aos castelhanos que estão em Évora por me ocasionarem a dita de ter a Vossa Senhoria tão perto, e lograr suas novas tão amíude, porque este é o meu desejo, crédito tem esta dívida, eu me acho de cama a que me obrigava grande carga de gota, mas sempre mui são para me empregar no serviço de Vossa Senhoria.

Os inimigos que se acham em Évora resistem quanto podem. Nós os atacamos como mais nos é possível e anteontem lhe assaltámos um forte de 4 baluartes que haviam feito no convento de Santo António, com linha de comunicação à praça, e ainda que o defendiam 400 soldados, o ganhámos com boa fortuna, matando uns e aprisionando outros com o sargento-mor que o governava, com o que nos fica mais fácil a empresa, e espero em Deus se conseguirá em breves dias, para que Vossa Senhoria tenha o gosto de ver a relação do sucesso. Guarde Deus a Vossa Senhoria como desejo. Campo sobre Évora, a 23 de Junho 663. (Biblioteca da Ajuda, cód. 51-VII-46, fol. 199)

Imagem: Assalto à artilharia, óleo de Philips Wouwerman.

Há 350 anos… Notas sobre a campanha do Alentejo de 1663 – de 17 a 19 de Junho

IMG_2822A 17 de Junho começou o Conde de Vila Flor a dividir o exército em dois quartéis para iniciar o sítio. O “quartel da Corte” (ou seja, o que compreendia o comando supremo) alojou em Valbom, quinta dos padres da Companhia de Jesus, pouco distante da muralha contra a porta de Avis. Tratava-se de um lugar coberto de algumas eminências. Neste quartel assistiam os oficiais superiores, com 1.200 cavalos à ordem do general da cavalaria Dinis de Melo de Castro e dos tenentes-generais D. Manuel de Ataíde, D. Luís da Costa e D. Martinho da Ribeira, e dos comissários gerais Duarte Fernandes Lobo e Matias da Cunha; e 5.100 infantes com os mestres de campo Sebastião Correia de Lorvela, Lourenço de Sousa de Meneses, Martim Correia de Sá, Roque da Costa Barreto, Manuel de Sousa de Castro, D. Diogo de Faro, Jacques Alexandre Tolon, Fernão Mascarenhas, Miguel Barbosa da Franca, Febo Moniz de Sampaio e José Gomes da Silva, e o sargento-mor Salvador Freire com o terço de Santarém.

O outro quartel ficou um quarto de légua contra a porta de Machede, numa colina que levanta ali o terreno, e este se entregou ao mestre de campo general da Beira, Pedro Jacques de Magalhães, com 1.100 cavalos à ordem do tenente-general D. João da Silva e dos comissários gerais João do Crato, D. António Maldonado e Gonçalo da Costa de Meneses; e 5.000 infantes dos regimentos ingleses e dos terços dos mestres de campo Manuel Ferreira Rebelo, Bernardo de Miranda, Manuel Teles da Silva (Conde de Vilar Maior), Tristão da Cunha, Francisco da Silva de Moura (comandado pelo seu sargento-mor Manuel de Sequeira Perdigão), Simão de Sousa de Vasconcelos (com o seu sargento-mor Simão de Miranda no comando) e Francisco de Barros de Almeida.

Os dias 18 e 19 foram passados a tratar da forma dos quartéis e disposição das baterias. Ganhou-se um casarão, perto da muralha, lugar capaz para uma bateria, pela acção do capitão João Porsenoost, do terço do mestre de campo Sebastião Correia de Lorvela, com 50 mosqueteiros a peito descoberto. Ganhou-o contra todas as defesas da praça e sustentou-o até se colocar a 1ª bateria, de 5 canhões, contra aquela cortina que compreende as portas de Avis e da Lagoa. Quatro peças disparavam do quartel de Pedro Jacques e batiam contra a muralha que está entre as portas de Machede e Avis.

Imagem: “O outro quartel ficou um quarto de légua contra a porta de Machede, numa colina que levanta ali o terreno (…)”. A fotografia mostra, ao fundo, a elevação a que se refere António Álvares da Cunha, observada a partir do edifício da Universidade de Évora. Foto de JPF.

Há 350 anos… Notas sobre a campanha do Alentejo de 1663 – de 12 a 16 de Junho

modern-impression-of-a-tercio-by-artist-cabrera-pec3b1a-source-magazine-desperta-ferroA 13 de Junho partiu de Estremoz o Conde de Vila Flor com 7.000 infantes, 2.000 cavaleiros e 18 peças de artilharia. Em relação ao exército que havia triunfado no Ameixial, a força que rumou a Évora estava diminuída em 5 terços e 5 companhias de cavalos, devido ao envio de tropas para guarnecer Campo Maior, Monsaraz e Portalegre e às que ficaram em Estremoz. Alojou na ribeira de Tera na noite de 13 e na Venda do Duque na noite seguinte.

A 12 de Junho tinha saído de Aldeia Galega (actual Montijo, na margem sul do Tejo) o Marquês de Marialva, pelo caminho de Évora. Comandava 3.500 infantes em 8 terços (dois deles comandados por sargentos-mores) e 300 cavalos em 4 companhias, além de 4 peças de artilharia. No dia 15 encontrou-se com o Conde de Vila Flor no rio Degebe. À chegada do Marquês fez o exército de Vila Flor as costumadas cortesias militares. Os dois exércitos, que tinham diferentes generais, passaram a formar apenas um, e o Marquês de Marialva cedeu o bastão de comando ao Conde de Vila Flor, que anos antes tinha sido seu subordinado. No final desse dia 15 acampou o exército nas cercanias do convento do Espinheiro, no mesmo local onde anteriormente ficara o exército de D. Juan de Áustria, na sua rota de retirada.

A 16 de Junho o exército português avistou Évora. Dinis de Melo de Castro conduziu toda a cavalaria à ocupação de postos no exterior da cidade, travando algumas escaramuças sem grande oposição por parte do inimigo. Este tratou só de defender o interior da cidade, cujas fortificações estavam todas defensáveis, pois tinham os ocupantes (e os moradores forçados) nelas trabalhado com bastante diligência.

O milanês Conde de Sartirana, apelidado de “Marte de Itália”, defendia Évora com 3.500 infantes em 8 terços, sendo que 4 eram espanhóis, 2 eram regimentos de alemães e 2 eram terços de italianos. O comissário geral do troço do Rossilhão, D. Carlos Tasso, comandava 800 cavalos. Havia 13 peças de artilharia.

A gente da cidade capaz de pegar em armas foi expulsa, incluindo os religiosos, de modo a fazer aumentar os abastecimentos disponíveis.

Imagem: Um terço espanhol em acção (anos 40 do século XVII). Desenho do ilustrador espanhol José Daniel Cabrera Peña.

Há 350 anos… Notas sobre a campanha do Alentejo de 1663 – de 9 a 11 de Junho

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Ao amanhecer de 9 de Julho partiu o general da cavalaria Dinis de Melo de Castro com 1.500 cavalos para o local por onde se retirou o inimigo, a recolher os despojos da campanha. Naquele dia, depois de todos darem graças a Deus pela vitória, começou-se a dar sepultura aos defuntos, que foram 7.033, o que levou António Álvares da Cunha a afirmar que muitos anos há se não viu em batalha na Europa tanto número de mortos (pg. 53). Destes, 1.500 portugueses. Foram imensos os despojos que repartiram entre si os soldados.

Não salvou D. João de Áustria desta batalha mais do que 2.000 cavalos e pouco mais de 500 infantes. A maior parte dos seus cabos foram muitos dias reputados por mortos, porque cada um se salvou por onde pôde, e apareceram em Badajoz dias depois.

D. Jerónimo Mascarenhas refere números diferentes para as perdas espanholas: O número dos soldados [feridos e capturados], bem contra o que publicaram os portugueses em suas relações, não passaram de mil, e quase igual foi o dos mortos, os mais [deles] da infantaria, como se pode coligir de uma mostra que três dias depois se tomou ao exército de Espanha nos campos de Arronches (fl. 37).

Terminadas as cerimónias da vitória, nesse mesmo dia 9 acampou o Conde de Vila Flor com seu exército junto às fortificações de Estremoz, onde permaneceu até dia 13. A notícia da batalha chegou a Lisboa na manhã de 10 de Junho, levada por Jerónimo de Mendonça Furtado. Deram-se graças a Deus em solenes procissões e sufrágios pelos mortos na contenda. Na Casa da Misericórdia fizeram-se as exéquias por todos.

Imagem: Fortificações de Estremoz, junto às quais acampou o exército português após a vitória na batalha do Ameixial. Foto de JPF.

Há 350 anos… Batalha do Ameixial, 8 de Junho de 1663

Não é este o espaço para tratar em profundidade uma das raras e mais importantes batalhas da Guerra da Restauração, sobre a qual decorrem hoje 350 anos. Continuo a trabalhar sobre a campanha de 1663, da qual a batalha do Canal ou do Ameixial (por vezes também recordada como batalha de Estremoz, sobretudo em documentos estrangeiros) constituiu o clímax, mas que não deve fazer esquecer a importância da tomada de Évora – então uma das principais cidades do Reino – por D. Juan de Áustria e a subsequente recuperação da urbe, após novo cerco, pelo exército português. Ao invés da repetição de narrativas de história-batalha respigadas das crónicas coevas, com pouca ou nenhuma investigação arquivística e nenhum esforço interpretativo, como infelizmente se pode encontrar em obras recentes, prefiro deixar maturar um trabalho que esteve para ir para o prelo há uns anos, continuando a ampliá-lo e a problematizá-lo com fontes nunca exploradas e bibliografia espanhola recente. A seu tempo voltarei a este assunto.

Será mais apropriado para o propósito de divulgação deixar aqui os escritos da época, pela pena de António Álvares da Cunha e D. Jerónimo Mascarenhas.

Começo pela narrativa de Cunha (pgs. 42-53, numa transcrição abreviada):

Era a campanha entre a vilas de Estremoz e a do Cano distante uma légua de ambas, não plana, porque quase toda por aquela parte é montanhosa. Ocupou o inimigo com a sua infantaria duas colinas e a pouca planície que havia entre uma e outra. Pelos costados estendeu a sua cavalaria, e a esta fomentavam alguns esquadrões de infantaria, que se formaram nas ladeiras das colinas que caíam para aqueles lados; entre esta infantaria acrescentava o número à vista, ainda que não ao proveito, um esquadrão na reserva, de três mil prisioneiros portugueses que saíram rendidos de Évora, os quais tiveram sempre metidos na Cartuxa, não curando mandá-los para Castela como eram as capitulações a respeito do nosso exercito vizinho.

O exército inimigo mudou a forma devido à falta da gente com que guarneceu Évora, e assim a 1ª linha da infantaria não tinha mais do que 7 esquadrões, o de D. Anielo de Gusmão e D. Luís de Frias tinha o corno direito, seguia-se-lhe o Conde de Escalante, a cujo cargo estava também o terço de D. Gonçalo de Córdova, morto no Degebe. O 3º era o de D. Rodrigo Moxica. O 4º de D. João Henriques e D. Lopo de Abreu. O 5º do Conde de Charni e do Conde de Losestain. O 6º do Marquês de Casin. O 7º de D. António Guindaço e D. Camilo de Dura.

Da cavalaria tinha a 1ª linha do corno direito da vanguarda 20 batalhões, os 4 das guardas dos generais e do tenente-general D. Diego Correa, 5 com o comissário geral D. Miguel Ramona, 5 com o comissário geral D. Luís de Sey e 5 com o comissário geral D. António Montenegro. A 2ª ala deste corno estava à ordem do tenente-general D. Belchior Porticarrero, tinha com a sua companhia 15 batalhões, porque 6 mandava o comissário geral D. João de Novales, 4 D. Josef de la Reatagui e 4 D. João de Ribera. A 1ª ala do corno esquerdo tinha o mesmo número que o direito, com o tenente-general D. António Moreira e os comissários gerais João Ângelo Valador e D. Francisco de Aguiar. A 2ª linha tinha a mesma igualdade que a do corno direito a que correspondia, a cargo do tenente-general D. Juan Jacome Mazacan e do comissário geral D. Hieronimo Garcia. Na reserva, que também tinha cuidado dos rendidos de Évora, estavam 12 batalhões com o comissário geral D. João Cortéz de Linhen.

Oito peças de artilharia em 4 postos coroavam as eminências; a retaguarda do exército cobria inumerável carriagem.

Imagem: Local onde se colocou, em formação de batalha, a maior parte da cavalaria de D. Juan de Áustria, na ala direita do exército, junto ao monte onde estava disposta a infantaria. A foto foi obtida no ponto por onde se estenderia a 1ª linha da cavalaria. As elevações eram, à época, totalmente desprovidas de arvoredo, como aliás ainda o eram no início do século XX. A densa vegetação que hoje cobre o terreno impede que se tenha uma percepção clara do espaço de cerca de 500 metros que separava os dois exércitos – a colina onde se formou em batalha a infantaria portuguesa mal é visível nesta foto, ao fundo, sobre o lado direito. Foto de JPF.

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Pouco diferente sítio coube ao nosso exército, pois sobre ganhar uma colina não eminente às do exército contrário, mas quase igual, se contendeu a maior parte da manhã, e à viva força chegaram a ocupá-la pelas 11.00 do dia o mestre de campo João Furtado de Mendonça com o seu terço, e o coronel James Apsley com o seu regimento. Nesta e nas planícies que se estendem por seus lados formámos o nosso exército sem mais alteração, que por ser a campanha pelo corno direito dele asperíssima, impossibilitando o manejo da cavalaria, se incorporou toda no corno esquerdo, ficando no direito só 5 batalhões à ordem do comissário geral Matias da Cunha. E porque se tinha tirado da 1ª linha para interpolar com a cavalaria o terço do mestre de campo Lourenço de Sousa, que depois ao dar da batalha tornou ao seu posto, puxaram da 2ª para aquele lugar com o seu terço ao mestre de campo D. Diogo de Faro e Sousa.

A mesma dificuldade de terreno achou o inimigo e usou da mesma união da cavalaria, deixando porém com menos número o seu corno esquerdo.

E por ser chegado ao exército o terço do mestre de campo Bernardo de Miranda, depois de o formar o reservou para a sua pessoa o Conde de Vila Flor, para o empregar aonde fosse maior a necessidade, e se incorporou na reserva. Era a crescença do dia, e a calma [grande calor] afadigava tanto aos soldados, que pareceu a todos não começar por então a atacar a batalha.

Estavam os exércitos propícios à contenda, quando D. João de Áustria mandou intimar por um papel aos seus cabos, e que eles o fizeram manifesto aos seus soldados, mostrando-lhe nele a razão que tinham pelejarem com aquela constância que esperava dos corações espanhóis, e como deviam entrar na contenda com as esperanças em Deus, e para que lhes fosse favorável encomendava a todos o interior arrependimento dos vícios, e a exterior satisfação deles, e como a causa era justa, assim esperava de justiça a vitória. Persuadia mais o papel a observância das ordens militares, e algumas não piedosas, pois ordenava se não desse quartel a ninguém na batalha, mais que ao general português [Conde de Vila Flor], dando sinais de sua pessoa, e prometendo premiosa sua prisão.

O que D. João de Áustria fez por um papel, obrou o Conde de Vila Flor por sua pessoa, e a esquadrão por esquadrão assegurou a todos a vitória, e animou à peleja, ainda que foi supérflua esta segunda persuasão, porque cada soldado se exortava a si próprio ao combate; mostrou-lhes a justiça que defendiam para ter propícia a vontade divina; a liberdade que nos usurpavam, para que fosse constante a peleja; os companheiros cativos, para que com ânsia os resgatassem; a campanha destruída, para que com raiva se satisfizesse; os despojos que levavam, para que o desejo os incitasse; as vezes que foram por nós vencidos, para que os desbaratassem com confiança. A estas razões exortatórias se seguiram as ordens militares, e dado o nome, que mais nos podia assegurar a vitória que muitas ordenanças, pois foi o da purissima Conceição da Virgem Santa, nossa padroeira e protectora deste Reino. Valorosa e porfiadamente esperavam todos o sinal da batalha.

Às três da tarde começou o exército inimigo dar mostras de querer retirar-se, e o podia fazer pelo caminho de Veiros a Arronches, deixando o nosso exército pelo lado direito; mas o Conde de Vila Flor entendendo esta resolução, mandou aos generais da cavalaria Dinis de Melo e Manuel Freire, começassem a atacar a batalha, que recebiam mais a ordem como alvitre aos seus desejos, que preceito a suas obediências. Opôs-se o inimigo valorosamente à resistência, e passando os nossos uma pequena sanja, começaram a travar a peleja. Era dobrado o número da cavalaria inimiga, assim foi forçoso que os generais fossem o maior exemplo para os soldados. Assistiam nesta refrega todos os cabos da cavalaria e demais a pessoa do mestre de campo general Pedro Jacques de Magalhães, e todos eram necessários, porque se pelejava pessoa por pessoa, esquadrão por esquadrão, linha por linha.

Não sucedia o mesmo à cavalaria castelhana, porque lhe faltava a pessoa do seu general, que como temos dito, exercia juntamente o posto de mestre de campo general; e enquanto assistia por este ofício à ordem do exército, faltava ao outro no combate da cavalaria, e se quisesse acudir a esta, áquele poderia suceder se desordenasse. Não sei a que attribua isto que seguem os mais dos governos do mundo, julgando um sujeito capaz de muitos lugares e os mais deles encontrados [quer dizer: contrários, em contradição].

Intercalo aqui a narrativa de D. Jerónimo Mascarenhas, vertida para português (o original encontra-se em castelhano):

Marcharam contra os espanhóis, com muito sossego, os seis batalhões [de cavalaria inglesa e francesa, pois foram os primeiros a entrar em acção] referidos, e com a própria gravidade as duas linhas que os seguiam, talvez para não cansar com o trote os infantes das mangas [isto é, as mangas de mosqueteiros e arcabuzeiros que os portugueses intercalaram entre os seis batalhões de cavalaria da vanguarda], e atacando os primeiros a outros tantos batalhões espanhóis do corno direito, que era o mais luzido da primeira linha (pois entravam neles as guardas de couraças e arcabuzeiros do Senhor Don Juan, compostas na maior parte de reformados escolhidos e soldados de satisfação), ao passar das armas de fogo às espadas logo se descompuseram. Culparam alguns da desordem a pouca prática do Marquês de Espinardo, seu capitão, que ainda que procurou luzir os brios do seu sangue e a circunstância de haver começado a militar com aquele emprego, não o pôde lograr senão com feridas mortais e perda de seu cavalo, ficando desbaratadas as suas tropas.

Com a mesma fatalidade e exemplar ao momento que com bem breve intervalo carregou a primeira linha dos portugueses, que seguiam os seis batalhões, toda a dos espanhóis caiu posta em fuga sobre a segunda e a desbaratou completamente. O Duque de San Germán via atónito este mau princípio desde o alto da colina, detrás do esquadrão do mestre de campo Don Anielo de Guzmán, que era o primeiro da vanguarda do corno direito, e querendo-o remediar, despachou de imediato um tenente de mestre de campo general, mandando que um terço só da infantaria italiana, que ocupava a retaguarda, baixasse a deter o ímpeto dos vencedores. E como ele destacou um terço só de um esquadrão que se compunha de diferentes terços, era operação que requeria mais tempo do que o apresto necessitava, voltou o mesmo [Duque de San Germán] a todo o galope para ordená-lo com mais eficácia em pessoa. Mas persuadindo-o a confusão que via de caminho naquelas tropas, que o caso não tinha remédio, tomou sem parar (senão para perguntar por guias) o caminho de Arronches, acompanhando-o o tenente de mestre de campo general Don Luís de Venegas, e alcançando-o pouco depois um mestre de campo e outros oficiais de menor esfera.

Imagem: A mesma colina, vista da planície onde se deu o choque das cavalarias, olhando a partir da ala direita para o centro do dispositivo inicial do exército espanhol. Sobre a esquerda, no alto da colina, estava o Duque de San Germán. Foi por esta encosta que desceu, em confusão, o terço de italianos. Para o lado direito desta foto, numa outra colina, ficavam as posições iniciais da infantaria portuguesa. Foto de JPF.

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Voltando ao texto de António Álvares da Cunha:

Enquanto as cavalarias contendiam tão fortemente, não estava ociosa a infantaria, nem a artilharia que a fazia empregar com todo o excesso o seu general D. Luís de Meneses. Era a 1ª linha muito larga, pela qual razão necessitava de mais cabos que a levassem em ordem, e por isso se encomendou o corno direito dela ao Conde da Torre, que governava a segunda, ficando governando o esquerdo André Furtado, que aquela manhã tinha chegado de Estremoz, para onde o tinha mandado o general na noite de 5, quando o inimigo se alojou no Espinheiro depois do recontro do Degebe, persuadindo-se poderiam os castelhanos ir com algum troço áquela praça, que estava a seu cargo. Em ambas as jornadas o acompanharam o mestre de campo Manuel de Sousa de Castro e Jerónimo de Mendonça Furtado.

Com a sobredita ordem abalou o Conde Schomberg à 1ª linha, e se resolveram os esquadrões a trepar pelas ásperas colinas donde estava formado o inimigo, e começaram pica a pica e corpo a corpo os portugueses a investir, e os castelhanos a defender. E vendo que em largas horas de combate se não conhecia diferença de vitória a favorecer ambas as partes, se abalaram ambas as segundas linhas, e porque a campanha era asperíssima, não conservavam aquela primeira forma estas batalhas, porque chegavam a contender primeiro aqueles esquadrões que acharam menos impedimento nos penedos, para não o acharem nos combates, com o que os esquadrões que governavam o Conde da Torre, que eram dos mestres de campo Sebastião Correia, Lourenço de Sousa de Meneses, Miguel Barbosa da Franca e D. Diogo de Faro e Simão de Sousa. Começaram a coroar a colina em que estava a artilharia inimiga, sendo o mestre de campo Simão de Sousa o primeiro que lhe pôs as mãos, donde saiu ferido de uma rigorosa bala, que quis com o seu sangue este dia esmaltar este sucesso, assim como com o seu voto sempre motivar esta vitória. E porque a 2ª linha castelhana, que estava favorecendo aquela parte, poderia ocasionar algum destroço, a carregou os batalhões que comandava o comissário geral Matias da Cunha, e esta cavalaria, com a infantaria que o Conde da Torre governava, achando pouca resistência na cavalaria inimiga que cobria aquele lado, obrigou a voltar as espaldas aos castelhanos, que os rompeu até à última fileira da sua segunda linha, sem resistir a esta fúria a mesma pessoa do seu generalíssimo, que por vezes se pôs a pé a ser companheiro de seus soldados. Estavam os nossos por esta parte tão avançados, que se enganavam os oficiais castelhanos, e muitos se aprisionaram, mandando por suas as nossas mangas, e um deles se chegou tanto ao Conde da Torre, que desconhecendo-o, o mandava como soldado seu, mas a obediência que esperava, foi contenda em que perecera se se não valera mais dos pés do cavalo, que dos braços próprios. Foi conhecido, e confessado pelos seus por tão grande pessoa, que se dissera neste papel o seu nome, a não se haver já dito a retirada.

Seguiam ao Conde da Torre em todas estas árduas contendas D. Pedro Mascarenhas e o mestre de campo Roque da Costa, já convalescido, cujo terço foi rendido em Évora, e nelas mataram o cavalo a D. Pedro, que entre todo o risco recobrou outro para continuar nos progressos da vitória.

Achou mais resistência a parte que mandava Afonso Furtado, que como tinha o seu lado coberto com a sua cavalaria, só pela frente era o combate. Os mestres de campo que contendiam por aquela banda eram Fernão Macarenhas, Tristão da Cunha, Francisco da Silva de Moura, João Furtado de Mendonça e o coronel James Apsley, que com o seu regimento sofrendo uma carga de um terço de espanhóis, que lhe ficou por frente, com o calor [ou seja: apoio] que lhe dava o mestre de campo Paulo Freire de Andrade com o seu terço, que pela razão sobredita se tinha adiantado da reserva, o degolou todo, sem que nenhum pudesse dar conta do sucesso. Contendiam os demais porfiadamente, e com o favor da nossa segunda, e terceira linha, ganhadas ambas as colinas e a artilharia delas, a mandou logo voltar contra o inimigo o general D. Luís de Meneses, que em toda a parte estava, e começaram a sentir a sua perda dos mesmos instrumentos que traziam para suas vitórias.

Desbaratadas de todo as primeiras linhas da cavalaria com perda considerável do regimento inglês, e com a morte do seu tenente-coronel Michael Dongan, puxou o general Dinis de Melo (que bem mostrou na fúria do combate o valor com que defendia o seu parecer, que foi sempre de que se esse esta batalha, e o mestre de campo general Pedro Jacques de Magalhães, já ferido em uma mão) pelo restante dela, e com valor e constância os meteram na peleja. Estava já ferido mortalmente pela cabeça com uma bala o general Manuel Freire, que lhe havia tirado de todo a fala, e ainda assim com os acenos mandava, e morreu 3 dias depois da batalha em Estremoz (tendo estado na campanha os tendo dias necessários à segurança dela).

Não havia já corpo de cavalaria de uma e de outra parte formado, mais que os batalhões da reserva, que mandava o tenente-general D. Manuel de Ataíde e os comissários gerais João do Crato e Gonçalo da Costa de Meneses, que ficando muitas vezes entre o inimigo, não descompondo nunca a forma, foi sempre ganhando terreno.

As tropas inglesas e francesas, obrando maravilhas, se avantajavam às portuguesas, senão no excesso do combate, na razão da peleja, que se os portugueses pelejavam pela vitória, também defendiam a liberdade, e eles só pela vitória contendiam, e tão bizarramente com o exemplo do Barão de Schomberg e seu irmão [filhos do Conde de Schomberg], nos quais se verificou aquele provérbio, que as águias não produzem pombas.

Obrou esta cavalaria e estes cabos e os fidalgos portugueses que assistiam naquele exército acções nunca vistas em nenhuma batalha, pois repetidas vezes os soldados soltos e desbaratados os encorporavam diante da reserva, e tornavam á contenda; e esta é a razão porque tão pouco número prevaleceu contra quase dobrada gente, pois foi cada batalhão várias vezes novo com multiplicadas forças.

Estava já o dia nas últimas horas quando o general Dinis de Melo, que desde as primeiras da batalha até aquelas estvera sempre diante dos seus batalhões, fazendo pelejar a todos, para concluir de todo com a vitória, ordenou ao tenente-general D. Manuel de Ataíde cerrasse com os três batalhões que conservava, com sete que ainda o inimigo tinha formados. E vendo o Conde de Vila Flor a disparidade do número, mandou o mestre de campo Bernardo de Miranda com o seu terço, conduzido pelo sargento-mor de batalha Diogo Gomes de Figueiredo, a quem havia dito por vezes que aquele terço lhe havia de dar a vitória, que carregasse rijamente aquela cavalaria. O que fez a tão bom tempo e com tão bom sucesso, que as cargas do terço, e a fúria com que o tenente-general os carregou, os obrigou a deixar o campo e a declarar-se a vitória por Portugal, a qual por espaço de meia légua foi aclamando o tenente-general entre os mesmos inimigos. Esta foi a celebrada vitória do Canal, que assim se chamava o lugar donde se conseguiu, tanto antes esperada dos portugueses; na qual os castelhanos perderam toda a sua infantaria, bagagem e artilharia, quarenta bandeiras, vinte estandartes, entre eles o do generalíssimo [D. Juan de Áustria], que um francês valorosamente tomou, apesar de quem o defendia (costumada é esta nação a alcançar estes troféus).

Imagem: Vista para a retaguarda do exército espanhol, a partir da planície (ala direita do exército espanhol, esquerda do português). A extensa carriagem de D. Juan de Áustria seguia pela estrada que serpenteava por entre as elevações que se vêem ao fundo, bem como os prisioneiros portugueses trazidos de Évora, que acabariam por ser libertados na confusão da fuga do que restava das forças invasoras. Foto de JPF.

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Imagem final: O monumento que marca o local onde se travou a batalha, na planície onde chocaram as cavalarias de ambos os exércitos, tal como hoje se encontra. Estando grande parte do terreno de batalha preservado – ou seja, não urbanizado -, é lamentável que não exista sequer um núcleo museológico ou um centro de interpretação.

No entanto, é com imenso gosto que actualizo a informação aqui constante: graças ao empenho pessoal do Dr. Alexandre Patrício Gouveia, da Fundação Batalha de Aljubarrota, os campos de batalha do Ameixial, Montes Claros e Linhas de Elvas foram classificados oficialmente como Património Nacional. Está assegurada assim a sua preservação e decerto surgirão aí, no futuro, os núcleos museológicos a que acima me referi.

Foto de JPF.

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Há 350 anos… Notas sobre a campanha do Alentejo de 1663 – de 5 a 8 de Junho

 

Aelbert_Cuyp_Descanso no acampamento, c1660 Musée des Beaux Arts, Rennes_X

Na noite de 5 para 6 de Junho alojou o exército português sobre as vinhas junto ao Degebe, começando a fortificar a posição, com a intenção de esperar naquele sítio todos os movimentos do inimigo, até chegar a ocasião da contenda. Porém, na manhã de 6 de Junho verificou-se que o inimigo se tinha posto em marcha.

Com toda a rapidez ordenaram Vila Flor e Schomberg que o exército marchasse, cortando pela estrada de Évoramonte, caminhando toda a noite, e a 7 de Junho se alojou diante do inimigo com as costas no rio Tera, que também o exército de D. Juan atingiu. Na manhã de 8 de Junho avistaram-se os dois exércitos.

Imagem: “Descanso no acampamento”, óleo de Aelbert Cuyp, c. 1660, Museé des Beaux Arts, Rennes.

Há 350 anos… Notas sobre a campanha do Alentejo de 1663 – 4 de Junho

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No dia 4 de Junho, Vila Flor e Schomberg ficaram a saber que as tropas enviadas a Alcácer eram já recolhidas e as outras vinham pelo caminho de Montemor, a fim de se desviarem do exército, sendo impossível interceptá-las. Assim, nesse dia foi o exército português tomar quartel a Vale de Gramaxo, da outra parte do rio Degebe, contra Montoito, a 1 légua de Évora, sítio com comodidades para dispor um exército.

 Na tarde de 4 de Junho saiu de Évora o exército inimigo em batalha, nesta forma:

Vanguarda, 9 esquadrões, o 1º a cargo dos mestres de campo D. Anielo de Guzmán e D. Luís de Frias; o 2º a cargo de D. Gonzalo de Córdova e do Conde de Escalante; o 3º ao de D. Pedro da Fonseca e D. Juan Barbosa; o 4º ao de D. Rodrigo Moxica; o 5º ao de D. Ignacio de Alatriva, Rui Pires da Veiga e D. Joseph de Pinóz; o 6º ao Conde de Charni e D. Francisco Franqui; o 7º ao Barão de Carandolet e ao Conde de Losestain; o 8º ao Conde de Sartirana e D. Fabrizio Rosin; o 9º ao de D. Camilo de Dura e D. Márcio Origlia.

A 2ª linha repartia-se em 8 esquadrões. Destes, os comandantes eram: o 1º, os mestres de campo D. Lopo Gomes de Abreu e D. João Henriques; o 2º, D. Diego de Alvarado e Bracamonte e o terço de D. Francisco Tello, que não veio nesta campanha; o 3º de D. Juan de la Carrera; o 4º, D. Baltazar de Orbina e D. Diego Fernandez de Vera; o 5º de D. Francisco de Araújo, D. Gil de Villalva e os franceses de D. Jacques de Gomin; o 6º, Barão de Casestain; e por fim, o do Marquês de Cazin (um dos esquadrões é omitido). Total da infantaria: 15.612 oficiais e soldados.

 Os lados desta infantaria cobriam 20 batalhões por cada costado da 1ª linha, e 19 da segunda. A reserva constava de 12, quatro por cada lado e quatro atrás da bagagem. As companhias das guardas estavam entre as alas da infantaria. No corno direito as de D. Juan de Áustria, no esquerdo as do Duque de S. German. Governava a cavalaria da 1ª ala do corno direito o general D. Diego Caballero de Velásquez, o tenente-general da cavalaria D. Diego Correa e os comissários gerais D. Miguel Ramona, D. Luís de Sey e D. António Montenegro. O corno esquerdo da 1ª linha estava a cargo dos comissários gerais Juan Angelo Valador e D. Francisco de Aguiar, à ordem do tenente-general da cavalaria D. Alexandre Moreira. À 2ª ala do corno direito assistia o tenente-general da cavalaria D. Belchior Portocarrero, com os comissários gerais D. Juan de Novales, D. Joseph de la Reatagui e D. Juan de Ribera. A 2ª ala do corno esquerdo tinha a seu cargo o tenente-general da cavalaria D. Juan Jacome Mazacan e o comissário geral D. Hierónimo Garcia. As reservas estavam a cargo dos comissários gerais D. Carlos Tasso e D. Juan Cortés de Liña. Eram 94 batalhões com 6.300 cavalos. Havia 15 peças de artilharia.

O exército espanhol não fez mais do que avistar o português nos altos do Degebe, em cujas colinas colocou a sua artilharia e quebrou o sossego da noite com os seus tiros.

Fonte: António Álvares da Cunha, Campanha de Portugal pella provincia de Alemtejo, na Primavera do anno de 1663, Lisboa, Officina de Henrique Valente de Oliveira, 1663, pgs. 36-39.

Imagem: “Escaramuça de cavalaria”, óleo de Pieter Meulener.

Há 350 anos… Notas sobre a campanha do Alentejo de 1663 – de 1 a 3 de Junho

 

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O Conde de Vila Flor permaneceu no Alandroal de 25 de Maio até 1 de Junho, tendo incorporado os socorros de Lisboa (sob o comando do comissário geral Gonçalo da Costa de Meneses) e da Beira (comandados pelo general da cavalaria Manuel Freire de Andrade). Foi no Alandroal que tomou conhecimento da força de cavalaria e infantaria enviada por D. Juan de Áustria para Alcácer do Sal. Por isso decidiu partir apressadamemte rumo a Évora, procurando apanhar o inimigo dividido. Segundo a narrativa de António Álvares da Cunha (Campanha de Portugal pella provincia de Alemtejo, na Primavera do anno de 1663, Lisboa, Officina de Henrique Valente de Oliveira, 1663), como a campanha do Alandroal a Évora é capacíssima, marchou sempre o exército em batalha, na forma seguinte; a qual se guardou em todas as marchas, e sò no dia da batalha do Canal [nome pelo qual foi inicialmente conhecida a batalha do Ameixial] se alterou, como referiremos (p. 33).

O exército dividia-se em 20 esquadrões de infantaria e 64 batalhões de cavalaria. Na vanguarda marchavam 18 peças de artilharia de vários calibres com o general D. Luís de Meneses. A 1ª linha constava de 5.000 infantes em 9 esquadrões, que governavam os mestres de campo Sebastião Correia de Lorvela, Lourenço de Sousa de Meneses (Aposentador Mor de Sua Majestade), Miguel Barbosa da Franca, Fernão Mascarenhas, Simão de Sousa de Vasconcelos, Tristão da Cunha, Francisco da Silva de Moura, João Furtado de Mendonça e James Apsley, coronel de um regimento inglês. Esta linha ficou a cargo de Afonso Furtado de Mendonça.

A 2ª linha constava de 3.500 infantes em 8 esquadrões, comandados pelos mestres de campo Pedro César de Meneses, D. Diogo de Faro e Sousa, Jacques Alexandre Tolon (francês), Martim Correia de Sá, Alexandre de Moura, João da Costa de Brito, Manuel Ferreira Rebelo e Thomas Hunt (tenente-coronel do outro regimento inglês). Esta linha ficou sob o comando de D. João Mascarenhas, Conde da Torre e futuro Marquês de Fronteira.

A reserva constava de 1.500 infantes em 3 esquadrões a cargo dos mestres de campo Paulo de Andrade Freire, Lourenço Garcês Palha, Luís da Silva e António da Silva de Almeida.

Cobriam os lados da 1ª linha de infantaria 1.500 cavalos em 30 batalhões, 15 por cada parte. No corno direito estava o general da cavalaria Dinis de Melo de Castro com os seus tenentes-generais D. João da Silva e D. Luís da Costa e o comissário geral Duarte Fernandes Lobo. O corno esquerdo da cavalaria desta linha era comandado pelo general da cavalaria da Beira Manuel Freire de Andrade, com o seu tenente-general D. Martinho de Ribeira e o comissário geral Gomes Freire de Andrade.

A 2ª linha guarnecia o mesmo número, com a mesma ordem. Regia o corno direito o tenente-general da cavalaria D. Manuel de Ataíde e os comissários gerais João do Crato e Gonçalo da Costa de Meneses; e o esquerdo o comissário geral D. António Maldonado.

A reserva era coberta por 300 cavalos em 4 batalhões, comandados pelo comissário geral Matias da Cunha.

 A disposição de tudo estava à ordem do Conde de Schomberg, a quem assistia o sargento-mor de batalha João da Silva de Sousa e os tenentes de mestre de campo general António Tavares de Pina, Pedro Craveiro de Campos e Fernão Martins de Seixas, e reformados do mesmo posto os franceses Clairan e Balandrin.

O Conde de Vila Flor, como cabeça daquele corpo, acudia a toda a parte, assistido pelo sargento-mor de batalha Diogo Gomes de Figueiredo. No mesmo exército iam particulares, como Jerónimo de Mendonça Furtado, D. Pedro Mascarenhas e António Jacques de Paiva, este destinado ao governo de Monsaraz, mas que preferiu seguir com o exército, ajudando aqueles de quem tantas vezes fora companheiro em outras contendas.

Sexta-feira, 1 de Junho: o exército acampa a 2 léguas do quartel do Alandroal, contra o Redondo. Sábado, 2 de Junho: aquartelou no ribeiro de Pardielas, 3 léguas de Évora. Domingo, 3 de Junho: apresentou-se no decantado rego da Várzea em forma de batalha, já à vista da cidade de Évora. Neste ponto se incorporou o mestre de campo general Pedro Jacques de Magalhães, deixando em Campo Maior o terço do mestre de campo Bernardo de Miranda Henriques, que trazia consigo do partido de Penamacor. E porque a este posto se chegou tarde, não pôde o exército passar ao Azambujal do Conde, onde queria alojar naquela noite para cortar a gente que havia de vir de Alcácer, mandada regressar por D. Juan. Houve escaramuças, nas quais carregou com a sua companhia o Barão de Schomberg (filho do Conde de Schomberg), a quem tocava a guarda naquele dia, os batedores contrários, pondo-os em fuga. Toda aquela noite foi rigorosíssima de água, conservando o exército a mesma forma e o mesmo posto (Cunha, pgs. 33-36)

Por seu lado, D. Jerónimo de Mascarenhas refere que D. Juan, antecipando a chegada do exército português, mandara chamar a toda a pressa a Alcácer as tropas de Juan Jacome Mazacan. Porém, por causa da falta de disciplina e dos maus caminhos, não lhe foi possível chegar senão no domingo, bastante diminuída, cansada e dispersa por via da recolha dos despojos dos saques.

Imagem: “A emboscada”, óleo de Philips Wouwerman, in http://www.wouwerman.org

Há 350 anos… Notas sobre a campanha do Alentejo de 1663 – 26 e 27 de Maio

The-Sacking-of-a-Village-largeNo dia 26 de Maio, na sua tenda de campanha, o Conde de Vila Flor escrevia ao Rei D. Afonso VI:

Por carta de vinte e quatro do corrente é Vossa Majestade servido de me ordenar que com o exército de Vossa Majestade tome tal posto junto do inimigo, que com toda a certeza lhe impidamos [impeçamos] os comboios e a retirada, e oferece-me responder a Vossa Majestade sobre este particular, que assim como Vossa Majestade mo ordena acho que convém, acrescento que também é muito conveniente segurar do mesmo posto Vila Viçosa e Estremoz, e que o sítio seja tal que a inclemência do tempo não ocasione fugirem os soldados, e assim me é preciso para conservar o exército arrimar-me [aproximar-me] às praças, tendo sobre o inimigo de dia e de noite partidas de cavalaria para que de todos os seus movimentos me dêem conta, e juntamente as tenho sobre Olivença, que é a praça de donde lhe hão-de vir os seus comboios (se os mandar vir), para que com aviso de uma ou outra parte eu possa pôr-me diante a impedir-lhe uma ou outra coisa, e assim hoje elegerei com parecer de todos os cabos a parte mais conveniente, assim para estorvar os socorros do inimigo e a sua retirada, como para cobrir as praças e assegurar o melhor possível que os soldados não fujam. E perto do inimigo não será possível fazer a eleição do tal sítio, porque seria deixar as praças expostas a que o inimigo pudesse qualquer dela uma noite, levando co  a metade da sua cavalaria três mil infantes à garupa sem disso ter notícia, e seria dar ocasião a fugirem os soldados com os ter ao terreiro do sol, e poderia o inimigo sitiar-me tirando-me os comboios de mantimentos, sem ser obrigado a pelejar comigo, se o não quisesse fazer, porque, ou eu havia de fazer os comboios com todo o exército, ou eles mos romperiam com a sua muita cavalaria. E assim, Senhor, que o que convém é cobrir as praças e conservar os soldados e estorvar os socorros ao inimigo, e levantando-se de Évora pelejar com ele, e tudo isto se procurará fazer do posto que se eleger, para o que deve Vossa Majestade ser servido mandar logo engrossar este exército, com que se supra a falta de cavalaria e infantaria que se perdeu em Évora, pois é infalível que estorvando ao inimigo os comboios, haja de se pôr em marcha (…).

D. Sancho Manuel justificava a sua prudência na condução do exército (e aparente falta de espírito ofensivo) com a necessidade de obter reforços, em particular de cavalaria, em que o exército de D. Juan de Áustria tinha superioridade. Todavia, a estratégia seguida estava correcta, como em breve se veria.

Em 27 de Maio chegaram a Évora as obediências de Arraiolos, Redondo e Viana do Alentejo. Primeiro que estas localidades, veio a de Montemor-o-Novo, o que não obstou a que tivesse sido saqueada. Conforme narrou D. Jerónimo de Mascarenhas, o clérigo que se manteve fiel a Filipe IV de Espanha, na sua obra De la Guerra de Portugal, Sucessos del año MDCLXIII  (aqui vertido para português a partir da versão manuscrita do Arquivo Histórico Provincial de Badajoz, cuja cópia me foi gentilmente enviada pelo amigo Julián García Blanco, a quem aproveito para agradecer mais uma vez):

Por Montemor, vila considerável, e de território igualmente abundante e ameno, se começou a executar esta resolução, facilitando-a a sua distância de apenas quatro léguas de Évora. Havia assistido no seu castelo, durante o sítio daquela cidade, a companhia da dotação da mesma vila, que ocasionou nos moradores o descuido de enviar a tempo os seus deputados ao senhor Don Juan. Porém, depois de rendida Évora, teve a companhia ordem de passar a juntar-se com o exército português, deixando a sua pátria [no sentido de localidade] ao arbítrio de quem era dono da campanha. Marcharam 1.500 cavalos e algumas mangas de infantaria para dar-lhe a paga da sua necessidade, quando os vizinhos, avisados do seu movimento, despacharam pessoas com poderes e instruções para implorar o perdão. Mas apesar de que se vieram de caminho com o comissário geral Dom Miguel Ramona, comandante daquelas tropas, não puderam evitar a perda do seu gado, que consistia em mais de 4.000 cabeças (…). Aproveitou-se a Provedoria da maior parte do gado, que se passou durante alguns dias a dar ração de carne aos trabalhadores das fortificações (…).

Fontes: ANTT, Conselho de Guerra, 1663, Consultas, maço 23; AHPB,  D. Jerónimo de Mascarenhas, De la Guerra de Portugal, Sucessos del año MDCLXIII.

Imagem: “O saque de uma cidade”, óleo de Philips Wouwerman, in http://www.wouwerman.org

Há 350 anos… Notas sobre a campanha do Alentejo de 1663 – 25 de Maio

IMG_2753Neste dia, o exército português comandado pelo Conde de Vila Flor e pelo mestre de campo general Conde de Schomberg encontrava-se no Alandroal. Em conselho, ficou decidido que, enquanto se aguardava pelos reforços enviados de outras províncias, o exército do Alentejo devia limitar-se a cortar as comunicações e os abastecimentos entre a cidade de Évora e a fronteira.

Entretanto, na cidade recentemente conquistada, D. Juan de Áustria tomou conhecimento do dinheiro e material de guerra capturados ao exército português. Pouco antes de se iniciar o sítio de Évora, dera entrada naquela praça o numerário para o pagamento dos soldos do exército, num montante que ascendia a 45.000 escudos (um escudo correspondia a 16 reais de prata, ou 32 de bulhão, em moeda espanhola). Todo este dinheiro caiu nas mãos do exército invasor. Quanto ao material de guerra capturado, a relação dá conta de quatro peças de bronze, mil quintais de pólvora, alguma corda (morrão), duas mil balas para canhão, muito madeiramento e outros apetrechos menores para a artilharia, bem como quantidade de trigo e cevada.

(Uma relação bibliográfica será publicada no final desta série dedicada aos 350 anos da campanha de 1663, que por motivos de força maior não pôde ser iniciada no início deste mês, como eu pretendia).

Imagem: Évora – largo fronteiro à porta de Avis, por onde entrou triunfalmente D. Juan de Áustria em 22 de Maio de 1663. Ao fundo, o aqueduto. Para a direita deste fica o forte de Santo António. Foto de JPF.

Há 350 anos… Notas sobre a campanha do Alentejo de 1663 – de 14 a 24 de Maio

forte Sto António

Chegado às imediações de Évora em 14 de Maio de 1663, o exército comandado por D. Juan de Áustria iniciou as operações de cerco à cidade no dia 17, após se ter apossado do forte de Santo António na véspera. O convento do Espinheiro servia de quartel-general a D. Juan. Évora caiu em poder dos espanhóis em 22 de Maio.

Assinadas as capitulações, D. Agnelo de Guzmán, filho do Duque de Medina de la Torre, foi tomar posse da cidade. Entrou pela porta de Avis e aí, no largo, esperou por D. Juan de Áustria, que ficara no forte de Santo António. O senado, os prelados e os juízes da cidade também ali foram receber o príncipe. Faltou apenas o reitor do colégio, mas instado por dois padres espanhóis, acabou mais tarde por ir ter à presença de D. Juan. De resto, os novos senhores de Évora fizeram os possíveis por cativar as boas graças dos vencidos. O Duque de Eliche presenteou o mestre de campo do terço do Algarve, Manuel de Sousa de Castro, com um riquíssimo telim, pela maneira como defendera o convento do Carmo.

No dia 23, D. Juan de Áustria foi ouvir missa à Sé, tendo sido recebido com toda a solenidade. Terminado o ofício, recolheu-se ao palácio dos Condes de Basto. O exército português encontrava-se em Évoramonte. Foi aí que D. Sancho Manuel, Conde de Vila Flor, e o mestre de campo general Conde de Schomberg tomaram conhecimento da rendição de Évora. No dia 24, enquanto Vila Flor e Schomberg entravam no Redondo com o exército português, D. Juan acompanhava em Évora a procissão do Corpo de Deus.Todos os oficiais do seu exército, bem como os soldados, se apresentaram cuidadosamente vestidos e equipados. Mas o povo da cidade, por temor ou em sinal de resistência, não compareceu nem enfeitou as janelas. Nesse mesmo dia começaram os trabalhos de fortificação da cidade, antecipando um cerco por parte dos portugueses.

Imagem: Forte de Santo António (Évora). Foto de JPF.

Gil Vaz Lobo Freire – herói e vilão

Gil Vaz Lobo Freire, filho de Gomes Freire de Andrade e de D. Luísa de Moura, foi um dos mais incensados nomes do período da Guerra da Restauração. Participou com o seu pai no 1º de Dezembro de 1640, tendo sido um dos nobres insurrectos que procurou no Paço a Duquesa de Mântua, para a obrigar a abdicar do cargo de Vice-Rainha de Portugal. Tivesse a Duquesa o dom da premonição, teria razões de sobra para ficar muito preocupada com o jovem espadachim que lhe saíra ao caminho, cujas atitudes no futuro – durante a Guerra da Restauração – demonstrariam uma profunda indiferença pela vida humana. A par da bravura e valor no campo de batalha, Gil Vaz Lobo (é assim que é referido em quase todos os documentos) deixaria um rasto de crimes, que a sua posição social e influência na Corte conseguiriam, todavia, deixar impunes, livrando-se de condenações que pareciam tão severas como certas.

O nobre beirão cedo iniciou a sua carreira militar. Em Fevereiro de 1642 recebeu a patente de capitão de infantaria, passando a servir em Campo Maior com o seu pai. Em Novembro de 1645 foi promovido a capitão de cavalos, continuando a servir no Alentejo. A par das referências elogiosas às qualidades militares do oficial, surgem alusões ao seu carácter violento e criminoso. Os exemplos que aqui trago dizem respeito ao ano de 1652, onde num curto período Gil Vaz Lobo se viu a contas com a justiça por causa de vários crimes. No início desse ano, um grupo de mulheres de Campo Maior, encabeçado por uma Catarina Gomes, enviou uma carta ao Príncipe D. Teodósio, queixando-se da conduta de Gil Vaz Lobo e de outros militares. Quando, em carta datada de 21 de Março de 1652, o Príncipe ordenou ao mestre de campo general do Alentejo, D. João da Costa, e ao auditor geral do exército da mesma província, que abrissem um inquérito (uma devassa, como então se dizia) aos motivos da queixa, já era tarde demais. No livro de registos, à margem da cópia da carta, surge um acrescento recomendando que se iniciasse uma devassa à morte de Catarina Gomes.

Em Abril já Gil Vaz Lobo se encontrava na província da Beira, onde o governador das armas do partido de Penamacor (ou de Castelo Branco, como também era referido) D. Sancho Manuel pretendia nomeá-lo para o posto de comissário geral da cavalaria. A carta de 20 de Abril propondo o nome de Gil Vaz Lobo, enviada ao Príncipe D. Teodósio e observada no Conselho de Guerra, acabou por trazer à discussão os crimes recentes do oficial, que não se resumiam ao acontecido em Campo Maior. No entanto, os próprios conselheiros pareciam dispostos a fechar os olhos à conduta do capitão de cavalos e inclinavam-se para a aceitação da promoção, deixando à Coroa a última palavra. Segue-se a transcrição da consulta:

Nesta carta apresenta Dom Sancho Manuel a Vossa Alteza a grande necessidade que a cavalaria do seu partido tem de oficial maior que a governe porque, por falta dele, tem sucedido e sucedem muitas desordens com a liberdade que os soldados tomam, e pouco respeito com que procedem por não terem cabo maior a quem temam, arriscando-se por esta causa muitas vezes a mesma cavalaria e a reputação das armas de Sua Majestade e Vossa Alteza quando sucede ir buscar ao inimigo, ou em nossa defensa, ou em ofensa sua. E por todas estas razões pede Dom Sancho à Vossa Alteza se sirva de nomear para o posto de Comissário geral da cavalaria do seu partido a Gil Vaz Lobo porque, por seu valor e pelo conhecimento que tem daquela campanha, e por suas partes merece que Vossa Alteza o honre e lhe faça mercê, porquanto a Dom João Flux [capitão de cavalos alemão], a quem Sua Majestade foi servido de encarregar o governo dela, lhe sobrevieram tantos achaques que está impossibilitado por razão deles para exercitar o governo dela, e incapaz para montar a cavalo, havendo pouco de um ano que o não faz.

Vendo-se em Conselho a carta de Dom Sancho, pareceu fazer presente a Vossa Alteza a resolução que Sua Majestade tem tomado, de que os criminosos, enquanto não estiverem livres dos crimes que se lhe imputam, não possam ser providos em postos. E que Gil Vaz Lobo se livra de alguns crimes no juízo da assessoria deste Conselho em três processos, um deles sobre a morte de um homem sucedida em Estremoz, pela qual está sentenciado em final em pena de cinco anos de degredo para o Brasil e guerra de Pernambuco, e em duzentos mil réis para a parte com pregão em audiência. Esta sentença se não tem tirado do processo até agora, nem executada por não haver parte que o requeira.

Os outros dois processos são sobre o ferimento feito ao corregedor Sebastião Vieira de Matos e morte do seu escrivão; estes estando conclusos a final, se mandou acabar de tirar em Campo Maior certa devassa de outros casos em que também é culpado, e correr folha em Elvas, esta diligência há dias que se cometeu por cartas de Sua Majestade ao mestre de campo general e ao auditor geral em segredo, e até agora se não tem satisfeito a ela, e por se esperar resposta, se não acabam de sentenciar estes dois feitos.

Por ser este o estado em que se encontra o livramento de Gil Vaz Lobo, pareceu também ao Conselho representar a Vossa Alteza que se houver lugar de se poder dispensar no impedimento que Gil Vaz tem (conforme a resolução de Sua Majestade que fica referida) para haver de ser provido em posto, estando criminoso; e Vossa Alteza tiver por conveniente habilitá-lo para ir servir de comissário geral da cavalaria deste partido, será mui bem empregado nele todo o favor e mercê que Vossa Alteza nisto lhe fizer, por o merecer por seu valor e pelo zelo com que tem servido, e também por ter préstimo, experiência e particular génio para ocupar aquele posto. Lisboa 14 de Maio de 1652.  

Entre os crimes cometidos no Alentejo a que a consulta se reporta, um é certamente o que envolveu a morte de Catarina Gomes, e os outros, os que originaram a queixa anterior ao desaparecimento da infeliz mulher. Apesar disso, prevaleceu a influência da poderosa linhagem dos Freires de Andrade, e Gil Vaz Lobo Freire não foi muito apoquentado pelos processos em que estava envolvido. Em Agosto de 1659 foi nomeado governador da cavalaria da Corte e comarcas do Ribatejo, sendo já nessa altura tenente-general da cavalaria da Beira.

Em Maio de 1669, mais de um ano após o final da guerra, Gil Vaz Lobo foi nomeado governador das armas da província da Beira pelo regente D. Pedro (futuro D. Pedro II). Viria a falecer em Castelo Branco em 1678.

Fontes: ANTT, CG, Secretaria de Guerra, Livro 16º, fl. 15; Consultas, 1652, mç. 12, consulta de 14 de Maio de 1652.

Imagem: Jacob Duck, “Mulher e soldados jogando às cartas”.

Uma incursão falhada: Brozas, Março de 1659

Já foram aqui trazidos alguns pormenores da carreira militar de João da Silva de Sousa, iniciada no Brasil em 1639 e prolongada em Portugal entre 1642 e 1668. Um homem corpulento, amante dos jogos de cartas e dados, vaidoso e fútil, mas também bravo soldado, dotado de grande coragem pessoal, que viria a ser, já depois de terminada a guerra, capitão-general de Angola e governador do Rio de Janeiro. Sobre este fidalgo fiz uma resenha biográfica, mostrando-o como exemplo da mentalidade característica do oficial pilhante e depredador da raia (tão vulgar em ambos os exércitos em confronto), n’O Combatente da Guerra da Restauração (pgs. 273-278).

Neste blog foram anteriormente focados, de forma mais detalhada, alguns episódios da carreira de João da Silva de Sousa – a sua desavença com o comissário geral D. João de Azevedo e Ataíde na Atalaia da Terrinha (1647), a captura do tenente-general Gregorio de Ibarra nos campos de Badajoz (Maio de 1652) e uma outra incursão em Brozas, esta bem sucedida (Dezembro de 1652). Aliás, a zona de Brozas era a preferida para as incursões de João da Silva de Sousa – mas a de Março de 1659 não lhe correria de feição, resultando num desastre para as forças portuguesas.

À época, João da Silva de Sousa era comissário geral da cavalaria do Alentejo. O seu superior era o tenente-general Pierre de Lalande, fidalgo francês chegado ao Reino em 1658 e que se batera com galhardia nos cercos de Badajoz e de Elvas (sem que, contudo, tivesse ocasião para confirmar a grande experiência de comando que expressavam as cartas de recomendação que trouxera de França e que levaram a que, precipitadamente, a Coroa lhe atribuísse a referida patente, ultrapassando outros oficias de maior valor e antiguidade. Silva de Sousa convenceu o tenente-general a participar numa das suas já habituais entradas de razia no território do Reino vizinho. Por essa altura governava as armas da província do Alentejo D. Sancho Manuel de Vilhena. É por sua via que chega ao Conselho de Guerra a notícia da fracassada operação, numa carta que abaixo se transcreve:

A esta casa, estando com bem pouca saúde, veio o comissário geral João da Silva de Sousa, a pedir-me lhe desse licença para obrar uma facção, que era armar às tropas do partido de Valença [Valência de Alcântara]. E para que eu lhe concedesse a licença me alhanou todas as dificuldades que se me ofereceram propor-lhe, dizendo-me que lhe mandasse asegurar a ponte de Salor pelo tenente-general Lalande, que também me perseguia com grande instância pela mesma jornada. E que se o inimigo o persentisse por alguma inteligência, que em se incorporar com Lalande não havia nenhum perigo, por terem a retirada certa e segura. E prometendo-me assim o bom sucesso, ordenei ao tenente-general Lalande que ocupasse a ponte de Salor com as tropas de Portalegre e Castelo de Vide, e que daquele posto não saísse senão depois de estar incorporado com João da Silva que havia de ir a ele, e que juntos marchassem com o que houvesse sucedido na volta de Portugal. Marchou João da Silva com as tropas de Campo Maior e de Arronches a fazer a facção, e atravessando as estradas do inimigo conheceram da pista delas os guias e os homens mais práticos [ou seja, experientes] que marchava grosso de cavalaria a esperá-los. Assentada esta resolução do inimigo e conhecida, resolveu o comissário João da Silva ir-se incorporar com Lalande para se retirarem, deixando toda a mais pretensão. E chegando à ponte de Salor, posto nomeado para estar Monsieur de Lalande, não [o] achou nele. Mas antes alcançou, que faltando à ordem que eu lhe tinha dado, se havia metido terra adentro a fazer pilhagem. E suposto que alguns oficiais lhe disseram, ao comissário geral, que seguisse a sua marcha para Portugal, e que deixasse a Lalande por haver faltado à sua ordem, ele tomou por melhor acordo o i-lo a buscar e a socorrer. Incorporados toparam ao inimigo, que os esperava em posto superior. Os nossos elegeram outro em que não estavam mal dispostos, por terem um ribeiro em meio, e com pouco acordo e mau conselho elegeram irem investir ao inimigo, sendo tudo muito contra a ordem que levavam, E como houveram de passar o ribeiro, os colheu o inimigo desordenados, e os carregou e derrotou, ficando prisioneiros o tenente-general Lalande, o comissário geral João da Silva, e os capitães Bernardo de Faria, Francisco Cabral e Dom António de Ataíde. A cavalaria se pôs em retirada às primeiras pancadas, e assim tem entrado nas praças a maior parte dela. E espero em Deus se vá recolhendo quase toda, porque como o choque foi perto da noite, houve lugar para se salvarem todos. Este foi o ruim sucesso destes dois cabos, em que ambos faltaram a tudo o que deviam e a tudo o que lhes foi ordenado, e ao que convinha ao serviço de Vossa Majestade. Mas como nesta província faltam todos comumente às ordens, e não houve até hoje nenhum que se castigasse por este delito, não é de espantar que sendo criados com esta doutrina procurem segui-la e salvar-se nela. Mas são erros estes que Vossa Majestade deve ser servido mandar castigar mui asperamente, tirando os postos aos que não guardam as ordens para que lhe seja castigo, e a outros sirva de exemplo.

Bem quisera dar sempre novas de bons sucessos a Vossa Majestade, mas as armas costumam ser jornaleiras e cada dia mudam de fortuna. Sinto eu ser a minha tão má, que nos últimos dias em que assisto nesta província sucedesse este sucesso. Deus guarde a Católica e Real Pessoa de Vossa Majestade como havemos mister. Vila Viçosa, 13 de Março de 1659.

Este episódio infeliz para as armas portuguesas ocorreu pouco antes da saída de D. Sancho Manuel do governo do Alentejo. Do efectivo de 700 homens e cavalos que partiu para a operação de pilhagem, perderam-se 232 homens, entre mortos e capturados, e mais de 400 cavalos foram tomados pelo exército espanhol. D. Jerónimo de Ataíde, Conde de Atouguia, que substituiu D. Sancho Manuel, disso deu conta ao Conselho de Guerra, fazendo acusações muito graves contra João da Silva de Sousa. Na ocasião do recontro, a cavalaria portuguesa foi posta em fugida sem se fazer cara ao inimigo nem se disparar uma arma de fogo ou dar um golpe de espada.

João da Silva de Sousa conseguiu escapar com a reputação incólume do processo que lhe foi movido, muito por força das amizades com que contava na Corte e no Conselho de Guerra, que interferiram a seu favor e impediram a justiça de seguir o seu curso. Já Monsieur de Lalande seria dispensado do serviço, por decreto de 13 de Maio de 1659, quando ainda se encontrava prisioneiro em Espanha.

Para maior indignação do Conde de Atouguia, que acusara o comissário geral de só querer saber do seu interesse particular, enriquecendo com as pilhagens em detrimento da fazenda real, do exército do Alentejo e dos seus subordinados, João da Silva de Sousa seria promovido ao posto de tenente-general da cavalaria em Agosto de 1659, ao mesmo tempo que o comissário geral italiano João (Giovanni) de Vanicelli. Contudo, Silva de Sousa passou a servir na província da Beira.

Fontes: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1659, mç. 19, consulta de 18 de Março de 1659 e carta anexa de D. Sancho Manuel; idem, ibidem, consulta de 22 de Março de 1659; Cartas dos Governadores das Armas do Alentejo…, vol. II, pgs. 277, 280, 288 e 295-296, cartas do Conde de Atouguia, de 1 e 23 de Abril, 28 de Maio e 2 de Julho de 1659.

Imagem: “Cavalaria em Batalha”, pintura de Adam Frans van der Meulen, 1657.

Postos do exército português (22) – o sargento-mor de batalha

O posto de sargento-mor de batalha foi criado, no exército português, nos inícios de 1663, por insistência de D. Sancho Manuel de Vilhena, Conde de Vila Flor. Foi introduzido desde logo no exército do Alentejo, e os primeiros oficiais que para aquele posto se nomearam foram Diogo Gomes de Figueiredo e Bobadilha (filho) e João da Silva de Sousa.

D. Sancho Manuel argumentou, junto do Conselho de Guerra, a favor da criação do novo posto. A primeira razão que expôs foi a existência daquele posto nos exércitos do Imperador do Sacro Império, a cuja imitação, por se acharem grandes conveniências nestes postos, se tem criado nos de Castela (ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1663, maço 23, carta anexa à consulta de 20 de Fevereiro). A este respeito, recorde-se que ainda antes de 1653 o Marquês de Aytona tinha proposto a introdução do posto de sargento-maior de batalha nos exércitos de Espanha, com autoridade sobre todos os mestres de campo, seguindo uma solução idealizada na Flandres (MOLINET, Diego Gómez, El Ejército de la Monarquía Hispánica a través de la Tratadística Militar, 1648-1700, Madrid, Ministerio de Defensa, 2007, pg.80; o tratado era o seguinte: Discurso Militar proponense algunos inconvenientes de la Milicia destos tiempos y su reparo al Rey nuestro señor por el Marques de Aytona, Valencia, Bernardino Noguès, 1653).

Os motivos para a introdução do posto, porém, eram diferentes. Enquanto o tratadista espanhol procurava solucionar o problema da hierarquia entre os vários mestres de campo envolvidos numa operação, não considerando satisfatória a solução de os submeter ao comando de um general da artilharia ad honorem, já no caso português a questão era mais complexa. Neste caso concreto, tratou-se de  um ataque pessoal ao Conde de Schomberg, que o Conde de Vila Flor receava viesse a ser nomeado mestre de campo general do exército do Alentejo (como efectivamente o foi, por carta régia de 15 de Março de 1663). Na mesma carta em que fundamentava a criação do novo posto, D. Sancho Manuel escrevia: com este posto se escusa o de mestre de campo general, como se vê nos exércitos do Imperador [do Sacro Império], onde o não há, porque servindo os sargentos maiores de batalha às semanas, exercitam o mesmo posto estando às ordens dos generais do exército. Vila Flor não desejava ver Schomberg como seu subordinado no exército do Alentejo. De uma penada, procurou afastá-lo, através da dispensa do mestre de campo general.

Todavia, o resultado prático foi nulo e veio introduzir ainda maior complexidade na cadeia de comando. Não só continuou a existir o posto de mestre de campo general, como os sargentos-mores de batalha iriam ter funções semelhantes aos tenentes de mestre de campo general. Em teoria, um sargento-mor de batalha estaria directamente subordinado a um capitão-general ou tenente-general do exército, ou ao governador das armas – ou seja, ao comandante supremo de um exército provincial; mas na prática, acabava também por estar subordinado ao mestre de campo general.

Imagem: “A morte de Schomberg”. Gravura inglesa representando o fatídico episódio ocorrido na batalha de Boyne (12 de Julho de 1690), onde Schomberg, aos 75 anos, era o segundo-comandante do exército de Guilherme de Orange.

Efectivos da província da Beira, partido de Penamacor, em 1648

Em Setembro de 1648, a propósito da insuficiência de dinheiro para pagamento de todas as forças da província da Beira, o governador das armas do partido de Penamacor (distrito militar – por vezes também referido como partido de Castelo Branco), D. Sancho Manuel de Vilhena, enviou ao Conselho de Guerra uma lista exaustiva dos efectivos de que dispunha. Através desse rol ficamos a conhecer o detalhe das unidades que serviam então no partido de Penamacor.

PRIMEIRA PLANA DA CORTE [mais do que um Estado Maior, era uma lista que abrangia todos os oficiais que tinham o privilégio de receberem em primeiro lugar a mesada destinada à província, mesmo que o que sobrasse não fosse suficiente para pagar aos restantes oficiais e praças das unidades; incluía oficiais sem unidade, mas com patente e privilégio passado por decreto régio, capitães-mores de algumas localidades do partido (mesmo de zonas afastadas da fronteira de guerra), “oficiais de pena”, ou seja, não combatentes, amanuenses, cirurgiões e outros]:

1 governador das armas; 1 tenente de mestre de campo general; 1 ajudante de tenente de mestre de campo general; 1 vedor geral; 1 pagador geral; 2 oficiais da Vedoria e da Contadoria Geral do exército; 1 guarda-livros da Vedoria e Contadoria Geral do exército; 1 ajudante do pagador geral; o mestre de campo Manuel Lopes Brandão; o capitão-mor da cidade de Coimbra; o capitão-mor da praça de Salvaterra [do Extremo]; 1 auditor geral; 1 administrador; 1 físico-mor [equivalente ao médico dos nossos dias]; 1 cirurgião-mor; 2 almoxarifes das armas e abastecimentos da praça de Penamacor; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Idanha a Nova; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Salvaterra [do Extremo]; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Segura;1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Rosmaninhal; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Zebreira; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Proença a Velha; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Monsanto; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Penha Garcia; e uma praça morta [pensão por invalidez] que se paga por alvará régio a Francisco Sanchez Bueço. TOTAL: 26 elementos.

INFANTARIA

Terço do mestre de campo João Fialho

Primeira plana do terço: 1 mestre de campo, 1 sargento-mor, 2 ajudantes do número, 2 ajudantes supranumerários, 1 capitão de campanha [oficial de justiça], 1 furriel mor, 1 tambor mor. TOTAL: 9 elementos.

Companhia do mestre de campo: 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 1 capitão reformado, 3 alferes reformados, 1 sargento reformado [estes oficiais e sargentos reformados serviam como praças, recebendo um soldo inferior ao que correspondia à sua patente se estivessem providos nos respectivos postos; logo que vagassem postos numa companhia, poderiam vir a ocupá-los, tornando a receber o soldo correspondente à patente], 4 cabos de esquadra, 74 soldados. TOTAL: 89 elementos.

Companhia do capitão Paulo Craveiro: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 75 soldados. TOTAL: 87 elementos.

Companhia do capitão Simão da Costa Feio: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 46 soldados. TOTAL: 58 elementos.

Companhia do capitão Simão de Oliveira da Gama: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 67 soldados. TOTAL: 79 elementos.

Companhia do capitão Jorge Fagão: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 54 soldados. TOTAL: 66 elementos.

Companhia do capitão Mateus Álvares: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 45 soldados. TOTAL: 57 elementos.

Companhia do capitão Manuel de Brito: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 50 soldados. TOTAL: 62 elementos.

Companhia do capitão Diogo Freire: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 45 soldados. TOTAL: 57 elementos.

Companhia do capitão José de Oliveira: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 46 soldados. TOTAL: 58 elementos.

Companhia do capitão Manuel Correia: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 51 soldados. TOTAL: 63 elementos.

Companhia do capitão Fernão Monteiro: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 44 soldados. TOTAL: 56 elementos.

Companhia do capitão Domingos da Silveira: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 52 soldados. TOTAL: 64 elementos.

Companhia do capitão Simão Feitor: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 70 soldados. TOTAL: 82 elementos.

Efectivo total do terço do mestre de campo João Fialho: 887 homens (111 oficiais, sargentos e outros, fazendo parte da primeira plana do terço e das primeiras planas de cada companhia; 776 cabos de esquadra e soldados), em 13 companhias.

Companhias soltas de auxiliares (assistindo nas diversas praças da fronteira)

Companhia do capitão Manuel de Araújo: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 1 tambor, 4 cabos de esquadra, 44 soldados. TOTAL: 55 elementos.

Companhia do capitão António Estaço da Costa: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 1 tambor, 4 cabos de esquadra, 55 soldados. TOTAL: 66 elementos.

Companhia do capitão João de Elvas: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 1 tambor, 4 cabos de esquadra, 56 soldados. TOTAL: 67 elementos.

Os oficiais e soldados das duas primeiras companhias, apesar de serem de auxiliares, recebiam o mesmo soldo que os seus congéneres do exército pago, o que constituía uma excepção; a companhia do capitão João de Elvas recebia apenas pão de munição por conta da fazenda real, como estava regulamentado para os auxiliares.

Efectivo total das três companhias auxiliares: 188 homens (21 oficiais e outros; 167 cabos de esquadra e soldados).

CAVALARIA

Por não haver na altura comissário geral da cavalaria naquele partido, toda a cavalaria (constituída inteiramente por arcabuzeiros a cavalo) era governada pelo capitão Gaspar de Távora e Brito. Existia, todavia, uma primeira plana da cavalaria.

Cavalaria paga

Primeira plana da cavalaria: 1 ajudante; 1 capelão mor. TOTAL: 2 elementos.

Companhia do capitão Gaspar de Távora e Brito: 1 capitão, 1 pajem, 1 tenente, 1 alferes, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 47 soldados. Total: 59 elementos.

Companhia do capitão Manuel Furtado de Mesquita: 1 capitão, 1 pajem, 1 tenente, 1 alferes, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 66 soldados. Total: 88 elementos.

Companhia que foi do comissário geral, governada pelo tenente João Colmar: 1 tenente, 1 alferes, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 52 soldados. Total: 62 elementos.

Efectivo total das três companhias de cavalaria paga: 200 homens (23 oficiais e outros; 177 cabos de esquadra e soldados).

Cavalaria da ordenança

Companhia do capitão João Cordeiro: 1 capitão, 1 tenente, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 85 soldados. Total: 95 elementos.

Companhia do capitão Henrique Leitão Rodrigues: 1 capitão, 1 tenente, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 41 soldados. Total: 51 elementos.

Estas companhias recebiam apenas pão de munição e o centeio para o animais, por conta da fazenda real.

Efectivo total das duas companhias de cavalaria da ordenança: 146 homens (12 oficiais e outros; 134 cabos de esquadra e soldados).

O partido de Penamacor contava com 31 “Vigias do Largo” (montados, pois vêm referidos na parte correspondente à cavalaria), destinados dar o alerta de quaisquer entradas que o inimigo fizesse, os quais recebiam 160 réis por dia. Os cavalos deviam ser dos próprios e não recebiam qualquer provimento de cevada ou centeio para os animais nem pão de munição, pois nada consta a este respeito na minuciosa lista mandada elaborar por D. Sancho Manuel.

ARTILHARIA

Plana dos oficiais da artilharia: 1 capitão da artilharia, 1 gentil homem da artilharia, 2 condestáveis da artilharia, 10 artilheiros. Total: 14 elementos.

Como nota adicional, acrescente-se que a lista incluía nas despesas os gastos com 40 prisioneiros castelhanos, que recebiam cada mês um total de 1.200 pães de munição de um arrátel cada, as quantias com despesas secretas (destinadas a espionagem) e correios, e com 22 cavalos desmontados (provavelmente em adestramento para servirem nas companhias), os quais recebiam rações de centeio.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1648, mao 8-B, “Rellação da Gente de guerra, Infantaria, Caualaria e Artilharia, que assiste nesta Prouincia da Beira em o Partido das tres Comarcas Castelo Branco Viseu e Coimbra de que he Gouernador das Armaz D. Sancho Manuel…”, anexa à consulta de 11 de Dezembro de 1648.

Imagem: “Soldados numa aldeia” (1644), pintura de Joost Cornelisz (1586-1666).

O mestre de campo João Fialho

A propósito do mestre de campo João Fialho, acima referido como comandante do terço pago do partido de Penamacor, o leitor JCPort deixou aqui há algumas semanas comentários interessantes sobre aquele seu antepassado, que passo a reproduzir, agradecendo mais uma vez a sua colaboração:

João Fialho, natural de Alenquer, Vila Verde dos Francos, era Fidalgo da Casa Real por serviços prestados na sua acção durante a Guerra da Restauração, no comando de um terço de infantaria na zona fronteiriça do Alentejo [e principalmente na Beira, como é patente].

Conforme biografia incluída nos Livros de RGM – Ordens, nºs 2,7 e 10, na atribuição de duas Comendas na Ordem de Cristo entre 26-06-1644 e 15-02-1669 (S. Miguel do Outeiro e St.a Maria de Almendra), refere-se, na atribuição da Comenda de Sta. Maria de Almendra, que fora Mestre de Campo e Governador de Armas da Província da Beira no impedimento do proprietário [provavelmente por um breve período, como interino, pois não consta nas listas oficiais].

João Fialho teve um filho natural de nome Luís Fialho, que se destacou, como o pai, na defesa fronteiriça do Alentejo, e uma irmã Mariana, que casou com um João Correia (Felgueiras Gayo, título “Salinas”). Desconhece-se se eram filhos da mesma progenitora.

Espionagem e traição na fronteira da Beira, 1651 – o caso do capitão João Cordeiro

Ao capitão de cavalos da ordenança João Cordeiro já foi feita referência a propósito do assalto à ponte de Alcântara. Nascido ou pelo menos criado em Segura, tido como guia experiente, o capitão perdeu-se quando conduzia a força que devia executar o ataque à praça raiana, resultando daí o atraso no início das operações. Em consequência, D. Sancho Manuel mandou-o prender. Mais tarde, esclarecido o caso, o oficial foi libertado.

Quanto a espionagem e contra-espionagem, recentemente foi trazido aqui um exemplo a partir de um documento coevo. O capitão João Cordeiro também esteve relacionado com este campo particular da guerra de fronteira. A tal ponto que aí ficou traçado o seu destino.

Em 15 de Maio de 1651, uma consulta do Conselho de Guerra tratava de um acontecimento ocorrido – presume-se – na praça de Segura. A falta da carta de D. Sancho Manuel, que a consulta apenas resume, não permite saber ao certo. O que se passou naquela distante fronteira foi considerado assunto grave: o governador das armas dava a conhecer a traição que um castelhano da Sarça [Zarza la Mayor] (que por via do capitão João Cordeiro lhe dava alguns avisos, que se lhe pagavam com pontualidade) cometeu, matando o mesmo capitão João Cordeiro. Sendo o caso que, vindo-se este castelhano a descobrir com os seus oficiais [ou seja, a revelar o seu papel de espião], eles o persuadiram a que matasse o capitão João Cordeiro, como fez, e vindo na noite de 4 do presente comboiado pelas tropas inimigas, chegara à porta do capitão João Cordeiro, metendo-se por onde a praça ainda não estava fechada, sem ser sentido das sentinelas por não vir pelas avenidas; e dizendo ao capitão que lhe trazia um aviso para dar a ele Dom Sancho, se apartara o capitão João Cordeiro com ele, e estando sós lhe dera o castelhano um pistoletaço de que logo morreu, pondo-se o traidor logo em cobro, o que pôde fazer porque no mesmo tempo acometeram as tropas do inimigo às avenidas e se tocou arma, com o que teve lugar o traidor de se meter com os seus, que se retiraram ao som de trombetas, como se com sua traição conseguiram ganhar uma província.

Contava assim D. Sancho Manuel, despeitado, o triste fim do capitão da ordenança, de quem havia três anos desconfiara e mandara prender. Pela traição, sugere que o Rei mande que se não dê quartel a nenhum castelhano, e que permita que o próprio D. Sancho possa mandar executar os inventores desta maldade.

Os conselheiros opuseram-se de forma veemente a esta sugestão de D. Sancho, pois não se devia admitir nem praticar tal coisa, por não se usar entre cristãos o não dar quartel. Sugeriram ao Rei que mandasse D. Sancho acabar de cerrar a praça, para que ninguém pudesse entrar sem ser sentido – e se não pudesse ser com muralha, que fosse com trincheira e estacada. Quanto aos herdeiros do falecido capitão, consideraram ser merecedores de receber alguma mercê régia, em virtude de João Cordeiro ter sido um grande sujeito, bizarro e valente capitão.

Uma curiosidade: a título particular, acrescentaram à consulta D. Álvaro de Abranches e Jorge de Melo os seus pareceres, nos quais disseram que os moradores da Sarça são costumados a fazer traições, por onde já tiveram castigo, o que lhes parece que se encomende a Dom Sancho procure fazer o mesmo ao traidor.

Espionagem e contra-espionagem – mas também traições, castigos e vendettas. A fronteira da Beira parece ter sido terreno fértil nestes casos. O historiador Gastão de Melo de Matos, na sua obra Um soldado de fortuna do século XVII (Lisboa, s. n., 1939), narra o episódio de dúbios contornos do então sargento-mor António Soares da Costa, o Machuca, e o triste fim de D. Alfonso de Sande y Dávila. Mas, como costuma dizer Juan Antonio Caro del Corral, isso é outra história.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1651, maço 11, consulta de 15 de Maio de 1651.

Imagem: Pausa dos militares. Pintura de Simon Kick (1603-1652).

Em torno da operação da ponte de Alcântara, Março de 1648 – por Juan Antonio Caro del Corral

Como já vem sendo hábito, o estimado amigo Juan Antonio Caro del Corral achou por bem dar o seu contributo sobre o recente artigo a respeito da operação da ponte de Alcântara. Aqui fica, com os meus agradecimentos, a sua colaboração.

Marzo de 1648 fue buena época para el clamor de las armas en la frontera. Apenas comenzado dicho mes, en la comarca defendida por la plaza de Valencia de Alcántara, hubo una sangrienta disputa en la cual los castellanos perdieron 20 soldados. Para responder aquella agresión, desde Badajoz se formó un grueso de tropa que entre el 15 de marzo y el 21 de abril, corrió la campiña de Elvas y sus alrededores; incluso tuvieron tiempo de subir en ayuda de la Raya norte, dónde el ingenio de don Sancho Manuel, general de la provincia beirense, había planeado un ataque para conquistar la agreste posición de Alcántara y su famoso puente romano.


El asalto al puente de Alcántara comenzó en las primeras horas del día 24 de marzo. Al llegar a su objetivo, las tropas de don Sancho Manuel, que habían salido la noche antes desde la plaza fronteriza de Segura, se situaron al pie del denominado Cerro de las Vigas, en la orilla derecha del río Tajo, haciendo frente al acceso principal del puente. El defensor de la villa alcantarina, don Simón de Castañiza, ya tenía preparadas algunas prevenciones para intentar repeler el ataque, pues durante la noche precedente había recibido avisos de movimientos enemigos en las proximidades. El combate fue muy intenso, perdurando hasta las dos de la tarde del día citado. A lo largo de esta jornada, Castañiza envió peticiones de socorro, primero a las poblaciones más cercanas (Brozas, Garrovillas y Arroyo de la Luz), y en última instancia a Badajoz, dónde la noticia llegó en la madrugada del 25. Desde aquí el gobernador interino al mando, don Alonso Dávila, instó a las principales plazas fuertes de la provincia ayudasen en todo lo necesario para levantar el cerco sobre Alcántara; por otra parte él mismo comenzó a organizar soldada para enviarla a dicho lugar. Mientras tanto, Guislain de Bryas, Marqués de Molinghem, avanzaba desde el norte cacereño reclutando más tropas. Los primeros refuerzos llegaron la misma tarde del 24; pero fue durante los días siguientes cuando llegó la mayor parte de la ayuda solicitada por Castañiza. Además, en la frontera de Ciudad Rodrigo, su gobernador, el capitán Francisco de Rada, organizó algunas correrías para llamar la atención del enemigo, intentado que con esta táctica de desvio los sitiadores abandonasen sus propósitos de tomar Alcántara. En un principio parece que la estratagema tuvo resultado, pues Sancho Manuel retiró a sus hombres; pero fue un falso movimiento pues en la noche del 25 ordenó volver a atacar el puente. En esa madrugada los portugueses lograron ganar la mitad del mismo. Desde esta aventajada posición, a partir del día 26 los atacantes se afanaron en colocar minas para volar la fábrica sobre el río Tajo. Don Simón de Castañiza intentó frenar aquellos trabajos, pero dada la carestía de munición y hombres, espero mejor ocasión. Transcurrieron lentamente tres nuevas jornadas, hasta que al atardecer del 29, habiendo tenido noticia don Sancho Manuel de que el Marqués estaba cerca de Alcántara acompañado de mucha gente de guerra, decidió retirarse definitivamente no sin antes dar fuego a la pólvora colocada en el puente. Reventó de esta forma el primer arco, dejando inutilizado el paso. A la mañana siguiente las tropas llegadas desde Badajoz, comandadas por don Juan de Santano, comprobaron los efectos de la mina, poniéndose de inmediato a arreglar los desperfectos construyendo un levadizo de madera en el lugar que anteriormente ocupará la parte volada del puente. En tanto Molinghem, que también había llegado con su gente, se dedicó a cubrir los vados del Tajo para evitar que los portugueses reiniciaran el ataque. Paralelamente, Sancho Manuel envió a Joao de Almeida a quemar las barcas que transitaban en dicho río. A pesar de que los dos cuerpos de milicia llegaron a verse, no hubo combate.

En cambio sí se planteó escaramuza unos días antes, concretamente el 26, cuando la tropa que desde Badajoz subía en auxilio de Alcántara chocó, en las márgenes del Gévora, con otra de seiscientos caballos lusitanos, cuya misión era cortar citados socorros. Se saldó con victoria castellana; de ese modo Santano pudo continuar sin problemas su camino hasta la villa alcantarina, tal como ya hemos comentado anteriormente.

Sancho Manuel quedo bastante satisfecho de su acción, y aunque no consiguió tomar la plaza, al menos por un tiempo logró que los pueblos situados al otro lado del Tajo, como el caso de Zarza la Mayor, Ceclavín y otros, tardaran en recibir refuerzos. Gracias a ello, salvaguardada su retaguardia, en el mes de junio hizo una entrada en tierras castellanas, logrando arrasar varias aldeas del alfoz cauriense. Ese fue el final de la primera parte de la campaña militar de 1648. Mediado septiembre comenzarían de nuevo las hostilidades.

Pero eso es otra historia.

JUAN ANTONIO CARO DEL CORRAL

Imagem: Soldados do período da Guerra Civil Inglesa; reconstituição histórica em Old Sarum, Inglaterra, inícios da década de 90. Foto de J. P. Freitas.

O assalto à ponte de Alcântara, 25 e 26 de Março de 1648 (2ª parte)

Na madrugada de 26 de Março, uma quinta-feira, D. Sancho Manuel reatou a investida contra a ponte de Alcântara. Duas horas antes do amanhecer, a força portuguesa logrou aproximar-se do objectivo, enganando os sentinelas ao falar-lhes em castelhano, dizendo que eram moradores de Zarza e que vinham pedir socorro, pois que D. Sancho Manuel tinha tomado a vila. Com este estratagema, os homens do terço do mestre de campo João Lopes Barbalho investiram de surpresa a ponte, rompendo três portas, duas estacadas e dois retrincheiramentos com três petardos, e o demais a braço dos infantes, estando de guarnição nelas duzentos e trinta infantes com três capitães e um sargento-mor por cabo, que havendo acudido à defesa com muito valor, não bastou para resistir ao com que os soldados de Vossa Majestade a trataram de ganhar, sobre que pudera dizer grandes encarecimentos, que não faço, porque a poderá melhor significar a consideração de que não era possível ganhar-se tanta fortificação sem demasiado valor, o que experimentaram os castelhanos à custa de muitas mortes, em que entraram pessoas de consideração. (Carta de D. Sancho Manuel).

Os defensores que estavam de guarda retiraram precipitadamente, oferecendo pouca resistência, até ao meio da ponte, onde se juntaram à companhia do capitão D. Rodrigo de Aponte y Zúñiga; recebendo reforços, a força defensora conseguiu parar a investida dos portugueses. De parte a parte houve muitos mortos e feridos, resultantes do encarniçado combate que se travou.

Impossibilitado de avançar mais, João Lopes Barbalho tratou de garantir o terreno já conquistado. (…) [G]anhada a metade da ponte, havendo favorecido muito poder do inimigo, tratou o mestre de campo de se cobrir com trincheiras, em que era noite, por escutar as ofensas que se lhe poderiam seguir, de amanhecer sem estar reparado, maiormente que se não necessitava mais para o intento de derrubar a ponte que o espaço dela que estava ganhada. E assim mandou abrir minas, nas quais se continuaram cinco dias com o cuidado que pedia a matéria, recrescendo no escuro (…) todas as horas socorros de consideração ao inimigo, que para estorvar o intento faziam empenhos que não foi possível conservar o posto sem uma contínua bateria, de que nos resultou perda de 30 mortos e 76 feridos, que recompensou bem o efeito que resultou da mina, que foi arrebentar um arco que tinha de largo cento e cinquenta palmos, e de arco de sessenta, com o que não somente se segue arruinar a Castela uma das maiores obras de seus Reinos, impossibilitar à vila de Alcântara lucro de suas fazendas, impedir à Zarza e aos mais lugares que ficam desta parte do Tejo os socorros que lhe vinham de Badajoz, senão ainda desafogar esta Província dos danos que padecia a este respeito. (Carta de D. Sancho Manuel)

Os alcantarenses tinham recebido reforços de várias partes e de toda a nobreza de Brozas e de Cáceres, mas optaram por não os empregar em operações de contra-ataque devido à duvidosa qualidade dos mesmos. Assim, assistiram impotentes ao derrube do arco da ponte, se bem que um manuscrito coevo, transcrito por Gervasio Velo y Nieto, refere que El daño que el rebelde hizo en el puente no fué tanto como se pensó, porque todo el arco que juzgó volar quedó firme en las claves y solamente de los lados padeció alguna ruina. No ha impedido el paso, antes hoy dice el ingeniero mayor del ejército, que aquí se halla, tiene la cortadura linda disposición para hacerse un puente levadizo, con que quedará más asegurada la defensa de esta plaza y del puente. (Velo y Nieto, pg. 78)

No mesmo manuscrito, elaborado pouco depois do combate, pode ler-se que o número de baixas dos portugueses era desconhecido, e que entre os defensores houve netre 12 e 15 mortos e mais de 300 feridos e queimados, entre eles um sobrinho do mestre de campo D. Simón de Castañiza, caído na ocasião do rebentamento do primeiro petardo português.

Já D. Sancho Manuel termina a sua carta com as considerações finais e as recomendações  dos que mais se tinham distinguido em combate:

E no último dia em que havíamos de dar fogo às minas acabou o inimigo de juntar todos seus socorros, com que fez muito maior número de cavalaria e infantaria do com que eu me achava. E porque me não perturbassem, ordenei ao comissário geral que com trezentos cavalos e cem infantes fosse a impedir-lhe a pasagem do rio Alagão e procurasse queimar-lhe as barcas, o que ele fez com grande bizarria, ocupando o vau e mandando ao ajudante da cavalaria João de Almeida de Loureiro que fosse ao porto das barcas a queimá-las, o que obrou com mui bom sucesso, com o que sem sobressaltos consegui o que pretendia. Estimara ser instrumento para que Vossa Majestade lograra outras maiores facções, se bem esta se deve avaliar por uma das maiores que se tem conseguido depois da feliz aclamação de Vossa Majestade. Nesta ocasião se houve o mestre de campo João Lopes Barbalho com a disposição e valor que as armas de Vossa Majestade têm experimentado de seu talento há muitos anos, assim nas guerras do Brasil como deste Reino, e foi-lhe bom companheiro o capitão António Soares da Costa, ajudante de tenente de mestre de campo general, que foi o primeiro que entrou às portas petardeadas; o capitão Pedro Craveiro de Campos, que nesta ocasião ocupou a vanguarda até ser ferido nela, na qual sucedendo os capitães Filipe do Vale Caldeira e Simão de Oliveira da Gama; que com muito valor pelejaram o ajudante Álvaro Saraiva, que governando uma companhia fez o mesmo; os ajudantes Manuel Machado Caldeira e Domingos da Silveira acudiram com particular satisfação às obrigações de seus cargos, e geralmente o fizeram todos, de maneira que devem ser admitidos em título dos melhores vassalos que logra a Coroa de Vossa Majestade, cuja Católica e Real Pessoa guarde Deus largos e felizes anos, como a Cristandade há mister. Idanha.

Em conclusão, o ambicioso plano de D. Sancho Manuel de Vilhena não pudera concretizar-se na tomada de Alcântara; todavia, restava ao cabo de guerra português demonstrar o seu zelo e  exaltar, do meio-sucesso obtido, um episódio de reputação para as armas régias, como aliás fazia frequentemente. As poucas linhas que dedica à operação o Conde de Ericeira (meia dúzia, literalmente, na edição de 1751, facsimile acessível online a partir de Google ebooks) são demonstrativas do pouco efeito prático que o rebentamento parcial da ponte teve, apesar do que D. Sancho Manuel sugere na sua carta. Mas para a pequena guerra de fronteira, mesmo sem pesar no quadro da estratégia global, foi mais uma ocasião de experiência de combate para as forças envolvidas.

Fontes e bibliografia:

ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1648, maço 8-A, carta de D. Sancho Manuel, anexa à consulta de 25 de Abril de 1648.

ERICEIRA, Conde de – História de Portugal Restaurado, Parte I, Livro X, edição de 1751, pg. 268; obra parcialmente disponível on-line.

VELO Y NIETO, Gervasio – Escaramuzas en la frontera cacereña, con ocasión de las guerras por la independencia de Portugal, Madrid, s.n., 1952.

Imagem: “Trabalhos de fogo”, pormenor de um quadro de 1645, de Joseph Furttenbach, Germanisches Nationalmuseum. Representa um engenheiro de fogos, armado de capacete, coura e com uma rodela para defesa pessoal, bem como o instrumento com que os artilheiros davam fogo à peça, com dois morrões acesos – e que era usado também para os petardos.

O assalto à ponte de Alcântara, 25 e 26 de Março de 1648 (1ª parte)

Em 25 e 26 de Março de 1648, o governador das armas do partido de Penamacor, província da Beira, D. Sancho Manuel de Vilhena, tentou um arrojado empreendimento militar contra a bem fortificada praça de Alcântara (Alcántara, em castelhano). O acontecimento mereceu uma menção não muito extensa do Conde de Ericeira na História de Portugal Restaurado (parte I, Livro X, pg. 268, da edição de 1751, parcialmente disponível on-line). Já no século XX, o historiador espanhol Gervasio Velo y Nieto dedicou ao assalto algumas páginas em Escaramuzas en la frontera cacereña, con ocasión de las guerras por la independencia de Portugal (Madrid, s.n., 1952, pgs. 74-77), embora tenha transcrito erradamente a data do acontecimento a partir de um documento coevo, situando-o em Maio. Este episódio da pequena guerra de fronteira, tão característica do conflito luso-espanhol, permanece hoje praticamente desconhecido. Tivesse sido o resultado favorável às forças de D. Sancho Manuel, a façanha teria sido certamente perpetuada de modo estrondoso. Mesmo assim, sem ter logrado o objectivo inicial, a operação militar não foi deslustrosa, de acordo com a valoração das atitudes militares da época. Por isso, o futuro Conde de Vila Flor enviou a D. João IV um relatório detalhado, se bem que algo confuso na redacção, onde se refere ao “glorioso sucesso” da ponte de Alcântara.

O delinear da operação enquadra-se no pensamento militar típico do período: ausência de uma estratégia concertada com as outras frentes de guerra, desejo de notabilização do comandante em chefe por meio do acrescento da reputação das armas de Sua Majestade (que, em caso de sucesso, poderia traduzir-se numa recompensa pecuniária e no acréscimo da reputação do cabo de guerra, por via das mercês régias), reacção a anteriores actividades de depredação levadas a cabo pelo inimigo através de uma operação punitiva. No caso vertente, D. Sancho Manuel não se limitou a preparar uma acção de pilhagem, mas apontou a um fim mais ambicioso: a tomada de uma importante praça. No cerne da sua resolução também se encontra um traço comum à prática da guerra na Era Moderna – a fraca consistência da informação obtida sobre o inimigo, o que neste caso levou D. Sancho a supor que a operação poderia ser coroada de êxito, como veremos pela transcrição da sua carta.

A preparação da acção dificilmente seria mantida em segredo, pois os efectivos mandados concentrar eram de tal número para aquela parte da fronteira, que não passariam despercebidas ao exército espanhol as necessárias movimentações militares. Foram mobilizados 1.000 infantes: o terço do mestre de campo João Lopes Barbalho, reforçado com 200 elementos do terço do mestre de campo Diego Sanchez del Pozo – castelhano que se notabilizou ao serviço de D. João IV – e 100 auxiliares; e 500 cavaleiros comandados pelo comissário geral Pierre Maurice Duquesne, em 9 companhias. Duas destas eram da ordenança, pois a cavalaria de auxiliares só tomaria forma em 1650, e uma  era do exército do Alentejo, enviada como reforço – a do holandês Manuel Cornellis. No regresso desta companhia ao Alentejo ocorreria o episódio já aqui tratado sob o título “Um crime em Abrantes”. Acompanhava esta força de infantaria e cavalaria um grande número de carros e carretas, com diverso material e o necessário equipamento de fogos (petardos para derrubar as portas da fortificação) e os respectivos engenheiros.

Velo y Nieto refere que era esperada uma operação de envergadura por parte dos portugueses, mas não se sabia qual seria o objectivo. Havia receios que fosse Zarza la Mayor, em vingança de alguns dissabores causados pela cavalaria de Zarza, os montados, semelhantes às companhias de cavalos pilhantes ou moradores de algumas localidades portuguesas da fronteira. Mas Alcântara parecia pouco provável:

La conquista de la misma resultaba en extremo difícil, porque para llegar a sus puertas era indispensable vadear el río Tajo o pasar el puente romano, y ambas empresas ofrecían serios peligros; la primera, porque los accidentes de sus orillas imposibilitaban o dificultaban en extremo el paso de la artillería y demás pertrechos, ya que el terreno que circunda a la plaza es escabroso y casi inaccesible; y la segunda, porque si se aventuraban a cruzar el puente, serían barridos con el fuego de los mosquetes y la artillería. (Velo y Nieto, pgs. 74-75)

A progressão da força portuguesa foi lenta e atabalhoada e o factor surpresa, se é que era possível mantê-lo, logo se perdeu. No entanto, os espanhóis tardaram a acreditar que o objectivo de D. Sancho Manuel fosse a praça de Alcântara. Pensaram que se tratava de uma manobra de diversão até que a evidência os desenganou. Seguiu-se um combate renhido. Passemos à narrativa de D. Sancho Manuel, vertida em português corrente:

Por esta dou conta a Vossa Majestade do glorioso sucesso que Deus foi servido dar às armas de Vossa Majestade nesta Província, por meio dos que nela nos desvelamos pelo real serviço, e foi que resolvendo-me a empreender o que mais convinha à reputação das armas de Vossa Majestade, à quietação desta Província e bem deste Reino, me fui aos 24 para os 25 deste mês sobre a ponte de Alcântara, para naquela madrugada a entreprender, facilitando-me a facção haver alcançado notícias da pouca guarda e apercebimento com que estava a ponte, se bem prevenida de fortificação considerável, que constava de uma estacada forte, a que se seguia uma trincheira de 25 palmos de alto com uma porta mui forte, e a esta se seguia outra ainda de mais consideração, a que sucediam dois retrincheiramentos; e a eles outra estacada com porta, e acabado isto se topava com uma torre que havia no meio da ponte, bem aparelhada no forte para a defesa. Para conseguir este intento levei quinhentos cavalos governados pelo comissário Pedro Maurício Duquesne, que constavam das companhias dos capitães Gaspar de Távora, Manuel Furtado de Mesquita, João de Melo Feio, Dom Francisco Naper, e duas da ordenança, de Henrique Leitão Rodrigues, governada pelo seu tenente Fernão da Guarda, e João Cordeiro, com mais as de Manuel Cornellis e Nuno da Cunha de Ataíde, a cujo cargo vieram estas duas companhias, e sem embargo de seus achaques se achou em tudo com grande zelo. Era a infantaria mil infantes, dos terços dos mestres de campo João Lopes Barbalho, em que marchariam setecentos homens das companhias dos capitães Filipe do Vale Caldeira, Simão de Oliveira da Gama, Manuel de Brito, Mateus Alves, Simão da Costa Feio, Simão Fernandes de Faria, Fernão Monteiro Fialho, Jorge Fagão e a do capitão Diogo Freire, governada pelo seu alferes Per André, e a do mestre de campo governada pelo seu sargento com mais três companhias de auxiliares dos capitães João de Elvas, António Estaco, Manuel Laranjo, e marchavam mais duzentos infantes do terço do mestre de campo Diogo Sanches del Poço, a quem chamei com eles para se achar nesta ocasião; eram dos capitães Paulo de Andrade, Bartolomeu de Azevedo e a companhia de Bernardo Pereira, governada pelo ajudante Álvaro Saraiva. Com esta gente, que me pareceu bastante, me saí da praça de Segura, e em razão de lhe tocar por seu turno, nomeei para o primeiro assalto ao mestre de campo Diogo Sanches com a sua gente, dando-lhe do outro terço a que me pareceu necessária e todos os apetrechos de fogo e engenheiros dele que convinha para a execução do intento, e para sua guia ao capitão João Cordeiro, pessoa que por se haver criado na praça de Segura, era mais prático naquele distrito. E nesta conformidade, dando ao mestre de campo a gente que lhe tocava para a facção, o despedi pelo caminho mais oculto por onde se poderia avizinhar a ponte. E eu com o resto do que me ficou, segui via direita a emboscar-me junto a ela, donde havia de arrebentar [ou seja, aparecer], tanto q se petardeasse a primeira porta. Mas sucedeu muito ao contrário do que se podia imaginar, e foi que João Cordeiro, nas duas léguas que há de distância de Segura [a] Alcântara, gastou toda a noite sem acabar de chegar, a cuja causa o tenho prezo por me parecer não podia ser sem culpa sua, e vendo eu que por ser já claro dia se ia perdendo a facção, mandei investir a ponte pelo mestre de campo João Lopes Barbalho, parecendo-me que não podia Diogo Sanches estar tão longe que às primeiras cargas não chegasse com os petardos e mais aparelho de escalar, com o que por esta via se poderia remediar a falta que com sua tardança se seguia. Mas nem por esta via se conseguiu por esta vez a facção, porque havendo o mestre de campo Diogo Lopes Barbalho petardado a ponte, e não entrando só por falta de instrumentos, chegou Diogo Sanches com eles a tempo que o inimigo estava refeito, em razão de haver tido mais de duas horas para se poder prevenir, com o que querendo Diogo Sanches avançar, lhe deu uma pelourada de que está fora de perigo; feriram mais ao capitão Manuel Correia de Mesquita com um mosquetaço, de que morreu, havendo procedido com muito valor; também se deu outro ao sargento-mor Manuel Pinto, que se houve na mesma conformidade, e outra em o capitão Paulo de Andrade. E por ver que não estava já a facção capaz de se lograr me tornei a retirar à praça de Segura, onde me ofereceu à consideração impossíveis para o intento o tornar a conseguir, em razão de haver entrado ao inimigo socorro (…) (carta sem data, anexa à consulta de 25 de Abril de 1648, na véspera do nascimento do infante D. Pedro, futuro D. Pedro II – ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1648, maço 8-A)

Segundo um documento da Biblioteca Nacional de Madrid, citado por Velo y Nieto (e no qual a força portuguesa de infantaria é ampliada para o triplo: 3.000 homens), habiendo avanzado el Maestre de Campo, Diego Sánchez, a una de las puertas de aquel puesto con el más florido de un tercio, lo rechazó matándole cuatro o seis, y entre ellos un alférez vivo, y el mismo Maestre de Campo se retiró herido y con él la manga que abía avanzado, que por haberse descubierto a las defensas que tiene el puente, recebió mucho daño y por esta causa dejó  de avanzar la otra manga por la puerta de San Lázaro. (Velo y Nieto, pg. 75)

D. Sancho Manuel retirou para Segura, mas os defensores de Alcântara recearam que o exército português fosse atacar Zarza la Mayor, pelo que foram para ali enviados reforços de Ceclavín e outras localidades. Todavia, no dia 26 estava de novo o exército português sobre a ponte de Alcântara.

(continua)

Agradeço ao estimado amigo Juan Antonio Caro del Corral a disponibilização da obra de Velo y Nieto, de que me socorri para compor este pequeno artigo.

Imagem: A praça de Alcântara, sendo visível a ponte onde se travaram os combates. Planta publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

Alguns dados biográficos de D. Sancho de Monroy, mestre de campo do exército espanhol – por Juan Antonio Caro del Corral

Al hilo de lo referido en el artículo sobre el encuentro de Moraleja en marzo de 1650, y tomando como principal consecuencia del mismo la muerte de dº Sancho de Monroy, quien comandaba las tropas castellanas derrotadas y, además, ejercía el mando militar de toda la zona (española) fronteriza dónde se libró la batalla, queríamos añadir un breve comentario biográfico acerca de citado personaje, mediante el cual se entiende la satisfacción mostrada por los soldados portugueses, especialmente su comandante, dº Sancho Manuel de Vilhena (futuro Conde de Vila Flor), al saber la noticia del fallecimiento. Vayamos, pues, a esa cita:

ALGUNOS DATOS BIOGRAFICOS DEL MAESTRO DE CAMPO, DON SANCHO DE MONROY

Los datos extraídos de su Hoja de Servicios, indican que Sancho comenzó su exitosa carrera militar en torno al año 1636; al menos en tal fecha se le nombra con cargo de capitán de una compañía de infantería española de picas y otra de caballos lanceros, ambas pertenecientes al ejército desplegada en las provincias flamencas. Allí estuvo durante tres años, comenzados a contar desde el referido 1636, hasta el día 11 de enero de 1639, en el cual recibio licencia. En ese tiempo se halló en la recuperación de las plazas francesas de Armont y Velamont, así como en el sitio impuesto a la villa gala de Maguz. Una de sus acciones estelares ocurrió la noche del 21 de junio de 1638, dónde fue en socorro de las compañías que habían partido en vanguardía para conquistar el fuerte y dique de Calo. Se situó en primera línea de combate, resultano herido en el brazo izquierdo a consecuencia de un certero mosquetazo; pero insistió en seguir dando pelea, hasta que nuevamente recibió en el mismo miembro otro disparo, cayendo definitivamente al suelo teniendo entonces que ser desalojado. La gravedad de las heridas fue motivo de que le amputasen el brazo mencionado. Regresado a España, fue premiado con 80 escudos de sueldo al mes (merced real concedida el 20 de febrero de 1640). Tras haber servido algunos meses en el frente catalán bajo órdenes del Marqués de los Velez, y habiendo sido otra vez licenciado para descansar, volvió a empuñar las armas en el recien creado Ejército de Extremadura. Aquí obstento el puesto de Maestro de Campo de un tercio de infantería castellana, el cual ubicó sus cuarteles en la ciudad de Badajoz desde el 16 de agosto de 1643 hasta 11 de enero de 1646 (28 meses y 26 días en total), fecha en la que se reformó su compañía. Entre los sucesos que contaron con su presencia fue de notar la batalla de Montijo, dónde el resto de compañeros y oficiales concluyeron que jugo un papel destacadísimo para que el bando castellano obtuviera el triunfo (sobre el desenlace del combate actualmente hay opiniones diferentes: para unos resultaron vencedores los españoles, para otros fueron los portugueses) dado que con su tercio y la colaboración del que comandada dº Juan Bautista Pignatelli, rompieron uno de los escuadrones lusitanos, poniéndolos en fuga. El propio Sancho de Monroy logró atrapar a Francisco de Almada “… agarrandole por las gresas…”. Tras aquel combate, y por lo bien que se había comportado, el monarca español Felipe IV decidió no reformar el tercio liderado por Monroy, siendo éste el único que se libró de aquella reestructuración. Luego de 1644 pasó don Sancho a pelear en la defensa de Badajoz y también en la de Jeréz de los Caballeros, por tener avisos el Conde de Santisteban (máxima autoridad del ejército extremeño)de que los portugueses hacían intención de tomarla. Poco tiempo después, el Marqués de Molinghen le llamó para acudir a dar batalla frente a los muros de San Alexo y Safara; e igualmente obraron el Marqués de Torrecuso y el de Leganés, bajo cuyas órdenes lucho Monroy en los encuentros de Elvas, puente de Olivenza, fuerte de San Juan y Telena respectivamente. Las siguientes noticias que hemos recopilado sobre la azarosa vida de nuestro personaje, nos situan en 1648, dónde Sancho parece que ya esta al frente de la jefatura del partido de Alcántara. Desde ese momento sera protagonista de varias escaramuzas libradas en pueblos de la zona aludida, ganándose el respeto, como afamado militar y digno rival, en palabras de dº Sancho Manuel. Tras su muerte, acaecida la noche del 23 de marzo en la pelea junto a Venta del Caballo (punto intermedio entre Zarza la Mayor y Moraleja, su esposa viuda, Josefa Andrea de Aldana, solicitaba un reconocimiento (“… lo mataron los portugueses a sangre fría teniéndolo prisionero…”) pues ella había quedado en un estado de gran precariedad y pobreza, habiendo perdido no sólo a su marido, sino que con él gran parte de su hacienda, teniendo ahora que afrontar muchas deudas.
Para terminar digamos que el nombre completo de nuestro protagonista fue Sancho de Monroy y Guzmán Zúñiga y Enríquez de Guzmán. Nació en la localidad cacereña de Monroy, siendo uno de los miembros del linaje del mismo nombre. Su probada nobleza e hidalguía le fue confirmada poco antes de morir, concediéndosele el hábito de caballero de la Orden Militar de Alcántara.

Imagem: Piqueiros e mosqueteiros formando em batalha – ou seja, compondo um esquadrão. Foto de J. P. Freitas, em Kelmarsh Hall (Inglaterra), durante uma reconstituição de um combate do período da Guerra Civil Inglesa.

Os antecedentes do combate de Moraleja (23 de Março de 1650), por Juan Antonio Caro del Corral

A propósito do artigo recentemente aqui colocado sobre o combate de Moraleja, o estimado amigo e investigador Juan Antonio Caro de Corral inseriu um comentário que, em si mesmo, é um interessante artigo, que completa e esclarece o anterior por mim publicado. Por esse motivo, e com a devida vénia, aqui lhe dou o devido destaque:

Muy cerca de dicha plaza de armas portuguesa – que era el cuartel principal de esta zona fronteriza – se situaban, en el lado extremeño, dos localidades de igual importancia: Moraleja y Zarza la Mayor.


De ambas solían partir las milicias que se internaban en Portugal a saquear. Por dicho motivo, don Sancho Manuel lanzaba, siempre que podía, ataques para contrarrestar tales entradas.

La orografía del terreno era muy propicia para llevar a cabo emboscadas, que era la táctica más usual empleada por los militares, con el fin de obtener un mayor benefício con un coste mínimo.

Con tales precedentes, ya en los inicios de febrero tuvo lugar una escaramuza en un lugar situado a medio camino entre las citadas Zarza y Moraleja, llamado Ventas del Caballo, escondido entre la Sierra de la Garrapata, límite natural de los términos municipales de sendas localidades.


Los hombres de Sancho Manuel consiguierón excelente botín, lo que propició una respuesta castellana; precisamente el ataque a las proximidades de Penamacor, en el cual murieron los dos oficiales que cita el artículo de Jorge P. Freitas, y que aparece como cabecera de este breve comentario.

Tras dicha cabalgada, y sin apenas tiempo para descansar, se produjo una nueva operación militar. Esta vez se trato de una acción a modo particular, protagonizada por un soldado de Zarza la Mayor que respondía al nombre de Juan Martín Garrido. Sin contar con apoyos, trabó combate con un grupo de caballería portuguesa que realizaba un reconocimiento de vigilancia en los alrededores de Salvaterra do Extremo, localidad rayana muy próxima a Zarza la Mayor. Logró arrebatarles varias monturas, regresando a su cuartel muy satisfecho.

Como otras veces anteriores, Sancho Manuel dispuso una salida de represalía, que fue abortada por el capitán extremeño Fernando Alonso Torobico, quien parapetó en Zarza más de 400 infantes.

Insitió el empeño del general lusitano, y fue entonces cuando se produjo el combate de Moraleja, durante la noche del 23 de marzo, volviendo a ser escenario del suceso el paraje de las Ventas del Caballo.


La noticia de la derrota castellana fue muy bien aprovechada y publicitada por el bando portugués. No en vano, entre los soldados caídos, se encontraban varios oficiales que se habían distinguido por su eficacia en escaramuzas anteriores, causando graves daños a los pueblos lusitanos de la frontera beirense. Entre los muertos estaba el capitán zarceño Juan Montero Polán, uno de los más destacados de las milicias populares de la localidad, comunmente llamadas Montados de Zarza (un escuadrón semejante a los caballos pillantes portugueses)y, como no, la muerte más aplaudida (y llorada) fue la del oficial al mando, don Sancho de Monroy, de ilustre familia con mucha historia militar a sus espaldas. Dicen las viejas crónicas que el combate de aquella madrugada fue tan sanguinolento, que a varios de los muertos les cortaron posteriormente las orejas.

Apenas se dió la alarma de lo sucedido, toda la comarca se puso en defensa, pensando que los portugueses, animados con su victoria, continuarían su avance demoledor.

Gracias a los socorros enviados, desde la plaza de Alcántara, por el maestre de campo don Simón de Castañizas, a los que se sumaron los vecinos de pueblos cercanos (unos 150 jinetes), se logró detener a la tropa de Sancho Manuel.

Más tarde se reanudarían los ataques recíprocos, pero eso es otra historia.

Como nota final, comentar que existe un folleto propagandístico de lo sucedido. Se titula de la siguiente manera:
Relaçam da insigne Vitoria que o Gouernador das Armas D. Sancho Manoel alcançou dos caftelhanos en que foi morto, Don Sancho de Monroy feu Gouernador das Armas.

Imagens:

Em cima, vista de satélite das localidades de Moraleja (canto superior direito) e Zarza la Mayor (em baixo) na actualidade, a partir do programa Google Earth; a amarelo, a fronteira hispano-portuguesa.

Em baixo, reprodução parcial de Le Portugal, exemplar de cartografia francesa dos inícios do século XVII. Note-se, na parte superior direita deste pormenor do mapa, a localidade de “Moralexa”, ou seja, Moraleja. Biblioteca Nacional de Lisboa, Cartografia, CC1777A.

O combate dos campos de Moraleja, 23 de Março de 1650

Assistindo D. Sancho em Viseu, vieram os Castelhanos com trezentos cavalos correr a campanha de Penamacor. Saiu desta praça o mestre de campo João Fialho com o seu terço, e o capitão de cavalos Manuel Furtado com sua tropa. Adiantou-se este da infantaria intempestivamente; investiram os Castelhanos, mataram-no logo, e ao ajudante da cavalaria Francisco de Figueiredo. Acudiu João Fialho, retiraram-se os Castelhanos, e foram os dois mortos geralmente sentidos por haverem servido com grande valor e satisfação.

(ERICEIRA, Conde de, História de Portugal Restaurado, edição on-line (facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro XI, pg. 338 – citação vertida para português actual)

Este trecho publicado pelo Conde de Ericeira na História de Portugal Restaurado serve de introdução ao combate dos campos de Moraleja, pois que a incursão espanhola que custou a vida aos dois oficiais portugueses provocou uma resposta por parte de D. Sancho Manuel de Vilhena, então governador das armas do partido de Penamacor. O resultado da operação de desforra foi superior ao inicialmente pretendido, uma vez que nos combates entre as duas forças inimigas – tão característico da longa guerra de baixa intensidade travada nas fronteiras – acabou por perder a vida D. Sancho de Monroy, galhardo e experiente militar espanhol, governador das armas do partido de Alcântara. Como sempre, D. Sancho Manuel não perdeu tempo em enviar para o Conselho de Guerra um relatório com a sua versão dos acontecimentos. Esta era uma forma muito usual do futuro Conde de Vila Flor mostrar os seus serviços à Coroa portuguesa, num misto de auto-propaganda e dever de ofício, tendo sempre no horizonte a almejada recompensa pelo zelo demonstrado. Ainda que pouco significativos fossem os combates, se a sorte das armas pendesse para as hostes lusas, aí estava célere D. Sancho Manuel de pena em punho, passando ao papel os momentos de ferro, chumbo e pólvora. Com esta prolixidade, os arquivos respeitantes ao Conselho de Guerra contêm um manancial de informação sobre os combates da fronteira da Beira, em boa parte (mas não na totalidade) aproveitados pelo Conde de Ericeira para compor a sua monumental obra.

A versão dos acontecimentos passados em 22 de Março de 1650, nos campos de Moraleja (distrito de Cáceres), durante os quais perdeu a vida D. Sancho de Monroy, é aqui trazida através da transcrição para português corrente de uma carta de D. Sancho Manuel, datada de 25 de Março e anexa à consulta do Conselho de Guerra de 4 de Abril de 1650 (ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1650, maço 10):

Relata esta carta a Vossa Majestade o mais feliz sucesso e a maior vitória que as armas de Vossa Majestade alcançaram nesta Província desde sua feliz aclamação a esta parte.

Já avisei a Vossa Majestade como o inimigo na campanha desta praça matou ao capitão de cavalos Manuel Furtado de Mesquita e ao ajudante Francisco de Figueiredo, e como estes dois cabos eram pessoas de opinião e bom procedimento no serviço de Vossa Majestade, foram suas mortes mui sentidas e mais por serem mortos a sangue frio, ficando por minha conta a satisfação deste empenho, que procurei como abaixo digo.

Alcancei, por confissões de algumas línguas, que o inimigo estava com seis tropas de cavalos na sua praça da Moraleja, aguardando que a cavalaria deste partido fizesse alguma entrada por aquela parte, por ser mui cómoda para atalhar todas as entradas na sua campanha. E como me constou esta certeza, tratei de de mandar àquela praça um troço de gente capaz de poder chocar com a que o inimigo se achava, como em efeito mandei em 22 deste [mês],ordenando ao mestre de campo João Fialho que com quinhentos mosqueteiros, que tirei das guarnições das praças, pagos e auxiliares, ocupasse o posto da Venda do Cavalo, sítio que tem grandes conveniências para infantaria, e com duzentos cavalos da mesma qualidade, que constam das três tropas pagas e três da ordenança, ordenei ao capitão Gaspar de Távora e Brito que fosse à campanha da Moraleja, onde as tropas do inimigo alojavam, e que tocando-lhe armas, pegando-se no que se achasse sem fazer demora nem lançar partidas ao largo, se tornasse a retirar onde o mestre de campo o aguardava com a infantaria, e que ali fizesse alto e desse penso [ou seja, a ração] à cavalaria, esperando pelo inimigo que se havia de ver marchar de meia légua de distância [cerca de 2,5 Km]. E assim sucedeu como eu o podia desejar, porque tomando o inimigo a vista da nossa cavalaria, a veio buscando até chegar ao sítio onde a nossa gente o aguardava. Trazia o inimigo seis tropas de cavalos, que constavam de duzentos e trinta [cavaleiros],  governadas pelo capitão Dom Francisco dal Mesquita, e com eles vinha o mestre de campo Dom Sancho Monroy, governador das armas do partido de Alcântara, bem conhecido nos exércitos del-Rei de Castela por sua qualidade e valor. Vindo em direitura buscar a nossa gente, e como a ordem que eu tinha dado ao mestre de campo João Fialho era que se chocasse sem se dar quartel a ninguém, por eles assim o haverem usado com o capitão Manuel Furtado e ajudante, pedindo-lhe as vidas, o dispôs ele assim, mandando formar das nossas seis tropas três batalhões [formações tácticas da cavalaria – note-se que D. Sancho Manuel refere-se a companhias quando refere tropas], e entre eles mangas de infantaria à ordem do sargento-mor António Soares da Costa,  com que se marchou com a cara ao inimigo, e este formado aguardou o choque. Levava a vanguarda, com o primeiro batalhão, o capitão João de Almeida Loureiro, que foi o primeiro que se misturou com o inimigo, e seguindo-o a ele a mais cavalaria com o capitão Gaspar de Távora, que pelejou com grande valor, e o capitão Paulo de Brito da Costa fizeram o mesmo, e depois de apertado o inimigo das nossas armas, havendo pelejado com grande instância por grande espaço, se quis pôr em fugida, mas não lhe valeu, porque se lhe foi dando alcance mais de uma légua, e de toda a sua cavalaria se não viram recolher mais que até vinte e cinco cavalos. Teve o inimigo nesta ocasião uma considerável perda com a morte de todos os seus cabos, a saber: o governador da cavalaria Dom Francisco dal Mesquita, o capitão de cavalos Dom Fernão [Fernando] de Alonso Torobico, o capitão de cavalos João Polão [Juan Montero Polán], o capitão de cavalos Dom Fabião de Cabrera, dois ajudantes da cavalaria, três tenentes, todos mortos naquela investida. Antes de o inimigo voltar as costas morreram mais de cem homens da sua parte, e para lustre de tão grande vitória morreu também o mestre de campo Dom Sancho Monroy, governador das armas do partido de Alcântara, pessoa da maior experiência e talento que tinha o inimigo, tomado-se-lhe muitos cavalos de que têm aparecido sessenta, que ficam nas cavalarias de Vossa Majestade (…). E para que Vossa Majestade saiba que este sucesso foi obrado mais por promissão divina que por braço de soldados, se não perdeu da nossa gente mais que dois mortos, valendo-lhe [aos restantes] irem armados de peito, espaldar e murrião, e nove feridos com um alferes; morreram no alcance nove cavalos nossos (…). Penamacor, 25 de Março de 1650.

Imagem: “Cena de Batalha”, por Philips Wouwerman (1619-1668).

Batalha das Linhas de Elvas, 14 de Janeiro de 1659

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Passam hoje 350 anos sobre a batalha das Linhas de Elvas.

Aqui fica um breve resumo do evento. Um exército de socorro (8.000 infantes, 2.900 cavaleiros e 7 peças de artilharia), sob as ordens do Conde de Cantanhede, D. António Luís de Meneses, foi enviado para tentar pôr fim ao cerco de Elvas, que o exército espanhol comandado por D. Luís de Haro (inicialmente, 14.000 infantes, 5.000 cavaleiros e 19 peças de artilharia) mantinha desde Outubro de 1658. A 14 de Janeiro, pelas 8 horas da manhã, beneficiando do denso nevoeiro que cobriu a aproximação da força, e também do erro de julgamento de D. Luís de Haro, o exército português rompeu as linhas de cerco inimigas e desbaratou os sitiantes, os quais fugiram precipitadamente, imitando o seu comandante-em-chefe. Ao mesmo tempo, D. Sancho Manuel, comandante das forças sitiadas, fez uma surtida para ajudar ao êxito das forças portuguesas. Somente cerca de 5.000 infantes e 300 cavaleiros das forças sitiantes conseguiram chegar a Badajoz. Para trás deixaram toda a artilharia, o depósito de munições, mantimentos e os pertences de D. Luís de Haro, incluindo toda a secretaria com importantíssima documentação. As baixas portuguesas também foram pesadas, com saliência para a morte de André de Albuquerque Ribafria, general da cavalaria.

Apesar desta vitória portuguesa, que apagou a lembrança do tremendo fracasso que tinha sido o cerco de Badajoz no ano anterior, a iniciativa da guerra continuou a pertencer ao exército de Filipe IV. Só as derrotas espanholas nas batalhas campais da década seguinte (1663, Ameixial, e 1665, Montes Claros) levariam a uma inversão dos papéis, até à ratificação da paz no início de 1668.

Imagem: Cerco de Elvas, 1659, por Pedro de Santa Colomba. Biblioteca Nacional, Iconografia, E1090V.

Um crime em Abrantes (3ª parte)

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O processo de Manuel Cornellis surge em anexo a uma consulta do Conselho de Guerra de 4 de Março de 1649, quase dois anos depois de ter sido cometido o crime pelo qual o oficial holandês e o seu tenente respondiam. Em resumo, ficam aqui expostas algumas etapas de um moroso processo judicial que acabou por nada resolver. Apenas serviu para prejudicar a capacidade operacional de uma companhia de cavalaria do exército do Alentejo. Como é hábito neste espaço, o português dos documentos originais foi actualizado.

1648, Julho, 17

Carta do Conde de S. Lourenço para o Rei, em que dá conta de ter recebido no dia 12 a carta régia mandando prender o capitão Manuel Cornellis e o seu tenente. A diligência foi feita. “E porque o capitão Manuel Cornellis estava sentenciado em suspensão da companhia, e o tenente servia com ela, e tendo custado tão grande soma de dinheiro, assegure-se Vossa Majestade que de todo se perderá, porque os soldados são os mais deles estrangeiros, e os cavalos da mesma maneira, e assi me parece que Vossa Majestade proveja esta companhia logo com outros oficiais, se a prisão destes há-de ser dilatada“.

1648, Julho, 22

Carta do general da cavalaria D. João de Mascarenhas para o Rei. Adverte para as consequências da prisão de Manuel Cornellis, que é a de perder-se a sua companhia. “A demais cavalaria de que estou entregue está muito boa e muito bem montada, com a companhia que esperamos de Santarém fazemos conta a mil e oitocentos cavalos, sem os que estão repartidos pelas praças, e em guarda delas, dos quais nos não ajudaremos senão em caso de necessidade“.

1648, Julho, 27

Consulta do Conselho de Guerra, que além das cartas acima, viu também duas petições de Manuel Cornellis. Numa pede que a sua companhia fosse entregue a outro oficial e que não corresse por sua conta desde o primeiro dia em que foi preso, visto também estar preso o tenente e não a unidade ter mais nenhum oficial que olhasse por ela, “para que se não perca sendo tão luzida, e em que ele está tão empenhado, havendo-a armado de coletes, botas e armas, o que até agora se lhe não tem pago, havendo servido a Vossa Majestade nisto como também o fez nas ocasiões em que se achou com a companhia com grande satisfação e dispêndio, como é notório“. À segunda petição junta a certidão de um médico, da qual consta que se acha enfermo de graves achaques, e cada vez pior. Pede ao Rei que seja servido de o mandar mudar da prisão para onde tenha mais comodidade e se possa curar, “pois não causa por que deva perder as preeminências, e isenções que Vossa Majestade costuma conceder aos capitães de cavalos“.

O Conselho de Guerra pronuncia-se a favor da manutenção do capitão e do tenente nos seus postos, argumentando que não deve a companhia ser entregue a outros oficiais sem que antes o capitão e o tenente sejam sentenciados a perder os postos, e que ambos devem procurar, por seu cuidado, que a companhia se conserve. Entenda-se: que continuem a pagar do seu bolso o sustento dos cavalos.

O Conselho de Guerra também se debruça sobre a demora do processo. Refere que o governador das armas do Alentejo, Conde de S. Lourenço, deve sentenciar de imediato os culpados do crime logo que tenha em mãos o resultado da devassa (inquérito) que o corregedor de Tomar fez da morte de João Rodrigues, o Campos. O corregedor tem-se desculpado pelo atraso do processo com o facto de andar ocupado com outras diligências, justificando-se também com o argumento de que a devassa tinha sido primeiro entregue ao corregedor seu antecessor.

No parecer final, o Conselho de Guerra informa o Rei de que, se tivesse tido conhecimento da ordem para proceder à prisão dos dois oficiais (emitida por D. Sancho Manuel), teria dado o parecer negativo até que – conforme os termos da justiça – o resultado da devassa tivesse sido conhecido e resultasse em culpa formada contra eles. Deste modo, “nem se faltará na observância dos privilégios concedidos aos que ocupam semelhantes postos, com escândalo, e desconsolação dos que servem a Vossa Majestade na guerra, e trazem a vida arriscada nela; e também não faltarão [sic – o termo correcto seria faltariam] no governo da companhia estes oficiais que a formaram, senão nos breves dias que eram necessários para se sentenciar a devassa; mas entende o Conselho que os motivos que Vossa Majestade teve para se anteciparem estas prisões, deviam ser tão justificados que não dariam lugar a se obrar em outra forma“. Este remate de parecer foi a maneira airosa (bem em conformidade com o discurso sinuoso e dissimulado da época) que o Conselho encontrou para criticar a decisão régia, sem no entanto ousar afrontá-la directamente.

1648, Outubro, 27

Relembra o Conselho de Guerra que é inconveniente manter Manuel Cornellis preso, estando doente, e que o Rei deve ser servido tomar resolução na primeira consulta enviada ao Conselho sobre este caso. A resposta do Rei, de 4 de Dezembro de 1648, manda que se escreva ao Conde de S. Lourenço, para que apresse a conclusão do processo.

1648, Novembro, 18

Aludindo a um decreto de 14 de Novembro, o Conselho de Guerra diz que a devassa de Manuel Cornellis não estava em poder do Dr. João Pinheiro, juiz assessor do Conselho, mas que tinha sido remetida pelo corregedor de Tomar directamente ao governador das armas do Alentejo.

1648, Dezembro, 23

O Conselho reporta-se à devassa que tinha sido enviada pelo Conde de S. Lourenço, tendo este escrito que era apenas o que lhe tinha chegado às mãos, não estando sentenciada, como o devia, na primeira instância no juízo da Auditoria Geral do Exército do Alentejo.

1649, Janeiro, 11

O Conselho de Guerra, em resposta ao pedido do Rei para que fosse posto ao corrente de tudo quanto se tem passado, envia a cópia de duas cartas escritas pelo Rei ao Conde de S. Lourenço.

1649, Fevereiro, 15

Continua o Conselho a reportar-se à devassa e às anteriores consultas; o Rei mandou reformar a consulta de 27 de Outubro de 1648. Ainda não há decisão sobre o caso.

1649, Março, 4

Volta a enviar-se a devassa ao Rei, mas a decisão ainda não é tomada no posterior decreto de 12 de Abril de 1649.

A partir daqui não existe mais nenhuma menção ao processo, mas outros documentos de 1649 permitem concluir que os oficiais holandeses terão sido libertados e que a companhia formada a expensas de Cornellis se manteve no activo, embora os oficiais possam não ter recuperado os postos, .pelo menos de imediato. O soldado Mateus Rodrigues (Matheus Roiz) refere que a companhia de Cornellis estava aquartelada em Terena em Janeiro de 1654, tinha 80 cavalos e o tenente era um francês, Monsieur La Roche. Em Junho de 1654, Manuel Cornellis escreve ao Rei, reclamando os privilégios de capitão, que entretanto perdera. O monarca tem dúvidas e pede um esclarecimento ao general da cavalaria do Alentejo, André de Albuquerque Ribafria. O certo é que o oficial holandês permaneceu ao serviço da Coroa portuguesa, pois em 1657 solicitou autorização para integrar na sua companhia, então muito diminuída, um soldado que ainda estava a contas com a justiça.

Fontes: Arquivo Nacional da Torre do Tombo – Conselho de Guerra, Consultas, 1649, maço 9, nº 47; Secretaria de Guerra, Livro 16, fl. 152; Arquivo Histórico Militar – Manuscrito de Matheus Roiz, p. 396.

Imagem: Cavaleiros num acampamento militar. Quadro de Philips Wouwerman, Museu do Louvre.

Um crime em Abrantes (2ª parte)

Em 23 de Maio de 1648, o Rei D. João IV escreve uma carta ao governador das armas do Alentejo, Conde de São Lourenço, acerca de um crime praticado em Abrantes e dos procedimentos que deviam ser tomados a esse respeito (missiva aqui vertida para português corrente, para melhor entendimento):

Conde amigo. Eu, El-Rei, vos envio muito saudar, como aquele que amo. Da carta e outros que com esta se vos remetem, vereis o excesso que os soldados de cavalo da companhia do capitão Manuel Cornellis, que estiveram alojados na vila de Abrantes, cometeram matando a João Roiz, o Campos, que encontraram caçando na vila de Abrantes, e porque este caso, segundo se tem entendido, foi cometido com grande atrocidade, e não convém que fique sem castigo pelo geral escândalo que tem dado, sendo mandado ordenar ao corregedor da comarca passe logo àquela vila a tirar devassa dele, e tanto que a tiver acabada vo-la remeta para fazerdes sentenciar no juízo da auditoria geral os culpados nela, de que me pareceu avisar-vos para que o tenhais entendido. E vós ordenareis (se já o não tiverdes feito, em virtude da ordem que vos foi) que logo seja preso a bom recado o capitão Manuel Cornellis, e posto em prisão segura a respeito da graveza [gravidade] do delito até ser sentenciado. Escrita em Lisboa a 23 de Maio de 1648.

O oficial respondia pelo crime cometido por alguns dos seus subordinados. Uma desavença por causa da caça? Os documentos não esclarecem os motivos da morte do paisano João Rodrigues, mais conhecido por Campos (o uso de alcunhas era vulgar na época; por vezes, tornavam-se nomes de família, que a descendência já não conseguia descartar e acabava por adoptar como patronímico).

Quem era este oficial holandês, Manuel Cornellis? Como já foi referido, o seu pai era cônsul da Províncias Unidas (vulgo, Holanda) em Portugal. Fora tenente na companhia do comissário geral Alexandre van Harten, um dos militares sobreviventes do contingente holandês que em Setembro de 1641 entrara ao serviço de D. João IV. Mas a chegada de Cornellis a Portugal é muito posterior àquela data – provavelmente durante o ano de 1646. Em Março de 1647 recebe patente de capitão de cavalos couraças. É então que parte para a Holanda, disposto a comprar 100 cavalos e recrutar 100 soldados para a sua companhia. Regressa em meados de Agosto, trazendo os cavalos prometidos, mas somente 30 soldados. Para completar o efectivo previsto, a sua companhia terá de integrar soldados portugueses – e também alguns estrangeiros cujas companhias haviam sido reformadas, como foi o caso do alferes holandês Guilherme (Willem) Liner, que se oferece para a unidade de Cornellis.

Em Abril de 1648, a companhia de Manuel Cornellis encontra-se na província da Beira, para onde fora enviada com outras unidades, a fim de reforçar o exército que D. Sancho Manuel lançara em operações sobre Valência de Alcântara, no mês anterior. O capitão desespera por regressar ao Alentejo. Escreve ao Conde de São Lourenço, pedindo licença para levar os cavalos a tomar o verde a Estremoz ou Vila Viçosa. O Conde, por sua vez, pede autorização ao Rei. Afirma que se a companhia tardar muito e já não encontrar pastagens, os cavalos ficarão perdidos de todo. Mas a resposta demora a chegar, e Cornellis decide abandonar a Beira por sua iniciativa, precipitando os acontecimentos. O crime cometido pelos seus subordinados levá-lo-á a um penoso processo, que será descrito no próximo e derradeiro artigo.

Fontes: ANTT, Conselho de Guerra, Livros de Registos, Livro 10, fl. 7 e Livro 11, fl. 110 v; Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV, vol. I, pgs. 171, 210, 233, 246 e 250.

Imagem: Cavaleiros do período da Guerra Civil Inglesa, reconstituição histórica, Kelmarsh Hall, 2008. Foto emprestada pela English Civil War Society.